Há muito por descobrir



Duas imagens de uma porção de céu obtidas com cerca de 30 minutos de intervalo são mostradas alternadamente. No centro da imagem pode ver-se um objecto de Kuiper, movendo-se contra o fundo de estrelas e galáxias. Certos pontos luminosos que aparecem e desaparecem de uma imagem para a seguinte são ruído de fundo.
Nos textos científicos, os objectos de Kuiper são vulgarmente designados por KBOs (do inglês, Kuiper Belt objects). Por vezes, também se usam as designações TNOs (trans-Neptunian objects) e, com menos frequência, EKOs (Edgeworth-Kuiper objects). Julga-se que os KBOs sejam uma espécie de planetas bebés. No modelo de formação do sistema solar proposto por Kant e Laplace (ver parte 2), os aglomerados que ficam em órbita em torno do Sol vão-se juntando e crescendo até formar os planetas. Os astrónomos baptizaram estes aglomerados em fase de crescimento de "planetesimais". Na região ocupada pela cintura de Kuiper, por ser distante do Sol, havia menos material para formar planetesimais. Por isso os KBOs cresceram mais devagar. Quando o material se esgotou, os KBOs estavam ainda na fase da infância, longe de se tornarem planetas. E assim ficaram, congelados. Estes objectos são, portanto, uma espécie de fósseis da época em que se formaram os planetas. Como tal, o seu estudo é vital para compreender esse processo de formação.

Passei os últimos quase cinco anos a estudar os KBOs, em particular a forma e a rotação destes objectos. Por estarem tão longe de nós, a mais de 40 unidades astronómicas, mesmo recorrendo aos melhores telescópios, os KBOs são visíveis apenas como um pontinho luminoso. Desse ponto não se consegue perceber qual a forma ou a rotação do objecto. Para termos acesso a esses dados usamos a chamada "curva de luz" dos objectos de Kuiper. A curva de luz é uma variação periódica do brilho do objecto (do tal pontinho luminoso). Se imaginarmos que o KBO em questão tem uma forma alongada, ou ovóide, à medida que ele (KBO) roda, o observador vê-lo-á, alternadamente, de topo, de lado, do outro topo, do outro lado, e assim sucessivamente (ver figura). Um ovóide visto de lado reflecte mais luz do Sol (tem uma maior área reflectora) do que visto de topo. Portanto, à medida que o KBO roda o seu brilho aumenta e diminui periodicamente, exactamente com o período de rotação do objecto. Para além disso, quanto mais alongado for o objecto maior será a amplitude de variação do seu brilho. Dito de outra maneira, se o objecto não for alongado (ou seja, se for esférico) o seu brilho não variará com a rotação: a amplitude de variação do brilho será zero. A curva de luz de um KBOs fornece-nos assim a velocidade de rotação e dá-nos uma ideia da forma do objecto em questão.


Ilustração do movimento de rotação de um hipotético objecto de Kuiper de forma ovóide. À medida que roda este objecto reflecte mais ou menos luz do Sol, consoante se apresenta de lado ou de topo para o observador.
Perguntam vocês: mas para que é que queremos saber a forma e a rotação dos objectos de Kuiper? Para explicar a importância de conhecer as formas dos KBOs, podemos usar o exemplo dos asteróides. Os mais pequenos (com diâmetros inferiores a cerca de 100 km) tem formas equivalentes às dos estilhaços que saltam ao partir uma pedra. Isto indica que estes objectos são isso mesmo: estilhaços resultantes de violentas colisões entre asteróides maiores. Será que o mesmo se passa com os objectos de Kuiper? O meu estudo das formas dos objectos de Kuiper indica que na sua grande maioria estes objectos são relativamente redondos, mas que existe uma percentagem considerável com formas mais ovóides, ou alongadas. Mas ainda temos que descobrir porquê.

Por outro lado, a velocidade de rotação de um KBO dá-nos informação acerca da sua estrutura interna, especialmente se soubermos a forma do KBO. Por exemplo, se o objecto for maciço, pode rodar bastante depressa sem que a sua forma se altere significativamente. Mas se o KBO for um amontoado de pequenos fragmentos, a rotação deformará o objecto tornando-o mais ovóide. Se rodar demasiado depressa pode mesmo desintegrar-se. As formas e as rotações dos KBOs, quando analisadas em conjunto, parecem indicar que os objectos de Kuiper são mesmo amontoados de blocos mais pequenos, que se mantém juntos graças à força da gravidade.


Variação periódica do brilho aparente do objecto acima. Os pontos indicam as medições do brilho do KBO feitas ao longo do tempo.
Os objectos de Kuiper rodam em média com um período de cerca de 10 horas. A comparação com o período de rotação médio dos asteróides é interessante: os asteróides têm um período médio de rotação de cerca de 7 horas, ou seja rodam mais depressa do que os KBOs. Mas porque rodam os KBOs? Será que colisões mútuas, desde a sua formação até aos dias de hoje, os puseram a rodar? Essa é, em princípio, a explicação para a rotação dos asteróides: as colisões violentas que os foram estilhaçando também os puseram a rodar, de tal modo que a sua rotação já pouco tem a ver com a rotação original que estes objectos tinham quando se formaram. No final do ano passado realizei um estudo das colisões entre KBOs. O objectivo era verificar se a rotação dos KBOs foi provocada por colisões entre eles, desde que se formaram até aos nossos dias. A conclusão é que os maiores KBOs têm a mesma rotação que tinham quando se formaram, mas a rotação dos mais pequenos foi completamente alterada pelas colisões. Por outro lado, as colisões parecem ser a razão pela qual os KBOs são amontoados de fragmentos: impactos sucessivos foram rachando e partindo o interior destes objectos transformando-os lentamente numa espécie de blocos de entulho gelado.

No dia 4 de Julho uma missão da NASA chamada Deep Impact vai visitar o cometa Temple 1. A Deep Impact vai disparar um pequeno projéctil contra o cometa, e observar cuidadosamente os estilhaços e a cratera provocados pelo impacto. Fred Whipple, o pai da teoria de que os cometas são "bolas de neve", haveria de gostar de presenciar o acontecimento, e verificar a validade das suas previsões. Embora já tenham sido planeadas missões espaciais com o intuito de visitar Plutão e outros objectos de Kuiper, nenhuma foi posta em prática. Até lá teremos que continuar a fazer contas, e a apanhar todos os fotões que nos chegam, para aprendermos mais sobre estes objectos... o que até é divertido.