Kuiper tinha razão


Em 1988, a questão das órbitas dos cometas de "curto período", fez com que três cientistas, Martin Duncan, Thomas Quinn e Scott Tremaine, voltassem a acreditar na ideia de Kuiper. Os cometas de "curto período" têm órbitas pouco inclinadas, i. e., que não se afastam muito do disco onde os planetas se movem. Por outro lado, e como foi referido na semana passada, os cometas de "longo período" vêm da distante nuvem de Oort, e aproximam-se do Sol vindos de todas as direcções. Face a estas duas famílias de cometas os cientistas interrogaram-se - ao jeito da história do ovo e da galinha - qual teria "nascido" primeiro. Será que os cometas de longo período vindos de todas as direcções e inclinações podem ser "domados" pela gravidade dos gigantes gasosos, Júpiter, Saturno, Úrano e Neptuno, passando a ter órbitas de curto período e pouco inclinadas? Ou serão, pelo contrário, os bem comportados cometas de curto período que, de vez em quando, são lançados para órbitas alongadas e inclinadas, em direcção à nuvem de Oort? Duncan, Quinn e Tremaine decidiram fazer uma simulação usando um computador para testar a primeira destas duas hipóteses. A resposta que o computador deu é que não é possível domar os cometas de longo período. Além disso, os três cientistas concluíram que os cometas de curto período têm necessariamente de vir de uma cintura em forma de bolo-rei, localizada além Neptuno, exactamente como Kuiper imaginara quase 40 anos antes. No artigo em que publicaram os seus resultados, Duncan e colegas baptizaram a hipotética cintura de cometas de "Kuiper belt", ou "cintura de Kuiper".

A revolução tecnológica dos finais do século XX trouxe grandes vantagens para a astronomia. Telescópios cada vez maiores e melhor equipados mostravam-nos o Universo com um detalhe até então impossível. Em particular, o aparecimento de detectores electrónicos (CCD's, de "charge-coupled devices"), que vieram substituir as películas fotográficas no registo de imagens, trouxe grandes vantagens para a astronomia. Hoje em dia os CCD's estão vulgarizados nas máquinas fotográficas digitais. O facto de serem sensíveis a uma gama mais vasta de frequências, de serem detectores lineares1 e de fornecerem imagens em formato digital, prontas para serem analisadas por um computador, torna-os ideais para registar e estudar a luz que nos chega do Universo.


Jane Luu e Mango (à esquerda) e Dave Jewitt (à direita).
Dave Jewitt e Jane Luu, dois astrónomos da Universidade do Hawaii, aperceberam-se destes factos e, em 1987, um ano antes do artigo de Duncan, Quinn e Tremaine, decidiram voltar à caça da tal cintura de cometas de Kuiper. Jewitt e Luu usaram um telescópio situado no topo do vulcão Mauna Kea, a 4000 metros de altitude, que tinha sido recentemente equipado com um CCD. Pacientemente, noite após noite, procuraram nas imagens que iam obtendo um ponto luminoso cujo movimento indicasse tratar-se de um objecto trans-Neptuniano. Mas os anos passavam e Jewitt e Luu não viam nada. Seriam estes objectos uma espécie de gambozinos?

Em 1992, cinco anos depois de terem iniciado a busca, eles avistaram um pequeno objecto, com cerca de 200 km de diâmetro, que se movia numa órbita quase perfeitamente circular, ligeiramente mais distante do que a de Plutão. Seis meses mais tarde encontraram outro objecto, numa órbita semelhante, do lado oposto do sistema solar. Esta segunda descoberta mostrou que a primeira não se tinha tratado de um acaso, e convenceu finalmente a comunidade científica que Kuiper tinha razão. Desde então quase mil "objectos de Kuiper" foram descobertos. Esta nova família de objectos trans-Neptunianos veio alterar o estatuto de Plutão na hierarquia do sistema solar. O estranho, pequeno, e gelado planeta pode, afinal, ser considerado o maior dos objectos de Kuiper, assim como Ceres é o maior dos asteróides.

A descoberta da "cintura de Kuiper" entusiasmou a comunidade científica, e fez nascer uma nova área de investigação. Embora os objectos trans-Neptunianos pareçam ser a solução do problema da origem dos cometas, o que se sabe sobre eles é quase nada. Para que consigamos ver um destes objectos a partir da Terra, é necessário que a luz do Sol, sob a forma de minúsculas partículas chamadas fotões, viaje durante mais de cinco horas, seja reflectida pela superfície do objecto, e volte a viajar outro tanto de volta até nós. Não é que os fotões cheguem cá cansados. O problema é que chegam poucos --- a maior parte perde-se pelo caminho. Em astronomia, os fotões são os mensageiros de toda a informação que nos chega. Quanto mais fotões recebemos de um determinado objecto, mais informação podemos obter. É por chegarem poucos vindos dos objectos trans-Neptunianos que nós sabemos tão pouco acerca deles. Provavelmente, um dia teremos de mandar sondas, semelhantes às que vão a Marte, para aprendermos mais sobre estes pequenos mundos gelados.


1 Se chegarem, por exemplo, 100 fotões (partículas de luz), o CCD detecta 100 fotões, se chegarem mais 100, detecta mais 100, 200 no total, e assim por diante. As películas fotográficas são detectores logarítmicos, o que significa que à medida que chegam mais e mais fotões a película começa a saturar e a detectar menos - até pode detectar os 100 primeiros, mas dos segundos 100 só detectará talvez 80.