Astrofísica e Cosmologia num Universo Multi-Dimensional

Uma colisão frontal de duas galáxias. Crédito: Kirk Borne (STScI)/NASA.
Torna-se quase impossível imaginar quão diferente teria sido a história da Humanidade se o céu estivesse sempre coberto por nuvens. Os corpos celestes, principalmente o Sol e a Lua, foram decisivos na elaboração de calendários, e por via disso na organização das primeiras estruturas sociais. As divisões que fazemos do tempo em anos, meses, semanas e dias são um exemplo óbvio desse facto. Para além disso, o Homem tem-se esforçado por compreender qual é o seu lugar no Cosmos. Esse esforço de compreensão traduz-se na formulação de modelos, que pretendem ser representações, ainda que simplificadas, da realidade. Sob este ponto de vista ontológico, a Cosmologia é a mais antiga das ciências.

O primeiro modelo cosmológico com aceitação "generalizada" data de há 2500 anos, devendo-se principalmente a Aristóteles e Ptolomeu. Este modelo sustenta que a Terra permanece imóvel no centro do Universo, e em torno dela existem "esferas cristalinas" contendo os planetas e as "estrelas fixas", que estão em perfeito e eterno movimento. Este modelo manteve-se quase inalterado durante cerca de 2000 anos. No entanto, o método científico depende crucialmente da observação e experiência, e à medida que a capacidade tecnológica (ou simplesmente o bom senso) da Humanidade foram aumentando, assim se foi tornando necessário alterar a nossa visão do cosmos.

Sob esse ponto de vista, a Cosmologia "moderna" só surgiu, como ciência, no século XX, e de facto aprendemos mais sobre o Universo nos últimos 20 anos do que em todo o resto da história da Humanidade. O que é, então, a Cosmologia moderna? Numa definição simples, é a ciência que estuda a origem e evolução do Universo, e em particular da sua estrutura em larga escala, com base em leis físicas.

A cosmologia é, entretanto, uma ciência única por várias razões. De um ponto de vista formal, a mais importante é que em cosmologia só podem fazer-se observações, e não experiências. Existe apenas um Universo para estudar (do qual, aliás, fazemos parte), e não é portanto possível alterar este ou aquele parâmetro, este ou aquele ingrediente, e registar o que acontece de diferente. Naturalmente isto conduz a alguns problemas subtis. Por exemplo, a questão de "quão especial é o nosso Universo" é de formulação complexa, porque não há um "Universo típico" que possa servir de comparação. Obviamente o simples facto de a nossa espécie existir impõe limitações a possíveis percursos evolutivos, mas isto não deve ser levado a extremos como os dos chamados "Princípios Antrópicos", que não têm qualquer rigor ou significado físico.

Sob o ponto de vista prático, no entanto, a maior dificuldade está no facto de as escalas características de espaço e tempo em cosmologia serem muito superiores às habituais. O facto de a velocidade da luz ser finita e constante (cerca de 300 000 quilómetros por segundo) permite definir uma escala de distâncias apropriada. Assim a Lua, que se encontra a cerca de 400 000 km, está a cerca de 1,3 segundos-luz. Note-se que ao olhar para a Lua não a vemos tal como ela é agora, mas sim tal como era há 1,3 segundos. O céu nocturno é de facto uma "máquina do tempo".

Passando a escalas sucessivamente maiores, o Sol encontra-se a cerca de 8 minutos-luz de nós, e Plutão a pouco mais de 5 horas-luz. A estrela mais próxima do Sol encontra-se a cerca de 4,2 anos-luz. De facto, a maior parte do Universo não contém quantidades significativas de matéria! As estrelas organizam-se em galáxias, enormes aglomerados contendo milhares de milhões de estrelas. O Sistema Solar pertence a uma galáxia a que se chama (por razões históricas) Via Láctea. Com excepção de algumas pequenas galáxias-satélite da Via Láctea, a galáxia mais próxima de nós (Andrómeda) encontra-se a cerca de 2 milhões de anos-luz. A propósito, Andrómeda é o mais distante objecto visível à vista desarmada. As galáxias encontram-se também agrupadas em "enxames", contendo tipicamente centenas ou milhares de elementos, e os enxames agrupam-se por sua vez em "superenxames" contendo algumas dezenas de elementos. O facto de existir esta hierarquia de estruturas (em vez de uma distribuição uniforme de estrelas, por exemplo) é uma questão extremamente interessante, a que voltaremos mais tarde.

Do ponto de vista da Cosmologia, as galáxias são o ingrediente primário do Universo, no sentido em que são o limite para o que se entende por "larga escala". É nessa escala que hoje em dia a física mais interessante ocorre. Como exemplo, note-se que se o Sol fosse reduzido ao tamanho de uma ervilha, a estrela mais próxima estaria a uma distância de 144 km. Por outro lado, se a nossa galáxia fosse reduzida ao tamanho de uma ervilha, Andrómeda estaria apenas a 11 centímetros.

Agora que sabemos de que trata a Cosmologia, podemos passar a discutir o que ela nos permite saber sobre a origem do Universo. Antes, porém, é conveniente ainda reflectir sobre o papel dos modelos científicos. É necessário não esquecer que as teorias são apenas representações da realidade, não são a realidade. Por exemplo, os planetas ao moverem-se nas suas órbitas em volta do Sol não estão constantemente a resolver sistemas de equações diferenciais que lhes dizem como mover-se, tal como também não estão fixos à esferas celestes. Estão, simplesmente, a mover-se. Somos nós quem cria uma teoria, resolve as equações que dela resultam e verifica se a imagem que se obtém dessa teoria corresponde à realidade. Os planetas não tem esse problema.


Os tópicos que serão abordados durante as próximas semanas são os seguintes:



Autoria:
Carlos Martins
Investigador do Centro de Astrofísica da Universidade do Porto,
DAMTP - University of Cambridge, Institut d'Astrophysique de Paris