Os trânsitos de Vénus dos séculos XVII e XVIII


Trânsito de 1639


Crabtree Observando o Trânsito de Vénus, 1639, mural no edifício da Câmara de Manchester pintado cerca de 1881 por Ford Madox Brown (1821–1893), de que existe uma versão reduzida na Galeria de Arte de Manchester.
O primeiro trânsito de Vénus foi observado por um jovem britânico e por um amigo e correspondente, em 1639. O jovem chamava-se Jeremiah Horrocks (1619–1640) — o apelido seria depois latinizado «Horrox» — e viveu apenas até à idade de 22 anos; mas nesses poucos anos de vida conseguiu desenvolver tantos aspectos da astronomia teórica e observacional que ainda hoje os historiadores se espantam com a sua persistência e inteligência. Horrocks é hoje conhecido, sobretudo, por ter sido o primeiro a prever e observar um trânsito de Vénus, mas a astronomia deve-lhe ainda cálculos mais aperfeiçoados para o movimento dos planetas e a descoberta da forma elíptica da órbita da Lua.

Sabe-se que Horrocks escreveu ao irmão e ao seu amigo William Crabtree (1610–1644) avisando-os do trânsito e pedindo-lhes que o observassem. O irmão, que residia ainda com a família, em Toxteh, enfrentou condições atmosféricas que não lhe permitiram qualquer observação. Mas Crabtree teve melhor sorte. Horrocks não avisou outros amigos do fenómeno «porque a maioria deles pouco se importa com minudências deste estilo, preferindo os seus falcões e cães de caça, para não dizer pior». William Crabtree era um comerciante de panos de Salford, com quem Horrocks tinha estabelecido intensa correspondência científica a partir de 1636. Ao que parece, os dois tinham sido postos em contacto por um contemporâneo do jovem Jeremiah em Cambridge, que sabia da sua paixão comum pela astronomia.

Trânsito de 1761


Publicação dos resultados de Miguel Ciera relativos ao trânsito de Vénus de 1761, por Custódio Villas Boas, em 1794, num artigo sobre as coordenas geográficas da capital (Memórias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, Lisboa, Academia das Ciências, t. I, 305–324).
Entre os observadores deste trânsito encontram-se três astrónomos portugueses: Teodoro de Almeida, no Porto, Soares de Barros em Paris e Miguel Ciera – na verdade um engenheiro italiano ao serviço de Portugal –, no colégio dos Nobres, em Lisboa.

O número de observadores e de locais de observação é impressionante e revela a importância, o interesse e a curiosidade destas observações não só para os astrónomos, mas também para um grande número de amadores anónimos, em número impossível de determinar. Segundo Proctor (1882) foram identificados 176 observadores do trânsito de Vénus de 1761, em 117 estações de observação. No estudo mais recente de Woolf (1981), os observadores identificados para este trânsito são 120, em 62 estações de observação.

O trabalho que se seguiu às observações de 1761 consistiu na análise dos resultados registados das observações, para se conseguir determinar a paralaxe do Sol, e assim poder calcular a distância da Terra ao Sol. Os resultados foram analisados por vários astrónomos de diferentes países, e os cálculos da paralaxe solar começaram a surgir algum tempo depois. Pingré obtivera o valor de 10,60'', enquanto o valor de Lalande era de 9,55''. James Short (1710–1768), fabricante de telescópios, e encarregado de calcular a paralaxe em Inglaterra, depois de comparar os diversos resultados obtidos nas observações, chegou a um valor de 8,56''. Thomas Hornsby (1733–1810), professor de astronomia em Oxford, calculou a paralaxe solar em 9,732'', reconhecendo que os valores obtidos revelavam que não era ainda possível ter certezas sobre a sua validade. Stephan Rumovsky (1734–1812) obteve um valor de 8,33'', enquanto Anders Planman (1724–1803) da Academia de Ciências sueca concluiu o valor de 8,29''.

Trânsito de 1769


Quadro de William Hodges (1744-1797) pintado cerca de 1774 com um vista próxima de um dos locais de observação dos britânicos no Taiti, em 1769 (Crédito: Biblioteca Nacional da Austrália).
Depois do trânsito de Vénus de 1761 o interesse no fenómeno não diminuiu, bem pelo contrário. Os astrónomos viram o segundo trânsito do século XVIII, que ocorreria a 3 e 4 de Junho de 1769, como uma segunda oportunidade para resolverem o problema da determinação da paralaxe solar, e, em consequência, poderem finalmente calcular com rigor a distância que separa a Terra do Sol. Infelizmente, o trânsito de Vénus desse ano só seria visível integralmente para observadores situados na região do Pacífico, na metade mais oriental da América do Norte, na Sibéria e na Lapónia.

A Royal Society organizou uma expedição ao Taiti, comandada por James Cook, que foi bem sucedida na observação do fenómeno, como revela o conhecido explorador no seu Jornal de Bordo:

«O dia revelou-se ser tão favorável ao nosso propósito como poderíamos desejar; nem uma nuvem foi avistada todo o dia, e o ar estava perfeitamente limpo; de tal modo que tivemos toda a vantagem na observação de toda a passagem do planeta Vénus sobre o disco solar. Vimos distintamente uma atmosfera, ou sombra escura, em torno do corpo do planeta, que perturbou os tempos dos contactos, em particular os dois internos. Esteve quase calmo todo o dia e o termómetro, exposto ao sol pelo meio dia, ascendeu a um grau de calor que ainda não tínhamos encontrado.»

No total 151 observadores em 77 estações realizaram observações científicas do trânsito de Vénus de 1769. As grandes potências contribuíram em grande medida para o número de astrónomos envolvidos: nada menos que 69 britânicos, 34 franceses e 13 russos.

Apesar das memórias e análises publicadas na época, só no século seguinte se extraíram dos dados resultados melhores. O astrónomo alemão Johann Encke (1791–1865) fez uma revisão das observações dos trânsitos de 1761 e 1769 em trabalhos publicados em 1822 e 1824. Curiosamente, na lista de observações utilizadas por Encke vamos encontrar os observadores portugueses do trânsito de 1761. O astrónomo alemão utilizou um método estatístico então recente, publicado por Karl F. Gauss (1777–1855) em 1812 e chamado método dos mínimos quadrados. Com este método, Encke pôde ter em conta simultaneamente todos os trajectos observados de Vénus sobre o disco solar. Pôde assim obter uma precisão muito maior. Chegou ao valor de 8,5776'' ± 0,0370'' para a paralaxe solar e, mais tarde, em 1835, refinou-o para 8,57116'' ± 0,0371''.