O firmamento


Olha por outras partes a pintura
Que as Estrelas fulgentes vão fazendo:
Olha a Carreta, atenta a Cinosura,
Andrómeda e seu pai, e o Drago horrendo;
Vê de Cassiopeia a fermosura
E do Orionte o gesto turbulento;
Olha o Cisne morrendo que suspira,
A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira.
Canto X, 88




As constelações da Cassiopeia (à esquerda) e Orionte (à direita). Villa Farnese, Caprarola, Itália, 1573.


O firmamento, ou oitava esfera, continha todas as estrelas fixas, organizadas em constelações. Segundo Pedro Nunes, numa anotação ao texto de Sacrobosco, diz:

“Chama-se [estrelas] fixas porque estão sempre em uma mesma distância de nós por estarem todas em um mesmo céu que é o oitavo” Tratado da Sphera, Pedro Nunes

Essas estrelas, em relação umas às outras, estão organizadas em grupos, as constelações. Quando Camões se refere ao firmamento, usa por vezes a palavra estrela para designar constelação.

Já descoberto tínhamos diante,
Lá no novo Hemisfério, nova estrela,
Não vista de outra gente
, que ignorante
Alguns tempos esteve incerta dela.
Vimos a parte menos rutilante,
E, por falta de estrelas, menos bela,
Do Pólo fixo, onde ainda se não sabe
Que outra terra comece, ou mar acabe.
Canto V, 14
A nova estrela é a nova constelação do Cruzeiro do Sul, utilizada pela primeira vez em navegação pelos portugueses, que foram também quem lhe deu o nome de cruz, como vimos já aqui.
"Pelas praias vestidos os soldados
De várias cores vêm e várias artes,
E não menos de esforço aparelhados
Para buscar do inundo novas partes.
Nas fortes naus os ventos sossegados
Ondeam os aéreos estandartes;
Elas prometem, vendo os mares largos,
De ser De ser no Olimpo estrelas como a de Argos.
Canto IV, 85
Quando a armada de Gama se prepara para partir, as naus prometem ganhar o direito a serem colocadas no céu, transformadas em constelações como a nau Argos.
Mais uma vez, a palavra estrela é usada com significado de constelação.




A constelação de Argos. Villa Farnese, Caprarola, Itália, 1573.


"Tu só, de todos quantos queima Apolo,
Nos recebes em paz, do mar profundo;
Em ti dos ventos hórridos de Eolo
Refúgio achamos bom, fido e jocundo.
Enquanto apascentar o largo Pólo
As Estrelas, e o Sol der lume ao Mundo,

Onde quer que eu viver, com fama e glória
Viverão teus louvores em memória."
Canto II, 105
As estrelas fixas, que todos os dias dão a sua volta em torno do Pólo, são comparadas a um rebanho que sai todos os dias para pastar.


Camões usa aqui uma expressão semelhante à que Virgílio usou na Eneida:

‘enquanto o pólo [o céu] der pasto aos astros permanecerá sempre em [em mim] a tuas honra, o teu nome e os teus louvores’
Eneida (I, 608), Virgílio

Em Camões, Gama agradece a hospitalidade do Rei de Melinde; em Virgílio, é Eneias que agradece o acolhimento de Dido.

A descrição do movimento das estrelas como se de um rebanho a pastar se tratasse, aparece já em Lucrécio (Séc. I), em De Rerum Natura, como uma teoria explicativa do movimento diurno das estrelas, e talvez por esta razão seja muito usada pelos poetas.

‘[…] qual seja a causa do movimento dos astros […] eles podem então deslizar onde o sustento de cada um o chama e convida a ir, pascendo aqui e ali pelo céu os flâmeos corpos’
De Rerum Natura V, 510-526

E porquê este movimento regular das estrelas? Porque, estando todas as estrelas fixas fixadas sobre a oitava esfera, esta arrasta-as consigo no seu movimento.

Da Lua os claros raios rutilavam
Pelas argênteas ondas Neptuninas,
As estrelas os Céus acompanhavam,
Qual campo revestido de boninas;
Os furiosos ventos repousavam
Pelas covas escuras peregrinas;
Porém da armada a gente vigiava,
Como por longo tempo costumava.
Canto I, 58
A armada está ao longo da costa de Moçambique e espera a visita do régulo.
À medida que, durante a noite, o tempo vai passando, as estrelas vão acompanhando os céus no seu movimento.


Ao longo da noite, há assim estrelas que nascem, outras que se põem, outras ainda que já estavam altas no céu ao começo da noite. A estância 67 do Canto IV, relativa ao sonho profético de D. Manuel, trata este assunto com uma subtileza notável, distinguindo entre as estrelas que nascem (saem), as que nascem já noite cerrada (nítidas saem) e as que, depois de nascerem nítidas, se pôem ou pelo menos descem do meridiano para poente (caem), para simplesmente nos dizer que a noite já vai longa.

O qual, como do nobre pensamento
Daquela obrigação, que lhe ficara
De seus antepassados, (cujo intento
Foi sempre acrescentar a terra cara)
Não deixasse de ser um só momento
Conquistado: no tempo que a luz clara
Foge, e as estrelas nítidas, que saem,
A repouso convidam quando caem,

Canto IV, 67
no tempo que a luz clara/ Foge: é noite, pois não há Sol;
as estrelas [...] que saem são as estrelas que nascem;
as estrelas nítidas, que saem são as estrelas que nascem já noite cerrada;
quando caem as estrelas que nítidas saem, é já muito tarde na noite.


Depois de compreendermos a explicação do movimento das estrelas, vejamos o que se pensava Camões acerca da sua natureza material.

Pode ler-se na Margarita Philosophica de Gregório Reisch (1508) - que segundo Luciano Pereira da Silva terá sido também uma das fontes astronómicas de Camões- o seguinte:

‘As estrelas, como partes dos céus, necessariamente são da mesma natureza que eles, distinguindo-se apenas na densidade. Cada estrela é pois uma parte mais densa do seu céu, receptiva e retentiva da luz solar.’

De todas as estrelas, fixas ou errantes (planetas, Sol e Lua), só o Sol tem luz própria; todas as outras refletem a luz que recebem do Sol. Estas eram as estrelas do séc. XVI, corpos densos, sem brilho próprio, mas reflectores.

É o que se pode ler também na estância 87 do Canto X: ‘Olha estoutro debaxo, que esmaltado / De corpos lisos anda e radiantes’, descrevendo-nos a oitava esfera e as suas estrelas, corpos lisos e radiantes, no sentido de espelhos, que recebem e emitem a luz do Sol. Encontramos a mesma imagem na seguinte estância:

Meio caminho a noite tinha andado,
E as estrelas no ceo co a luz alheia
Tinham o largo mundo alumiado,
E só co sono a gente se recreia.
O Capitão ilustre, já cansado
De vigiar a noite, que arreceia,
Breve repouso então aos olhos dava,
A outra gente a quartos vigiava;
Canto II, 60
A luz das estrelas é alheia, pois não lhes pertence a elas, mas sim ao Sol.