Os céus


Ainda no Tratado da Sphera, mas já na Theorica do Sol, de Purbáquio, pode ler-se logo no quarto parágrafo:

[…] toda a inteira esphera do sol e bem assi de qualquer outro planeta he concêntrica ao mundo.

Em concordância, escreve Camões em relação à machina do mundo:

Qual a matéria seja não se enxerga,
Mas enxerga-se bem que está composto
De vários orbes, que a Divina verga
Compôs, e um centro a todos só tem posto.

Volvendo, ora se abaxe, agora se erga,
Nunca s’ergue ou se abaxa, e um mesmo rosto
Por toda a parte tem; e em toda a parte
Começa e acaba, enfim, por divina arte,
Canto X, 78
Todos os orbes (aqui com sentido de esferas) são concêntricos.


Mas logo à frente, na estância 90 do Canto X, diz Tétis a Gama:

Em todos estes orbes, diferente
Curso verás, nuns graves e noutros leve;
Ora fogem do Centro longamente,
Ora da Terra estão caminho breve,

Bem como quis o Padre omnipotente,
Que o fogo fez, e o ar, o vento e neve,
Os quais verás que jazem mais a dentro
E tem co Mar a Terra por seu centro.
Canto X, 90
Com que significado estará Camões a utilizar aqui a palavra orbe?

Nestes orbes, os cursos ora se afastam muito do centro, ora se aproximam da Terra.


Estará aqui Camões em contradição com a estância 78? Com efeito, a estância 90 parece contradizer a afirmação de todas as esferas de todas as estrelas (fixas e errantes) serem concêntricas, como se indica na estância 78.

Acontece que, na estância 90, a palavra orbe é usada com o sentido de céu, o que para Pedro Nunes tem outro significado.

Para compreendermos o significado da palavra céu para Pedro Nunes, temos que introduzir o conceito de deferente, como é definido na Theorica do Sol.



A esfera do Sol é a coroa circular a negro. A coroa circular branca, dentro da negra, é o deferente do Sol, a que hoje chamaríamos trajectória do Sol.

O ponto a é o centro da Terra, e b é o centro do deferente.

O círculo interior a branco contém as esferas dos planetas inferiores ao Sol: Lua, Mercúrio e Vénus. Fora do círculo negro, ficam as esferas dos planetas superiores.


O Sol move-se sobre um deferente, círculo excêntrico em relação à Terra, mas contido numa coroa circular, cujo centro torna a coincidir com o centro da Terra.

Estando a Terra em a, o Sol afasta-se e aproxima-se da Terra: no apogeu ou auge está o mais longe possível do centro da Terra (e portanto mais próximo do firmamento), e no perigeu está mais perto da Terra.



A esfera do Sol contém três céus:

O deferente do Sol e as duas regiões contidas na esfera do Sol, uma interior e outra exterior ao deferente, chamadas deferentes do auge do Sol.


É agora claro, na estância 90 do Canto X, que, apesar de todas as esferas serem concêntricas, com o centro no centro da Terra, o deferente, totalmente contido dentro da esfera mas excêntrico em relação ao centro da esfera, permite a cada planeta estar ora perto ora longe da Terra.

Nos dois primeiros versos da estância, ‘Em todos estes orbes, diferente/ Curso verás, nuns graves e noutros leve’, Camões refere-se aos diversos céus deferentes de cada planeta, sobre os quais os planetas se movem com diferentes velocidades: Saturno mais lento (grave) e a Lua mais rápida (leve). Os dois versos seguintes ‘Ora fogem do Centro longamente,/ Ora da Terra estão caminho breve,’ descrevem o movimento de cada planeta sobre o seu deferente: ora perto da Terra, ora longe.

Com a excepção do Sol e da Lua, todos os planetas têm, para além do movimento sobre o deferente, um movimento sobre um epiciclo, que explica os movimentos retrógrados dos planetas.

Para compreendermos o conceito de epiciclo, vamos considerar os céus de Saturno.



A sétima esfera, de Saturno, tem três céus, tal como a esfera do Sol: os dois céus interior e exterior ao deferente e o céu deferente, cujo centro não coincide com o centro do mundo.

O movimento de Saturno faz-se ainda no céu deferente, mas sobre um pequeno círculo, o epiciclo.

O epiciclo desliza no deferente, dando uma volta completa em cerca de 30 anos. Saturno roda sobre o epiciclo, dando uma volta completa num período de um ano.


O movimento de um planeta sobre o seu epiciclo, visto da Terra, teria dois tipos de sentido, directo ou retrógrado, conforme o planeta estivesse na metade mais afastada ou na metade mais próxima da Terra, e desta forma se explicava o movimento retrógrado dos planetas.

Na verdade, Camões não chega ao pormenor de descrever os epiciclos no seu poema.