As dez esferas
Fig. 1: Michelangelo Cactani, La Materia della Divina Comedia di Dante Aliguieri, 1855.
"[…] a esfera divide-se em nove esferas: a nona que é o primeiro móbil, a esfera das estrelas fixas que é o firmamento e em sete esferas de sete planetas."
Já na Divina Comédia (ca. 1321), Dante utiliza o modelo do mundo com nove esferas, as quais Beatriz e ele próprio sobem até chegar ao Empírio.
Na Divina Comédia de Dante (1307-1321), o Inferno encontra-se no interior da Terra.
A alma, no seu caminho para Deus, deve subir através do Purgatório e das nove esferas (dos planetas, das estrelas e da esfera de cristal) até chegar ao Paraíso.
Mas Pedro Nunes faz a seguinte anotação junto ao texto de Sacrobosco:
"segundo a comum escola dos astrólogos a nona esfera não é primeiro móbil mas segundo e o décimo é o primeiro: e nestes dois céus de cima não há estrelas"
A Machina do Mundo de Pedro Nunes tem afinal dez esferas, mais uma que a de Sacrobosco, e será esta nova proposta a adoptada por Camões, que deste modo mostra seguir a “comum escola” dos astrónomos do seu tempo, como veremos nas estâncias 85 a 89 do Canto X de Os Lusíadas.
Mais tarde veremos que na esfera de cada planeta, existem por vezes vários céus que ajudam a explicar o movimento desse planeta.
Convém sublinhar que Pedro Nunes utiliza a palavra esfera para designar o conjunto dos céus de cada planeta (e da Lua e do Sol, na altura também chamados planetas) e que traduz a palavra orbe por céu. Ora, Camões, com a sua liberdade poética, utiliza indistintamente as palavras esfera, orbe ou céu.
Aqui se lhe apresenta que subia Tão alto que tocava a prima Esfera Donde diante vários mundos via, Nações de muita gente, estranha e fera; E lá bem junto donde nasce o dia Despois que os olhos longos estendera Viu de antigos, longinquos e altos montes Nascerem duas claras e altas fontes. Canto IV, 69 |
D. Manuel, num sonho profético, sobe no ar tão alto que toca a esfera da Lua. Nesta estância, Camões usa a palavra esfera com o sentido que Pedro Nunes dá à palavra. |
Ouviu-lhe estas palavras piadosas A fermosa Dione e, comovida, Dantre as Ninfas se vai, que saudosas Ficaram desta súbita partida. Já penetra as Estrelas luminosas, Já na terceira Esfera recebida Avante passa, e lá no Sexto Céu, Pera onde estava o Padre, se moveu. Canto II, 33 |
Aqui Vénus sobe à sexta esfera, de Júpiter, depois de recebida na terceira, a sua. Camões usa indistintamente as palavras esfera e céu, para designar o que Pedro Nunes chama esfera. |
A Máquina do Mundo, in Margarita Philosophica de Gregório Reisch (1508)
Nas estâncias 85 a 89 do Canto X, a deusa Tétis descreve a Gama as dez esferas do modelo do mundo. Perante um modelo tridimensional, a descrição é feita de fora para dentro, como quem se aproxima e vê cada vez melhor os seus pormenores. Assim, na estância 85 descreve-se o primeiro móbil (ou seja, a décima esfera), na 86 o segundo móbil (a nona esfera), nas 87 e 88 o firmamento (a oitava esfera) e finalmente na 89 as sete esferas dos sete planetas.
O primeiro móbil ou décima esfera:
Enfim que o sumo Deus, que por segundas Causas obra no Mundo, tudo manda. E, tornando a contar-te das profundas Obras da Mão Divina veneranda: Debaxo deste círculo, onde as mundas Almas divinas gozam, que não anda, Outro corre, tão leve e tão ligeiro, Que não se enxerga: é o Mobile primeiro. Canto X, 85 |
Por baixo do Paraíso está o primeiro móbil, a décima esfera. Camões usa aqui a palavra círculo para designar esfera. |
O segundo móbil, cristalino ou nona esfera:
Com este rapto e grande movimento Vão todos os que dentro tem no seio; Por obra deste, o Sol, andando a tento, O dia e noite faz com curso alheio. Debaxo deste leve, anda outro lento, Tão lento e sojugado a duro freio, Que, enquanto Febo, de luz nunca escasso, Duzentos cursos faz, dá ele um passo. Canto X, 86 |
Por baixo do primeiro móbil, leve e ligeiro, está o segundo móbil, lento. |
O Firmamento ou oitava esfera, onde se encontram as estrelas fixas:
«Olha estoutro debaxo, que esmaltado De corpos lisos anda e radiantes, Que também nele tem curso ordenado E nos seus axes correm cintilantes. Bem vês como se veste e faz ornado Co largo Cinto de ouro, que estelantes Animais doze traz afigurados, Apousentos de Febo limitados. Canto X, 87 |
No Firmamento, os corpos lisos são as estrelas fixas, o Cinto de Ouro é o Zodíaco e os doze animais são os doze signos ou aposentos do Sol, sobre o Zodíaco. |
Olha por outras partes a pintura Que as Estrelas fulgentes vão fazendo: Olha a Carreta, atenta a Cinosura, Andrómeda e seu pai, e o Drago horrendo; Vê de Cassiopeia a fermosura E do Orionte o gesto turbulento; Olha o Cisne morrendo que suspira, A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira. Canto X, 88 |
A deusa chama a atenção de Gama para as imensas constelações formadas pelas estrelas fixas sobre o firmamento. |
Sete esferas para os sete planetas:
Debaxo deste grande Firmamento, Vês o céu de Saturno, Deus antigo; Júpiter logo faz o movimento, E Marte abaxo, bélico inimigo; O claro Olho do céu, no quarto assento, E Vénus, que os amores traz consigo, Mercúrio, de eloquência soberana; Com três rostos, debaxo vai Diana. Canto X, 89 |
E debaixo do firmamento é possível encontrar sucessivamente as esferas de Saturno, Júpiter, Marte, Sol, Vénus, Mercúrio e Lua. Aqui Camões usa sempre a palavra céu, para designar o que Pedro Nunes chama esfera. |