Io



Esta histórica imagem mostra as primeiras provas de actividade vulcânica fora da Terra. A pluma eruptiva de Pele (a deusa havaiana do fogo) destaca-se claramente da forma de Io, e a mancha brilhante junto ao terminador é outra pluma, baptizada Loki, um deus nórdico. Crédito: Calvin J. Hamilton.
Em Março de 1979, três investigadores publicaram na revista Science um artigo onde postulavam a existência, em Io, de condições para a ocorrência de actividade vulcânica. Cerca de uma semana depois, Linda Morabito, uma engenheira de navegação da missão Voyager 1, reparou numa estranha mancha presente numa imagem da mais interior das quatro grandes luas de Júpiter, obtida pela câmara da sonda. Depressa se tornou claro que o que estava na imagem era o registo de uma erupção vulcânica, uma verdadeira fonte de lava que alcançava a espantosa altitude de 300 km. Estava confirmada a previsão de Peale, Cassen e Reynolds.

Mas como tinham eles chegado a essa conclusão? A órbita de Io em torno de Júpiter era conhecida: circular e síncrona. Dada a proximidade da enorme massa do maior planeta do Sistema Solar (maior que a da Lua em relação à Terra), o satélite devia apresentar-se deformado, mas de forma constante - não seria dessa forma que se geraria calor no interior de Io. Porém, este encontra-se em ressonância orbital com Europa: o primeiro efectua aproximadamente duas órbitas no mesmo período em que o segundo efectua uma. Este fenómeno afecta a circularidade da órbita de Io, e está na origem de grandes marés que literalmente dilaceram o interior desta lua, gerando grandes quantidades de calor e provocando a fusão dos materiais rochosos no seu interior.


As oscilações de Io na sua órbita, provocadas pela ressonância com Europa. Crédito: Don Davis.
Antes das missões (as duas Pioneer e as duas Voyager) que fizeram observações dos planetas externos, já eram conhecidas algumas características importantes de Io. A sua densidade era demasiado elevada para que o gelo fosse o seu principal componente – o que, atendendo à proximidade de Júpiter, era razoável, e reflectia a situação no Sistema Solar, em que os planetas internos são constituídos fundamentalmente por metais e silicatos, e os externos são ricos em voláteis. Na sua superfície predominava o enxofre. Por outro lado, tinham sido identificadas algumas interacções entre Io e o campo magnético de Júpiter. De facto, sabemos agora que a órbita do satélite se encontra dentro da magnetosfera do planeta gigante, e os átomos de enxofre e oxigénio que se escapam da superfície de Io acabam aprisionados (e ionizados) num anel à volta de Júpiter, dentro do qual se desloca o satélite. A partir da missão Voyager, tornou-se claro que Io era um mundo com uma intensa actividade geológica, apresentando uma superfície variada de amarelos, verdes e vermelhos, que alguns gostam de comparar a uma pizza... Mais importante, na superfície de Io faltam estruturas ubíquas nas superfícies planetárias conhecidas: não existem crateras de impacto. O significado é claro: a superfície deste mundo é extraordinariamente recente, em termos astronómicos. A renovação é permanente.


Um mundo cheio de cores: devido à actividade vulcânica, a superfície de Io sofre alterações constantes. Crédito: Calvin J. Hamilton.
De facto, sabemos hoje que Io é o corpo planetário mais activo no Sistema Solar, destronando a Terra. E de longe. O seu fluxo térmico médio é de cerca de 2,5 Watts por metro quadrado, mais elevado que o das regiões mais activas da Terra. E a morfologia da superfície de Io não deixa dúvidas: abundam edifícios vulcânicos de baixo declive, mas mesmo em regiões planas existem grandes caldeiras (até 200 km de diâmetro). E há algumas estruturas, também elas de origem vulcânica, que parecem não ter correspondência com o que se observa noutros planetas. Um tipo de erupção comum em Io é a pluma, como a que foi identificada na imagem da Voyager 1 já referida. Na realidade, uma delas, baptizada com o nome de Prometeu, foi descoberta pela Voyager e ainda estava activa quando a Galileo obteve imagens da mesma área, 17 anos depois – embora se tivesse deslocado cerca de 70 km. A mais provável força motriz para estas verdadeiras fontes é a acção do dióxido de enxofre que ferve (tal e qual como a água num geyser terrestre) ao ser aquecido pela lava.

Quanto à composição das lavas em Io, essa é uma questão que ainda não foi definitivamente resolvida. Por um lado, a extrema abundância do enxofre levou a que se pensasse num vulcanismo sulfuroso; mas, quando foram determinadas (por análise espectral) as temperaturas nalgumas erupções activas observadas pela sonda Galileo, foi reconhecido que eram demasiado elevadas para esse tipo de vulcanismo. Parece assim que predomina o vulcanismo silicatado; tal como na Terra, podem ocorrer várias composições, embora as morfologias observadas apontem para tipos básicos a ultrabásicos, de maior fluidez e temperatura. De facto, alguns autores sugeriram que estão presentes hoje em Io lavas de um tipo que foi comum na Terra há alguns milhares de milhões de anos atrás, quando o manto terrestre tinha muito mais calor para libertar.


O aspecto da superfície de Io numa imagem de alta resolução da Galileo: escoadas, caldeiras e lagos de lava. Crédito: Galileo, NASA.
Sobre a estrutura interna de Io, a primeira passagem próxima da sonda Galileo quando chegou ao sistema joviano forneceu alguns dados que ajudaram a estabelecer o modelo actualmente mais aceite (lamentavelmente, nessa passagem não foram obtidas imagens da superfície, devido a problemas no sistema de armazenamento de dados da sonda). Foi abandonado um modelo que supunha o interior quase completamente fundido, em favor de outro que inclui um núcleo denso, rico em ferro e parcialmente fundido; um manto silicatado globalmente sólido e rígido, mas possivelmente com uma camada em fusão, sob a litosfera (esta é, tal como na Terra, uma camada externa de maior rigidez). Existe uma crosta, que provavelmente já foi reciclada muitas vezes ao longo da história de Io; as taxas actuais de deposição de material na superfície desta lua variam entre 1 e 10 cm por ano.

Apesar da sua intensa actividade geológica, não existe em Io um motor global como a tectónica de placas na Terra. Há poucos sinais de deformação e fractura na superfície do satélite de Júpiter. Deve existir, porém, um mecanismo de reabsorção do material litosférico, já que esta camada (mecânica, não composicional) tem uma espessura mais ou menos constante, à volta de 30 km. Com cerca de 500 centros vulcânicos identificados, que a tecnologia actual permite em larga medida acompanhar a partir da Terra, Io é um mundo fascinante, e talvez aquele que mais atenção atrai em termos puramente geológicos, já que está longe ainda de ter revelado todos os seus segredos.



O modelo de estrutura interna de Io não difere muito do habitual, pelo menos numa grande escala: núcleo, manto e crosta. Crédito: Calvin J. Hamilton.