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O enxame aberto Haffner 18

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"Os físicos são revolucionários quando não podem ser conservadores"
- Jorge Dias de Deus


O fim de um dia em...

2016-06-16
Praticamente nada sabemos do homo eraumavezis, o último que usava magia e plenamente responsável pela extinção dos dragões. Tudo se perdeu no tempo, apenas ficaram os antros de veneração, ficaram os rituais, ficou o misticismo e as lendas que passam de geração em geração.

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“Oh não,” pensou o druida, franzindo a testa em descontentamento e como antecipação daquilo que sabia estar para vir. “Porquê é que elas não me conseguem poupar a isto?” Um cântico harmónico de vozes femininas pairava no ar. Mesmo ao longe, ainda se ouvia o entoar das vozes levadas pelo vento colina abaixo e sobre os campos verdes em redor. Perto do horizonte, o Sol preparava a sua saída diária.



Os solstícios são histórica e tradicionalmente festejados com grandes ajuntamentos de população. Todo o mundo costuma participar, à sua maneira. O festejo do solstício na Bielorrússia, na imagem, envolve uma enorme fogueira, cantigas e dança.


Neste fim da tarde os campos verdes não estavam vazios como era habitual. Muitas centenas de pessoas da população local e peregrinos de longe cobriam o vasto espaço em torno da colina, esperando pelo fim do ritual e pela festa de arromba e de amor livre que tradicionalmente se seguia. O topo da colina era coroado por um altar de pedras flanqueado por um par de rochedos enormes.

De repente, ouviu-se um som alto e estridente, fazendo lembrar o berro longo de um gato a ser pisado na cauda. Era a voz da velha curandeira-mãe, ao lado do druida. Numa mistura de canto e conto, ela proferiu palavras de veneração à mãe natureza, votos de uma grande colheita e de fertilidade abundante para tudo e todos.


Desde há milénios, os solstícios são motivo de festa. As festas, com toda a população em redor, asseguravam, no seu devido tempo, o reconhecimento dos momentos do ano mais importantes para a vida das pessoas. Crédito: AP
A mente do druida vagueou: “Chamam a isto uma oração? Ó meus deuses!” O druida estava visivelmente perturbado com a voz da anciã ao seu lado. Desejava profundamente estar num local bem longe dali. Depois, lembrando-se da sua tarefa iminente, retificou o seu pensamento, desejando que fosse antes a curandeira-mãe quem estivesse num local distante.

O Sol continuou a descida no horizonte. O rochedo do lado oeste do altar lançou a sua sombra sobre a terra batida. Lentamente, a ponta da sombra trepou o altar, como um caracol num passeio distraído, e avançou quase impercetível para uma marca gravada no centro do altar.

A curandeira-mãe terminou as suas preces. As vozes do coro das raparigas casadoiras também cessaram. Nem um pio se ouvia do lado da população. O silêncio profundo e repentino era como um bálsamo para os ouvidos sofridos do druida.

No mesmo instante em que o sol alcançou o horizonte, a ponta da sombra do rochedo tocou na marca ao centro do altar, dividindo o símbolo gravado em duas metades, uma perfeita e reluzente e outra sob a sombra escura. “Parece-se com a meia-lua,” pensou o druida, olhando o símbolo. O momento que toda gente esperava tinha chegado.

O druida virou as costas ao altar e olhou para a multidão. Ansiedade, mistério e expectativa estavam estampados nos rostos das pessoas. O céu vestiu-se de um vermelho crepuscular.
Com ar sereno e voz serena o druida exclamou: “Chegou a noite mais curta do ano...”.
Depois, levantou os braços para o céu, inspirou profundamente e acrescentou com euforia: “CHEGOU O VERÃO”.

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Os solstícios na Tailândia também não passam sem fogo. Porém, em vez de uma grande fogueira no chão, os fogos das festas do extremo oriente costumam levantar voo. Este ritual também é conhecido em terras lusas, nos balões de São João. Alias, a festa de S. João ocorre só um par de dias após o solstício. Parte das tradições desta festa são ainda memórias vivas dos ancestrais festejos da fertilidade, abundância e alegria, do solstício de verão dos povos de outra épocas. Infelizmente usurpada e deturpada, no seu sentido, pela igreja, hoje em dia, a festa continua ser alegre, embora regida pelo comércio.
Milhares de anos mais tarde, no mesmo dia, à mesma hora e, sensivelmente, na mesma cerimónia:
“Chegou o verão,” exclama um homem vestido de druida, cujo trabalho de dia é o de eletricista.
“Chegou a polícia,” gritam vozes em pânico, algures, na multidão.
“Chega. Dispersam já!” soa um altifalante da brigada antimotim, sobre os campos verdes, junto ao círculo de pedras ancestrais classificadas como património da humanidade.

E assim começa mais um verão do homo sapiens sapiens, o último que se autointitulou de duplamente sábio e, já agora, corresponsável pela extinção do homem de Neandertal.

Dia 20 chega o verão.

Fenómenos da semana
19.6. 01:05 Lua perto de Saturno (2,5° N)
20.6. 12.04 Lua cheia
20.6. 23:27 Solstício, início do verão no hemisfério norte

Contacto para as crónicas sobre a atualidade celeste: ceu@astronomia.pt