O Cruzeiro do Sul
Deixando de poder contar com a Estrela Polar, os nossos navegadores tiveram que encontrar novas formas de orientação nos céus do hemisfério sul. A grande companheira de viagem no hemisfério sul passaria a ser a constelação do Cruzeiro do Sul.
Cruzeiro do Sul, painel de azulejos de Jorge Colaço, 1922. (Pavilhão Carlos Lopes, Lisboa)
| Já descuberto tínhamos diante, Lá no novo Hemisperio, nova estrela, Não vista de outra gente, que, ignorante, Alguns tempos esteve incerta dela. Vimos a parte menos rutilante E, por falta de estrelas, menos bela, Do Pólo fixo, onde inda não se sabe Que outra terra comece ou mar acabe. Canto V, 14 | A nova estrela trata-se na realidade de uma constelação, o Cruzeiro do Sul. Segundo Camões, tal constelação, não vista de outra gente, fora identificada pela primeira vez pelos marinheiros portugueses. |
Mas terão sido mesmo os navegadores portugueses os primeiros a identificar a constelação do Cruzeiro do Sul, dando-lhe a forma de uma cruz?
A investigação que Luciano Pereira da Silva desenvolveu em torno desta estância é decerto o ponto alto da sua obra A Astronomia dos Lusíadas, contestando opiniões que dominavam já a literatura internacional e demonstrando que foram de facto os marinheiros portugueses quem descobriu quer a constelação quer o seu uso náutico.
O Cruzeiro do Sul é um grupo de cinco estrelas (α, β, γ, δ e ε) em forma de uma cruz.
| α e γ formam a haste da Cruz, que aponta para o Pólo Sul. β e δ formam os braços da Cruz. α diz-se Pé da Cruz e é a mais próxima do Pólo. |
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No tempo de Ptolomeu (circa 85-circa 160), a estrela α (Acrux) estava a uma distância de 37º42’ do Pólo Sul. Como a latitude de Alexandria é de 31ºN, a estrela α atingia naquele lugar uma altura de 6º acima do horizonte. Como α é a estrela mais próxima do Pólo Sul, todas as outras estrelas do Cruzeiro eram também visíveis para Ptolomeu. Ptolomeu catalogou apenas três delas (α, β e δ), incluindo-as na constelação do Centauro, mas não identificou a cruz.
As Constelações do Sul por Johannes Hevelius (1611-1687) com a posição do Cruzeiro em relação ao Centauro.
| A simplicidade da utilização do Cruzeiro reside no facto de as estrelas α e γ terem aproximadamente a mesma ascensão recta. Por esta razão, quando α passa pelo meridiano do lugar, o mesmo acontece a γ, e a haste α-γ fica vertical.
No momento em que a haste fica vertical mede-se a altura da estrela α para calcular a latitude do lugar, não havendo necessidade de conhecer a hora da passagem das estrelas pelo meridiano./td> |
O mérito dos navegadores portugueses em relação a esta constelação foi posto em causa por Alexandre de Humboldt (1769-1859) e pelos historiadores de astronomia que o seguiram, ao afirmarem que a mais antiga referência ao Cruzeiro do Sul estaria numa carta de Andrea Corsali ao duque Julião de Medicis, a 6 de Janeiro de 1515, enviada a partir de Cochim.
| O Cruzeiro do Sul, denominado croce maravigliosa, numa carta que Andrea Corsali enviou ao duque Julião de Medicis, a 6 de Janeiro de 1515, a partir de Cochim. Segundo Humboldt, esta seria a mais antiga referência ao Cruzeiro do Sul. |
Na verdade, Andrea Corsali tinha ido para a Índia ao serviço do rei D. Manuel. Na carta referida, com data de 6 de Janeiro de 1515 e enviada a partir de Cochim, Corsali conta a sua viagem ao duque Julião de Medicis. Ele descreve una croce maravigliosa nel mezzo di cinque stelle, e junta a figura acima reproduzida. A constelação é de facto o Cruzeiro do Sul, mas como Corsali estava a bordo de um navio português, foram concerteza os marinheiros portugueses que lha deram a conhecer. Cochim seria um local privilegiado para observações das estrelas, já que tem latitude 10ºN, e dali era possível observar tanto a Estrela Polar como todo o Cruzeiro do Sul.
Humboldt desconhecia no entanto uma outra carta bastante anterior à de Corsali e também com uma referência ao Cruzeiro. Trata-se de uma carta escrita em Vera Cruz por Mestre João para o rei D. Manuel, datada de 1 de Maio de 1500.
| …e estas estrellas principalmente las de la crus son grandes casy como las del carro… Carta de Mestre João a D. Manuel, 1 de Março de 1500 Mestre João fez este desenho na carta, onde se pode reconhecer o grupo das cinco estrelas do Cruzeiro. |
Esta carta mostra que já em 1500 os nossos marinheiros reconheciam um grupo de cinco estrelas a que chamavam cruz, podendo nós agora concluir que não foi decerto Corsali quem mostrou o Cruzeiro aos nossos marinheiros, mas foram sim os nossos marinheiros que lhe indicaram aquela constelação.
Para além desta referência, que é muito anterior à de Corsali, existe ainda em português uma exposição completa do uso náutico do Cruzeiro, escrita em 1514 pelo piloto João de Lisboa, o Tratado da Agulha de marear, onde também se dão instruções para observar o Cruzeiro. Segundo o Tratado, o Cruzeiro deve ser observado quando estiver empinado, pois é nessa altura que o Pé (α) está sobre o meridiano.
[…] quãdo tomares este cruzeiro do sull halo de tomar quãdo esteuer ëpinado […] e tomaras a estrella do pee e olharas bë que estë norte sul hũa com a outra e lleste oeste os braços […]
Sabia-se já que a distância do Pé (α) ao Pólo era de 30º. Sabendo a altura do Pé, bastava somar ou subtrair 30º para conhecer a latitude do lugar.
| Conceito digno foi do ramo claro Do venturoso Rei que arou primeiro O mar, por ir deitar do ninho caro O morador de Abyla derradeiro. Este, por sua indústria e engenho raro, Num madeiro ajuntando outro madeiro, Descobrir pôde a parte que faz clara De Argos, da Hidra a luz, da Lebre e de Ara. Canto VIII, 71 | As constelações Argos, Hidra, Lebre e Ara são todas constelações do sul, mas todas elas são visíveis (pelo menos parcialmente) no hemisfério norte. |
Mostra assim Camões que os navegadores descobriram não só novas terras e novos mares, mas também “novos céus” (Canto VIII, 71) e “novas estrelas” (Canto V, 4), como já afirmara Pedro Nunes.
Os portugueses ousaram cometer o grande mar Oceano. Entrarã por elle sem nenhũ receo. Descobriram nouas ylhas: nouas terras: nouos mares: nouos pouos: & o q mays he: nouo ceo: & nouas estrellas.
Tratado em defensam da carta de marear
Pedro Nunes (1537)
As Constelações do Sul por Johannes Hevelius (1611-1687). A circunferência a vermelho indica a região que contém as estrelas invisíveis para um observador a uma latitude superior a 40ºN.
Os marinheiros portugueses, ao navegarem pelos dois hemisférios, puderam conhecer as constelações dos hemisférios norte e sul, as mesmas que a deusa Tétis mostra no final a Gama sobre a machina do mundo.
| Olha, por outras partes, a pintura Que as estrelas fulgentes vão fazendo: Olha a Carreta, atenta a Cinosura, Andrómeda e seu pai, e o Drago horrendo. Vê de Cassiopeia a fermosura E do Orionte o gesto turbulento; Olha o Cisne morrendo que suspira, A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira. Canto X, 88 | A Carreta é a Ursa Maior. A Cinosura é a Ursa Menor. O pai de Andrómeda é Cefeu. Os Cães são os cães de Orionte. |
A Deusa Tétis mostra enfim a Gama a machina do mundo, e sobre ela uma esfera pintada de estrelas e constelações, as mesmas afinal que guiaram e acompanharam Gama e a sua armada ao longo de uma viagem heróica.


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