As Ursas
As constelações Ursa Maior e Ursa Menor eram duas auxiliares preciosas na navegação no hemisfério norte. A Estrela Polar, que pertence à Ursa Menor, está praticamente sobre o Pólo Norte Celeste, e a sua altura a partir de um lugar é quase coincidente com o valor da latitude do mesmo lugar.
Quando se viaja para Sul, estas constelações vão-se aproximando do horizonte, mergulhando progressivamente no mar, até se tornarem invisíveis. É esse fenómeno que Camões descreve na seguinte estância.
Assi, passando aquelas regiões Por onde duas vezes passa Apolo, Dous invernos fazendo e dous verões, Em quanto corre dum ao outro Pólo, Por calmas, por tormentas e opressões, Que sempre faz no mar o irado Eolo, Vimos as Ursas, a pesar de Juno, Banharem-se nas águas de Neptuno. Canto V, 15 | A armada já se tinha deslocado o suficiente para Sul para que as constelações das Ursas passassem abaixo do horizonte. |
De acordo com Metamorphoses de Ovídio, a ninfa Calisto foi seduzida por Júpiter e dessa relação nasceu um filho, Arcade. Juno, a esposa de Júpiter, transformou Calisto numa ursa para que esta deixasse de ser atraente aos olhos do seu marido. Pouco depois, Arcade, andando à caça no bosque, viu a ursa de olhos fitos nele, e quase matou a mãe por engano, não fosse a intervenção de Júpiter, que com um vento repentino os atirou a ambos para o céu, onde ficaram na forma de duas constelações: a Ursa Maior (Calisto) e a Ursa Menor (Arcade). Juno porém vingou-se novamente, pedindo à deusa Tétis e ao deus Oceano (Neptuno) que não permitissem às ursas banharem-se nas suas águas.
Na verdade, as Ursas Maior e Menor eram em Portugal, no tempo de Camões, circumpolares, assim como o eram para Ovídio, no seu tempo, em Roma. No entanto, com o movimento relativo das estrelas, esta situação está lentamente a mudar.
Num lugar de latitude 40ºN sobre a Terra, nunca têm ocaso as estrelas sobre um círculo de centro no Pólo Norte Celeste e com declinação entre 50ºN e 90ºN (ou seja, as estrelas que distam menos que 40º do Pólo Norte Celeste). Por outro lado, a partir do mesmo lugar, são invisíveis todas as estrelas sobre um círculo de centro no Pólo Sul Celeste e com declinação entre 50ºS e 90ºS (ou seja, as estrelas que distam menos que 40º do Pólo Sul Celeste).
A circunferência a vermelho é o conjunto dos pontos a uma distância de 40º do Pólo Norte e delimita a região do céu que nunca tem ocaso num local de latitude 40ºN.
Distâncias de α ao Pólo Norte | Distâncias de η ao Pólo Norte | ||
Ano | Distância | Ano | Distância |
-2000 | 17,52º | -2000 | 18,96º |
-1500 | 16,78º | -1500 | 21,64º |
-1000 | 16,78º | -1000 | 24,41º |
-500 | 17,53º | -500 | 27,22º |
0 | 18,92º | 0 | 30,03º (a) |
+500 | 20,83º | +500 | 32,80º |
+1500 | 25,60º | +1500 | 38,15º (b) |
+1800 | 27,17º | +1800 | 39,69º |
+1900 | 27,71º | +1900 | 40,19º |
+2006 | 28,95º | +2006 | 40,71º |
(a) Tempo de Ovídio (b) Tempo de Camões |
Ao longo dos últimos séculos, a Ursa Maior tem vindo a afastar-se do Pólo Norte. No tempo de Camões, a estrela η só tocava o horizonte num lugar de latitude 38ºN. Neste momento, a mesma estrela já toca o horizonte num local de latitude 40º 43'N.
Comparando a tabela anterior com o mapa de Portugal, observamos que, no tempo de Vasco da Gama, bastaria à armada viajar 1º para Sul para ver mergulhar a estrela η da Ursa Maior. Hoje em dia, a estrela η da Ursa Maior mergulha no horizonte a partir da latitude 40º43’N, sendo ainda circumpolar no Porto, mas já não na Guarda.
A partir do equador, todas as estrelas da constelação mergulham no horizonte, embora todas tenham ocaso e nascimento. Mas a partir de que latitude Sul se deixa de ver a Ursa Maior? Na próxima estância, Camões fala-nos dos povos que nunca as sete flamas viram.
A expressão sete flamas designa as sete estrelas da Ursa Maior.
Crescendo cos sucessos bons primeiros No peito as ousadias, descobriram, Pouco e pouco, caminhos estrangeiros, Que, uns sucedendo aos outros, prosseguiram. De África os moradores derradeiros, Austrais, que nunca as Sete Flamas viram, Foram vistos de nós, atrás deixando Quantos estão os Trópicos queimando. Canto VIII, 72 |
De todas as estrelas da Ursa Maior, η (Alkaid) é a mais afastada e α (Dubhe) a mais próxima do Pólo Norte. Quando nos deslocamos para sul, a estrela η é a primeira a deixar de ser circumpolar, mas também a última a ficar totalmente invisível, enquanto que a estrela α é a primeira a deixar de ser vista.
A estrela α estava no tempo de Camões (e de Gama) a 25,60º do Pólo Norte, sendo portanto invisível em lugares a sul da latitude 26ºS. A última estrela da constelação a ficar totalmente invisível é η o que naquele tempo só acontecia a sul de 38ºS.
Nesta tabela verificamos que nem no Cabo da Boa Esperança a estrela η é totalmente invisível. O facto é que a partir de 30ºS (antes mesmo de passar o cabo da Boa Esperança), algumas das estrelas da constelação de Ursa Maior já são invisíveis e as restantes erguem-se pouco acima do horizonte, deixando a constelação de poder ser identificada, podendo assim Camões afirmar que os moradores dessas paragens não conheciam esta constelação. |
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Vedes a grande terra que contina Vai de Calisto ao seu contrário Pólo, Que soberba a fará a luzente mina Do metal que a cor tem do louro Apolo. Castela, vossa amiga, será dina De lançar-lhe o colar ao rudo colo. Várias províncias tem de várias gentes, Em ritos e costumes, diferentes. Canto X, 139 | Calisto é a constelação de Ursa Maior, mas aqui Camões usa este nome para se referir genericamente ao Pólo Norte. |