As Pirâmides do Egipto


No último artigo falamos das ideias cosmogónicas do antigo Egipto, aquelas que foram utilizadas para toda a concepção do Cosmos por parte dos antigos egípcios. Juntamente com os “Textos das Pirâmides”, o “Livro dos Mortos” é um fac-símile de maior importância para completar a nossa compreensão de toda a filosofia egípcia.

O Livro dos Mortos (Prt m hru), é o livro ilustrado mais antigo do mundo. Surge-nos pela primeira vez, como com conjunto organizado de textos na XVIII dinastia (c. 1550 a. C.). No entanto toda a sua origem data do reinado de Unas (c. 2345 a. C.), último rei da V dinastia, que teve a primeira pirâmide “não muda”, devido a existência dos textos inscritos no seu interior.

O egiptólogo alemão Richard Lipsius deu a este conjunto de textos o nome de Livro dos Mortos. Lipsius catalogou-os num fac-símile da época ptolemaica dividido em 165 capítulos ou fórmulas

A “Recensão Tebana” ,no início da XVIII Dinastia, trouxe com ela mudanças a todos os níveis. Um dos maiores feitos deste período foi a compilação e escolha criteriosa de todos os textos funerários escritos até então, sem, no entanto, qualquer preocupação com a organização sequencial interna.

Assim sendo a evolução foi dada desta forma:





Posteriormente, na XXVI dinastia (650 a. C.) irá surgir uma nova recensão, a “Recensão Saíta”, que se caracterizará exactamente por procurar uma ordem na sequência das fórmulas (capítulos).

A Filosofia dos textos escritos em hieróglifos cursivos (mais tarde escrito em hierático (XXI Dinastia)), é na sua maioria, acompanhada por ilustrações. Por vezes existem apenas as vinhetas (ilustrações) para representar as ideias e transmitir aquilo que os antigos nos quiseram legar.


O Livro dos mortos, ao contrário dos textos das pirâmides, era permitido a qualquer pessoa no antigo Egipto, dependendo apenas da capacidade económica para a obtenção de um livro melhor do que o outro.

Na vinheta, visualizamos o sarcófago sobre a barca solar que transportará o morto, à semelhança de Rá, isto é a semelhança do Sol que circula diariamente no céu nocturno desde o ocaso até o nascer. Os egípcios preocupavam-se particularmente com o destino dos seus corpos e mentes após a morte, daí a preocupação de assemelhar tal acto a um deus maior – o Sol.

As Pirâmides e seus primórdios

Por volta de 2789 a.C. e durante todo o Império Antigo (dinastia III a VI), a necessidade de se estender o braço de um deus na terra deu origem a um período de grandes construções, a arquitectura (sobretudo menfita) teve um extraordinário desenvolvimento e uma rápida expansão.

Nesse período a pedra substituiu de forma radical o barro, e a diferenciação volumétrica nos edifícios teve aqui o seu impulso e êxtase. Esse período viu nascer perto de uma centena de complexos piramidais no lado ocidental das margens do Nilo.

As construções fúnebres típicas das primeiras dinastias tinham o nome de Mastaba1 (Figura 2.1). As suas origens remontam a pequenas colinas ou túmulos pré-históricos que indicavam o lugar onde o defunto repousava. O seu objectivo seria de prolongar a vida a quem nele fosse enterrado, consoante o estatuto social apresentava elementos complementares como os baixos-relevos, pinturas, estelas, mobiliário funerário, estatuas e inscrições. Nesse tipo de sepulturas, convenientemente ampliadas e nalguns casos adornadas interiormente foram enterrados os primeiros reis do Egipto.

Foram encontradas muitas mastabas de diferentes períodos da história egípcia, no entanto apenas as primeiras tem um perfil real, como as Mastabas dos reis Uadji e Udimu da primeira Dinastia. A mais interessante, a nível arquitectónico, é a Mastaba do rei Nebetka, formada por diferentes super-estruturas e transformando-se assim num protótipo do que mais tarde viria a ser a pirâmide escalonada.


Figura 2.1 – Mastaba - A – Pátio de entrada, B – Acesso ao tumulo, C – Corredor de entrada, D – Antecâmara, E – Capela
Tudo leva a crer que a forma piramidal tenha surgido no reinado de Horus Neter-ir-Khet o segundo faraó da III Dinastia (2690 -2613 a.C.)), mais conhecido pelo nome de Djoser. Situada próxima de Mênfis (então capital do Egipto) a necrópole de Saqqara, que já tinha os complexos fúnebres de vários faraós anteriores, veio a ser o local escolhido para aquilo que se pode considerar o primeiro ensaio de uma pirâmide. Toda a técnica egípcia de construção de pirâmides baseou-se na experimentação (figura 2.2).

Jean-philippe Lauer, egiptólogo que trabalhou inúmeros anos em Saqqara, diz-nos que a pirâmide escalonada de Dsojer, “aquele que é mais divino do que a confraria dos deuses”, consiste numa simples Mastaba (Figura 2.2). Houve evidentemente uma evolução arquitectónica, mas apesar de parecer ser na sua estrutura externa que a diferença reside, é no seu interior que encontramos as maiores mudanças, com a sua sala sepulcral de granito rosa vindo de Assuão e um número considerável de galerias e mobiliário.

O faraó dá ideia de querer construir um local funerário para toda a família, o que explica as salas contidas na Mastaba , originalmente com 6 metros de altura e que deu lugar a uma pirâmide de seis graus com altura próxima dos 60 metros.

Outra modificação visível é o revestimento de calcário branco das minas de Tourah, próximas de Menfis, o que permitia à pirâmide ser vista a uma distância considerável. O seu brilho poderia assemelhar-se ao de uma estrela, e impressionar quem dela se aproximasse, demonstrando assim o grande poderio do faraó. Todo esse complexo, de cerca de 15 hectares foi rodeado por um muro de pedra em que a única entrada era feita pelo lado oriental.

Toda essa construção baseava-se num único pressuposto: imitar o monte primogénito de onde surgiu o primeiro deus, e facilitar a subida do faraó para junto dos deuses.

Imhotep, “Aquele que vem em paz”

Para construir tal complexo piramidal foi necessário uma organização impar, uma boa gestão dos recursos e uma forte liderança. O faraó Djoser contava com um arquitecto (também astrónomo) de uma capacidade inata para as grandes construções, o seu nome era Imhotep. Imhotep, gozou em vida um prestígio incalculável vindo a ser considerado, depois da morte, pai da arquitectura no Egipto. Adorado pelos seus seguidores foi, na época Saita, considerado filho de Ptah. Para além da própria pirâmide, esse arquitecto está na base da construção de vários outros complexos arquitectónicos dentro do complexo de Saqqara, como é o templo mortuário da fachada Norte ou a serdab construída em pedra talhada e abrigando uma estatua do próprio faraó. Através dessas outras construções os antigos egípcios acreditavam na ressurreição do seu faraó e na circulação livre da sua essência espiritual, o Ka.

Em termos Astronómicos

Para analisar as ligações das pirâmides à astronomia, e deixando as lindas pirâmides do faraó Seneferu para trás, olharemos para as grandiosas pirâmides do planalto de Gizé. Sobre o planalto de calcário do planalto de Gizé, não muito longe daquela que é hoje uma das maiores metrópoles do mundo - O Cairo, encontra-se um complexo magnifico dominado pela construção de três pirâmides, arquitetonicamente perfeitas. Essas três maravilhas do mundo antigo foram construídas por três dos mais ilustres faraós da IV Dinastia: Khufu, Khafra e Menkaura, cujo reinado não ultrapassou o quarto de século para cada um deles.


Um dos pontos comuns entre todas as pirâmides existentes no Egipto, é a sua entrada direccionada para o eixo Norte. A importância que os egípcios davam a uma orientação cardinal nas suas construções levou a um grande domínio de certas ferramentas como a trigonometria e a astronomia.

Do complexo piramidal do faraó Khufu (Quéops) filho e sucessor de Senéferu subsiste apenas a pirâmide central baptizada de Grande Pirâmide. A sua perfeita construção tanto a nível arquitectónico como a nível astronómico, marca o apogeu da era das grandes construções.

Uma abertura feita pelos homens do Califa Al-Mamoun no final do milénio anterior (990 d. C.), deixa transparecer o interior da pirâmide, única em muitos pontos. Uma das características que salta logo a vista é a quasi-sobreposição das três câmaras segundo o eixo da pirâmide. A primeira, a sala subterrânea encontra-se na perfeição no eixo, a segunda, a chamada sala da rainha encontra-se um pouco desviada da anterior. Por fim, a sala do rei também ela ligeiramente desfasada do eixo. Esta ultima sala, toda ela feita de granito rosa proveniente das minas de Assuão, tem acesso por um longo corredor inclinado de vários metros de comprimento e com uma magnífica estrutura de adoba “de Berço” fazendo lembrar uma pirâmide de degraus invertida. Nas paredes da sala sepulcral do faraó encontram-se algumas condutas de ar, que apesar de se acreditar na sua utilidade em renovar o ar dentro da pirâmide, teve uma função muito mais simbólica do que utilitária.

É aqui que a Astronomia tem um papel fundamental na resposta a certas questões. Porque razão existiam condutas minúsculas com uma certa orientação? Para os antigos egípcios as pirâmides eram máquinas de renascimento, para tal era necessária uma determinada orientação que vigorasse e que estivesse de acordo com todas as crenças religiosas e cosmogónicas. As pirâmides eram em si: “O monte da criação”, a montanha primordial de onde surgiu. Era por isso importante que a pirâmide fosse um monumento perfeito que se assemelha-se aos céus e que fizesse a junção entre a Terra e o Céu.

Na Grande pirâmide de Gizé, para além dessa orientação segundo a direcção Norte-Sul, existem outras condutas que nos leva a determinadas zonas do céu nocturno.

Alexander Badawy e Virgínia Trimble foram os primeiros a suspeitar de uma determinada orientação para esses corredores (Figura 2.3). A conduta de ar da fachada Sul da sala leva-nos em determinado período do ano a culminação sucessiva das três estrelas da constelação de Orion: Alnitak, Alnilam e Mintaka. Recorde-se que Orion era para os antigos egípcios uma representação nos céus de Osíris. Do outro lado, na fachada Norte, temos a saída de ar orientada para aquela que era a estrela polar há cerca de 5000 anos, a estrela de Thuban, uma das estrelas da constelação do Dragão.

Por outro lado, temos a dita “sala da rainha”, também ela com as suas próprias saídas de ar orientadas para determinado local nos céus, fazendo aqui sentido essencialmente a orientação Sul para a Estrela Soped (Sirius) que era entre outras a representação da deusa Isis nos céus.

Alguns vestígios foram encontrados na proximidade da pirâmide central de Gizé que confirmam um plano geral, praticamente idêntico entre as diferentes pirâmides do planalto. Desta forma existia nessas três pirâmides um templo junto a fachada oriental com uma ligação perpendicular ao rio Nilo.

Esse simbolismo, assim como a orientação estelar vem a completar o nosso conhecimento acerca da compreensão do universo pelos antigos egípcios, que mais tarde viria a ser escrito no interior das pirâmides sobre forma de “texto das pirâmides”.



Figura 2.3 – Orientação astronómica da pirâmide de Quéops


A grande esfinge de Gize

No sopé da pirâmide de Gizé, os arquitectos do reinado de Kafrê transformaram uma grande rocha naquilo que é hoje uma escultura viva. Adoptando uma posição de sentada, um Leão com cabeça de homem foi aí erigido olhando para o oriente.

Este magnífico exemplar da grandiosidade do Egipto só foi conservado graças aos seus sucessivos esquecimentos que permitiram que as areias vindas do deserto o cobrissem evitando a erosão. Dentro dessa esfinge existe um templo.

Porquê corpo de Leão?

Acreditava-se que o Leão personificava a força e a bravura do faraó. Nesse caso particular poderíamos dar uma outra explicação, essa ligada a factores astronómicos, isto é, na direcção do olhar da esfinge podemos observar o nascer helíaco do Sol logo no Equinócio, tendo por detrás a constelação do Leão. Não existem provas evidentes do conhecimento por parte dos egípcios nesse determinado período, da constelação do Leão, no entanto podemos traçar aqui esta coincidência (figura 2.4).

Para além desse factor, tudo indica que uma cerimónia era celebrada todos os dias, em honra dos três aspectos complementares do deus Sol: Khépri, Rá e Atoum, prova disso são as três salas cerimoniais no interior do colosso, uma para nascente, uma no centro e outra para poente.

Existe uma outra particularidade que os arqueólogos e astrónomos referem com frequência, a de que os antigos egípcios tentaram ao longo das suas construções “faraónicas”, construir algo que se assemelhasse aos céus, de tal forma que o próprio complexo de Gizé assemelha-se ao cinturão da constelação de Orion (conhecida nesse tempo e personificando o deus Osíris).

1Palavra árabe que significa banco.

Bibliografia:

  • Maria Trindade Lopes, O livro dos mortos do antigo Egipto – Assírio & Alvim 1991
  • R. Lepsius apresentou a primeira versão do Livro dos Mortos em 1842, The Papyrus of Ani in the Brithish Museum, London, 1895.
  • Antoniadi, E.M, L’astronomie Égiptienne depuis les temps les plus reculés j’usqua la fin de l’époque alexandrine, Gauthier, Paris 1934.
  • Clagett M., Ancient Egyptian science, American Philosophical Society, 1995.
  • Krupp, E.C., In search of ancient astronomie, Doubleday, Garden City 1978.
  • Lee Davis, V., Identifying ancient egyptian constellations, in “ArAs”, 9 8supp. Di “JHA”9, XVI, pp. 102-04.
  • Neugebauer, Otto; Parker, R., Egyptian Astronomical text, 3 voll., Providence, Rhode Island and Londen, 1960-1969.
  • Neugebauer, Otto, The Egyptian “Decans”, in “VA”, 1, 1955, pp.47-51.
  • Parker, R. Ancient Egyptian astronomy, in “PRSL” , 1974.
  • Parker, R., The calendars of Ancient Egipt, in “SAOC”, 26, 1950.