A invenção da hora legal I



O meridiano de Greenwich em Inglaterra desenhado na face de um dos edificios do Observatório.
“Escolher o seu tempo é economizar”, escreveu Francis Bacon. Em nossos dias, conhecer a hora em diferentes locais não é mais um problema, mas um século atrás era um problema muito complicado. Cada localidade utilizava o seu próprio tempo solar que variava de um minuto em 18km de leste para oeste, a hora mais tardia estava situada a leste. Na época na qual 18km constituía um longo trajeto, essas diferenças de horas geravam poucos problemas, pois essas pessoas não ultrapassavam essas distâncias rapidamente. Foi com o advento das estradas de ferro e a multiplicidade de horas municipais, que esse problema se tornou mais sério para os viajantes que com freqüência eram obrigados a fazer correspondência entre um trem e outro, sendo obrigado a esperar o próximo trem durante, às vezes, horas. Isso gerou também o problema de segurança: dois trens que utilizassem referencias temporais diferentes corriam o risco de circular na mesma via ferroviária em direções opostas.

Ao meio dia, em 18 de novembro de 1883, a rede ferroviária norte americana, adotou um sistema de tempo legal baseado em fusos horários de uma hora. No entanto, foi necessário muito tempo antes que esse sistema se estendesse para todo o planeta.

Na realidade, quem foi o responsável pelo desenvolvimento de um tal sistema de hora universal? Nos livros de história, as respostas variam de acordo com a nacionalidade dos autores. Para os canadenses, foi o engenheiro civil Sandford Fleming (1827-1915), para os ingleses, o físico inglês William Hyde Wollaston (1766-1828) ou Abraham Follett Osler (1808-1903), enquanto os norte-americanos o atribuem ao educador Charles Dowd (1825-1904).

Eis aqui a verdade: a Inglaterra é de qualquer maneira a primeira a normalizar a hora, as companhias ferroviárias impuseram a hora legal à grandeza do país utilizando a hora de Londres. Em novembro de 1840, a Great Western Railway torna-se a primeira companhia ferroviária a adotar a hora de Londres. Desde de 1847, a maior parte das companhias ferrovias já haviam adotado a hora de Londres, que só seria obrigatória em 1880. Numerosas localidades resistiam vivamente a hora legal porque elas detestavam que Londres se intrometesse nas suas vidas.

William Wollaston, cientista conhecido por haver observado as riscas escuras dos espectros de absorção, foi o primeiro a conceber a hora normal, mas a idéia não foi aceite. Abraham Osler popularizou a idéia. Na época, Osler era o guardião do relógio do Philosophical Institut de Birmingham. Esse relógio fornecia a hora solar com sete minutos de avanço em relação à cidade de Londres. Osler realizava observações astronômicas regulares no terraço do Instituto e reajustava a hora do seu relógio. Todos os Domingos, os guardiões dos relógios das igrejas da cidade ajustavam a sua hora com a do Instituto. Osler era então a favor da hora legal de Greenwich; mas perguntava a si mesmo como fazê-los aceitá-la sem provocar a revolta da maior parte da população de Birmingham. Num domingo de manhã, ele decidiu atrasar o relógio em sete minutos. Na manhã seguinte, quando as pessoas chegam ao trabalho, em atraso em relação às pêndulas das usinas e dos comércios, todo mundo se revoltou contra os instrumentos de relojoarias e os relojoeiros, provocando uma crise. Ninguém sabia que o tempo havia sido manipulado por Osler que guardou o seu segredo durante anos.

O problema se repetiu do outro lado do Atlântico. A América do Norte contava 144 fusos horários oficiais. Charles Dowd, um educador de Madison, Connecticut, sugeriu a adoção de quatro meridianos standard, dividindo os Estados Unidos em 4 fusos horários. A partir de 1869, Dowd convocou os representantes das estradas de ferro para expor as suas idéias, pronunciando conferências, enviando textos aos jornais e aos ciclos científicos ao mesmo que preparava os horários de trens. Em 1870, ele propôs sua idéia ao Congresso dos EUA, mas, a idéia não foi aceita.

O canadense Sir Sanford Fleming teve um papel decisivo no desenvolvimento de um sistema que permitisse estabelecer a hora legal. Segundo todas as aparências, foi depois de ter passado uma noite desconfortável em uma estação, em razão de um desprezo relativamente ao problema da hora, que ele passou a defender o conceito do fuso horário. Fleming que deixou a Escócia em 1845 para estabelecer-se no Canadá, além de superintende ferroviário, foi um dos engenheiros em construção mais conhecido no século XIX. Fleming foi a origem dos esforços que conduziram a adoção dos fusos horários utilizados pelas companhias ferroviárias a partir de 1883 e dos fusos horários que são hoje utilizados em escala mundial. Ele preconizou a divisão do planeta em 24 fusos horários, cada um deles correspondendo a 15º de longitude e o intervalo de tempo de uma hora, começando pelo meridiano de Greenwich (longitude zero). Teve também um papel determinante na convocação da conferência internacional do meridiano origem (The International Meridian Conference), em Washington, da qual deveriam participar representantes de todos os países da Europa, da América do Norte, América do Sul e da Ásia com o objetivo de adotarem o sistema da hora local de Fleming. Assim, mesmo que ele não tenha inventado a hora legal ele foi, no entanto, quem mais lutou para que a sua idéia fosse estendida para todo o planeta.

Até então usava-se o meridiano da menor e mais ocidental e meridional das Ilhas Canárias, El Hierro (O ferro), também conhecida como Isla Meridiana (Ilha do meridiano), por ter sido usada como meridiano origem pelos cartógrafos franceses. Situada no extremo sudoeste do arquipélago das Canárias, a cerca de 130 km a sudoeste de Tenerife, esta ilha foi usada por muitos navios da Europa continental, sendo convencionalmente definido como sendo o meridiano de 20º oeste de Paris (17º39’46” oeste de Greenwich). Outros meridianos de origem usados eram os de Roma (1° 30' 28" leste de Greenwich), Copenhague, Jerusalém, São Petersburgo (Pulkovo meridian, 30° 19’ 42.09" oeste de Greenwich), Pisa, Paris (2° 20' 14" leste de Greenwich), Filadélfia , Rio de Janeiro etc.



Detalhe do meridiano de Greenwich marcado no chão no Observatório de Greenwich em Inglaterra.


Era uma verdadeira festa de meridianos. Em conseqüência de um falso nacionalismo – cada país queria que os mapas ou cartas náuticas adotassem para origem das longitudes o meridiano que passasse pelo seu observatório nacional -, os comandantes e pilotos dos navios eram obrigados a estarem atentos as mudanças de meridiano origem, quando consultavam diferentes mapas, bem como fazerem correções para passar de uma carta para outra. Felizmente, mais de dois terços das cartas e mapas usados na navegação mundial, além de serem de origem inglesa, adotavam como meridiano de origem das longitudes aquele que passava pelo o observatório de Greenwich; desde 1675, um observatório científico ali se encontrava instalado.

A necessidade de unificação da hora tornou-se uma exigência inadiável e legítima tendo em vista a multiplicação a um grau inesperável das relações entre as nações.Em conseqüência da aplicação do vapor à marinha, da eletricidade aos meios de comunicação, as transações comerciais se intensificavam com grande rapidez a cada dia que passava, mostrando as desvantagens e os inconvenientes de unidades de medidas especiais para cada nação, pois o sucesso das transações exigia uma tradução fácil das medidas em todas as suas formas, inclusive do tempo, ou seja, da hora. Ainda no século XVIII, a França tinha tomado a iniciativa de criar um sistema decimal assim como a proposta de um sistema que utilizasse unidades de medidas que fossem comuns a todas as nações. O sucesso na utilização do sistema de pesos e medidas conduziu a questão de um meridiano geográfico único e a de uma hora que seria a mesma para todo o globo terrestre e que deveria ser discutido num contexto e uma visão científica como havia ocorrido nos últimos congressos geográficos que antecederam a reunião da Sociedade Geodésica Internacional, em Roma, em 1883.

Poucos meses antes desta reunião, em Roma, um senador de Hamburgo tomou a iniciativa de solicitar que essa reunião se ocupasse do problema do meridiano único, origem das longitudes e da hora universal, tendo o mesmo apresentado algumas considerações neste sentido. Os membros do Congresso foram autorizados a participar dessa assembléia a defenderem os seus pontos de vista relativos as duas questões.

Antes de analisarmos o que se passou em Washington, é necessário que recordemos um pouco as questões relativas às coordenadas geográficas, em particular aos meridianos, às longitudes e aos problemas horários que estavam associados a essas coordenadas. A partir desse sistema adotado para fixar as posições relativas de diversos pontos na superfície do globo, dividia-se essa superfície em fusos por intermédio de grandes círculos que passavam pelos pólos, designados meridianos, sendo esses fusos divididos por sua vez por círculos paralelos ao equador e denominados paralelos. Desse modo, a superfície do globo terrestre era esquadrinhada sistematicamente por um conjunto de linhas, por intermédio das quais era possível relacionar todos os pontos para os quais desejamos definir a posição. Outro passo foi numerar esses meridianos e paralelos para não se confundirem entre si e também um meio de termos uma idéia exata de suas distâncias. É a partir de então que começam as dificuldades.

Para os paralelos o ponto origem das latitudes é o plano do equador terrestre, marco sugerido pela própria natureza, de modo que jamais houve opinião contrária à sua escolha. Ao contrario, para as longitudes a situação não era tão fácil assim. Foi necessário para fixar a sua origem considerações não muito evidentes por ausência de um referencial natural que impusesse a sua aceitação pela comunidade científica.

A questão de saber qual é o meridiano dentre todos aqueles que contornam a Terra que deveria servir como ponto de partida para numeração geral das longitudes era um desafio, pois a sua escolha iria favorecer o país pelo qual viesse passar. Em conseqüência desta indefinição, a questão do primeiro meridiano foi várias vezes retomada, mas sem que se encontrasse uma solução.

Os antigos tinham boas idéias em relação a essas questões. Uma delas era em relação ao primeiro meridiano, que deveria ser colocado na origem das terras a serem medidas. Marinnho de Tiro e, mais tarde, Ptolomeu tinham escolhido para ponto de partida das suas longitudes a extremidade do mundo que lhe era mais bem conhecida na época: as ilhas que os navegantes haviam encontrado, além das colunas de Hércules, onde reinava um clima encantador e, no qual todos os habitantes viviam felizes. Foi, portanto, estas ilhas que o grande herdeiro da geografia dos gregos usou como início da numeração das longitudes. No entanto, a posição mal conhecida das Ilhas Afortunadas obrigou mais tarde a retornar aos continentes, onde as medidas eram certas. Depois da ciência grega, veio a Idade Média. A ciência desaparece e é substituída pela religião e pela política. As origens das longitudes são tomadas a partir de qualquer ponto. Utilizam-se os meridianos das capitais de locais notáveis, o que deu origem a uma confusão intolerável.