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"Não se pode comprovar uma teoria, apenas se pode demonstrar que está errada. Uma teoria passa a científica expondo-se a si própria à possibilidade de ser refutada. "- Karl Popper
Hamlet - o universo infinito
2006-10-19
Shakespeare viveu numa época de grande agitação intelectual. Uma delas – a revolução astronômica – que iria alterar completamente a cosmovisão do universo conhecido, já estava a caminho. Ela iria contribuir para transformar o panorama cultural da Europa, conduzindo-a uma série de novas descobertas, assim como o surgimento de pensamentos originais. A civilização européia sofria os primeiros grandes impactos responsáveis pelo advento do Renascimento e da Reforma.
A principal contribuição cientifica da época, que despertou a inteligência mundial, iniciou-se com a publicação da obra De revolutionibus orbium coelestium (Sobre a revolução dos corpos celestes, 1543) do astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), cujo modelo de universo; colocando o Sol no centro do sistema do mundo conhecido em lugar da Terra, deslocou a humanidade de sua posição privilegiada. O outro choque foram as primeiras observações telescópicas de Galileu, que iriam confirmar o modelo proposto pelo astrônomo polonês.
As referências à astronomia na obra de Shakespeare devem ser apreciadas não só como uma descrição da máquina do mundo preconizada, segundo a visão geocêntrica de Ptolomeu, mas o momento de uma mudança ou transformação no ponto de vista de questionar os dois modelos de cosmo que se defrontavam.
Realmente, em princípios de 1601, Shakespeare antecipou a nova ordem universal assim como a posição da humanidade, no novo contexto de universo heliocêntrico de Copérnico. Com efeito, ao ler o grande bardo inglês, especialmente a sua peça Hamlet, é possível detectar os argumentos e descrições alegóricas da competição entre dois modelos cosmológicos: o universo heliocêntrico infinito do astrônomo inglês Thomas Digges (c.1546-1595) e o modelo geocêntrico híbrido do astrônomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601) que mantinha o Sol no centro do universo com a condição que o Sol e a Lua girassem ao redor da Terra.
Na época em que Shakespeare viveu, o velho modelo geocêntrico do universo aperfeiçoado pelo astrônomo grego Claudius Ptolomaeus (c. 140 a.C.) na obra Almagesto, era a concepção do cosmos conhecida mais aceito universalmente. Na verdade, parecia a mais razoável, desde que todos os movimentos aparentes celestes vistos da superfície terrestre sugeriam que eles ocorriam ao redor do nosso planeta, como se tudo estivesse centrado na Terra.
No entanto, o modelo da sociedade elizabetiana estava hierarquicamente estabelecido segundo o que Shakespeare expôs nas palavras de Ulysses na peça Troilus and Cressida (ato I, cena 3);
Lamentavelmente, o problema do movimento retrógrado dos planetas constituía um obstáculo à aceitação do modelo geocêntrico de Ptolomeu. Com efeito, o movimento retrógrado constituía uma reversão ocasional na direção do movimento aparente dos planetas Marte, Júpiter e Saturno em relação à esfera das estrelas. Com efeito, tal fenômeno ocorria quando estes planetas ocupam uma posição oposta àquela do Sol. Para explicar o movimento retrógrado e satisfazer as aparências observadas recorreu-se aos epiciclos que acabava com a simplicidade do movimento geocêntrico.
O astrônomo polonês Copérnico, resolveu o problema do movimento retrógrado propondo que o Sol fosse o centro do universo e que a Terra e os outros cinco planetas conhecidos girassem ao redor do Sol. A Terra ocuparia somente o centro da órbita da Lua e não teria nenhuma outra posição especial. No entanto, esse modelo exigia que a Terra se deslocasse e girasse em torno do seu eixo.
A idéia de uma Terra girando em torno do seu eixo e deslocando-se no espaço ao redor do Sol, além se opor à idéia mais intuitiva, aceita por todos, do Sol nascendo à leste e se pondo a oeste, era contrária à doutrina científica e religiosa estabelecida. Este último fato dificultou a aceitação imediata da idéia de Copérnico, logo depois da publicação da sua obra que coincidiu com a sua morte. Convém registrar que por volta de 1510, Copérnico escreveu a sua primeira obra – Commentariolus -, da qual distribuiu algumas cópias. Por volta de 1540, além de informar ao mundo científico a concepção heliocêntrica ao publicar Narratio Prima, Georges Rheticus três anos antes da morte de Copérnico, só voltou para a universidade de Witemberg depois de concluir o livro do seu mestre polonês.
Em 1551, as idéias copernicanas já haviam sido introduzidas na Inglaterra, graças às obras de Digges, um dos grandes defensores do modelo heliocêntrico, que 25 anos mais tarde, descreveu o seu próprio modelo de Universo na obra A perfit description of the caelestial orbes (1576).
Todos os modelos anteriores ao de Digges continham uma esfera de cristal onde as estrelas estariam incrustadas, constituindo o Paraíso e o primo móbile. Para Digges todas estrelas eram semelhantes ao Sol e todas estrelas estavam distribuídas no universo infinito. Essa visão revolucionária eliminou a esfera exterior de estrelas, substituindo-a por um espaço infinito ocupado por estrelas.
Ainda que essas especulações tenham surgido com o filósofo e teólogo Nicholas de Cusa (1401-1464), que reservava o termo infinito para tudo que tivesse um caráter divino como a própria criação do universo, no entanto foi Digges quem primeiro sugeriu a idéia do universo fisicamente infinito. Oito anos mais tarde, o filósofo italiano Giordano Bruno ( - 1600) expôs na Inglaterra e publicou idéias semelhantes de um cosmo infinito que o levaram a ser condenado pela Igreja a morrer queimado vivo em 1600.
Apesar de ter estudado em Witemberg, Tycho Brahe defendeu um modelo geoheliocêntrico no qual o Sol e a Lua giravam ao redor da Terra enquanto os outros planetas orbitavam em torno do Sol. Na realidade, Tycho estabeleceu uma espécie de modelo geocêntrico híbrido; mas seus detalhes nunca foram desenvolvidos e o modelo não conseguiu explicar o movimento retrógrado. O modelo de Tycho foi exposto em sua obra Recent Appearances in the Celestial World. (Aparências recentes do mundo celestial, 1588), publicada numa edição limitada e distribuída para um grupo selecionado de amigos e colegas. Tycho vivia na ilha de Hven, no Oresund Sound, onde ele construiu o seu observatório - o Uraniburgo -, na mesma época em que o rei da Dinamarca construiu o Castelo de Hellsingor nas vizinhanças.
Em 1590, o inglês Thomas Savile recebeu uma carta de Tycho para ser entregue a Digges. Nesta carta, Tycho sugeriu que um excelente poeta inglês compusesse uma epigrama para o seu trabalho. Enviou também quatro cópias de um retrato dele com os dos seus tataravôs Sophie Gyldenstierne e Erik Rosenkrantz.
Shakespeare, além de ser íntimo da família de Digges, deve ter, provavelmente, lido a carta de Tycho e visto o retrato, tendo escolhido os nomes de Rosenkrantz e de Gyldenstierne para personagens na peça Hamlet, onde representavam o geoheliocentrismo tychonicano. Enquanto o rei da Dinamarca, Claudius, constituía uma referência a Cláudio Ptolomeu, Hamlet personificava o modelo do universo infinito de Digges. O Elsinore em Hamlet é designado como o palácio do rei da Dinamarca, Hellsingor, onde ocorre a peça no qual a vista do céu está obstruída.
Estabelecido na ilha de Tycho Brahe, Hamlet afirma:
Essa idéia louca está associada a Elsinore, onde Cláudio reside e que está situada a no-noroeste de Hven, enquanto Witemberg está na direção sul de Hven. Na realidade, ele quer sugerir que as aparências observadas de Witemberg são aparentemente interpretadas. Quando Claudius perguntou ao príncipe, porque ele rejeitava a morte de seu pai, ao que respondeu Hamlet:
Assim associando-se como ponte de referência os alinhamentos planetários. O casal real expressou o seu desejo de Hamlet não voltasse a Witemberg, dizendo que tal curso é “mais retrógrado do que o nosso desejo” (is most retrograde to our desire). Aqui ele se refere ao retrógrado Hamlet ou ao contrário ao movimento estabelecido pela cosmologia de Copérnico. O significado astronômico de “retrógrado” surgiu no século XIV cunhado por Chaucer, com o sentido de “movimento para trás” ou “ o retorno numa trajetória anteriormente prevista”. Essas expressões foram usadas pelo menos entre 1530 a 1564, respectivamente. Todavia, o termo “retrógrado” surgiu depois do termo “oposição” que é muitas vezes usado para designar o movimento retrógrado dos planetas, deixando a metáfora astronômica ambígua, como expressou Cláudio:
Para os geocentristas, o movimento retrógrado foi na realidade, uma falha da natureza “fault to nature” ou uma imperfeição no céu; na realidade, a natureza é contrária ao senso comum aqui. A conjunção é um permanente alinhamento e Cláudio conclui a metáfora quando diz para sua nova esposa:
Rosenkrantz e Gyldenstierne foram contemporâneos de Hamlet assim como Tycho e Digges foram contemporâneos. Cláudio intimou que os dois cortesões elaborassem o novo modelo geocêntrico para auxiliar o velho. Mas logo, eles concordam com os argumentos de Hamlet que fez uma eloqüente defesa da idéia diggesiana de que “poderia viver recluso numa casca de noz e me considerar rei do espaço infinito”. A casca de noz pode se referir a esfera das estrelas fixas onde supostamente estaria contida toda a criação nos modelos anteriores ou a gravura com o retrato de Tycho Brahe, onde a sua imagem está enquadrada dentro de um arco de pedra.
Eventualmente, Cláudio enviou Hamlet para Inglaterra com os dois cortesões como seguranças, afirmando em carta “a morte de Hamlet deveria ocorrer ainda na Inglaterra”. Na verdade, Shakespeare baseou-se numa antiga lenda dinamarquesa do século XII, relatada por Saxo Grammaticus (1188-1201) na história dânica, na qual os dois cortesões dinamarqueses foram também assassinados pois Hamlet alterou o conteúdo das cartas que eles levavam. Hamlet acertou primeiro a morte de Rosenkrantz e Gyldenstierne e, em seguida, a de Claudius.
Para reconhecer o fato de que o modelo de Digges é um corolário do de Copérnico, Shakespeare recorreu à lenda dinamarquesa para ocupar se das atividades de Fortinbras na Polônia. Assim, Fortinbras saúda o embaixador inglês e desse modo unifica os modelos originalmente provenientes da Polônia e da Inglaterra. Com o objetivo de alcançar a verdade, ele falseia a exposição sobre um tema codificado na peça de Shakespeare. O castelo é uma interface entre o castelo interior e o céu. Um contraste que equipara a realidade e a aparência, quando Hamlet sugere diz: a passagem do geocentrismo para a visão de Digges de um universo infinito é a passagem da aparência à realidade.
Essa nova leitura sugere que a tragédia de Hamlet constitui uma alegoria da competição entre o modelo cosmológico de Thomas Digges, da Inglaterra, e o de Tycho Brahe, da Dinamarca. Foi a astrônoma norte-americana Cecília Payne-Gaposchkin quem sugeriu ter Shakespeare se referido à teoria heliocêntrica em Hamlet. Realmente, em 1970, ela registrou que durante o século XVI, o astrônomo Rhetico, que teve um papel proeminente na edição De revolutionibus, ensinou em Wittenberg, onde Tycho Brahe estudou, assim como Hamlet. No entanto, foi Leslie Hotson quem chamou a atenção para o fato de que os amigos de Hamlet, Rosencrantz e Guildenstern, tinham o mesmo nome dos ancestrais de Tycho Brahe, sugerindo que Shakespeare deve ter retirado esses nomes de uma gravura com o retrato do astrônomo dinamarquês enviado a Inglaterra.
Coube ao astrônomo Peter D. Usher sugerir que Hamlet ao lamentar que a “Dinamarca era uma prisão” em sua declaração:
Além de uma referência às idéias difundidas na época por Giordano Bruno, na Inglaterra, as preleções do padre dominicano italiano sobre o universo heliocêntrico infinito poderiam, sem dúvida, ter estimulado Shakespeare a elaborar uma tragédia entre os modelos cósmicos que se opunham naquela época. Se, por um lado, os modelos ptolomaico e copernicano aprisionassem a humanidade numa casca de noz cósmica, por outro lado a extensão visionária do modelo copernicano desenvolvido pelo contemporâneo de Shakespeare, Thomas Digges, liberava a humanidade daquela prisão para o espaço infinito. É evidente que Shakespeare não ignorou completamente a revolução astronômica que ocorria no século XVI. Com efeito, Hamlet é uma antecipação da nova ordem universal assim como da posição que a humanidade iria ocupar a partir desse século. Além do seu valor literário, historico e filosófico, Hamlet possui em contrapartida uma cosmologia científica não menos significativa. Enquanto o último ano do século XVI assistiu o martírio de Giordano Bruno, o primeiro ano do século XVII mostrou que o grande poeta e dramaturgo inglês divulgava o universo infinito das estrelas.
Realmente, Hamlet esteve em Elsina para visitar sua mãe, mas sua condolência obstinada ao rei Claudius destinava ajudar aos amigos Rosencrantz e Guildenstern. Depois da sua chegada, Rosencrantz logo argumentou com Hamlet que a Dinamarca é muito limitada para a minha mente, ao que Hamlet respondeu que poderia viver recluso numa casca de noz e se considerar rei do espaço infinito.
Se por um lado, a expressão “infinity space” é uma referência direta à visão de Digges de um firmamento totalmente ocupado por estrelas semelhantes ao Sol, por outro lado, o recurso às alegorias e às metáforas constitui uma referência à posição opressiva e o medo de perseguição que a inquisição com relação ao universo fazia na época.
Essa explicação é textualmente defendida por Polônio que advoga sua prisão se Hamlet não divulgasse o sistema copernicano para a sua mãe. Evidentemente, Shakespeare sugeriu uma posição prudente para o significado de Hamlet. No século XVI, as prisões e as execuções foram punições comuns, como o caso bem conhecido da perseguição de Giordano Bruno, condenado por acreditar em um universo infinito. Shakespeare deve ter tomado conhecimento da morte de Bruno em 1600, na época em que escrevia Hamlet.
Na realidade, quando Hamlet refere-se à Nova Astronomia, ele usa a seguinte expressão para o seu melhor amigo:
Bibliografia
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, astrônomo, criador e fundador do Museu de Astronomia e Ciências Afins, autor de mais de 80 livros, entre outros livros, do “Astronomia do Macunaíma” e “Astronomia em Camões” da Lacerda Editores. Consulte a homepage.
A principal contribuição cientifica da época, que despertou a inteligência mundial, iniciou-se com a publicação da obra De revolutionibus orbium coelestium (Sobre a revolução dos corpos celestes, 1543) do astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), cujo modelo de universo; colocando o Sol no centro do sistema do mundo conhecido em lugar da Terra, deslocou a humanidade de sua posição privilegiada. O outro choque foram as primeiras observações telescópicas de Galileu, que iriam confirmar o modelo proposto pelo astrônomo polonês.
As referências à astronomia na obra de Shakespeare devem ser apreciadas não só como uma descrição da máquina do mundo preconizada, segundo a visão geocêntrica de Ptolomeu, mas o momento de uma mudança ou transformação no ponto de vista de questionar os dois modelos de cosmo que se defrontavam.
Realmente, em princípios de 1601, Shakespeare antecipou a nova ordem universal assim como a posição da humanidade, no novo contexto de universo heliocêntrico de Copérnico. Com efeito, ao ler o grande bardo inglês, especialmente a sua peça Hamlet, é possível detectar os argumentos e descrições alegóricas da competição entre dois modelos cosmológicos: o universo heliocêntrico infinito do astrônomo inglês Thomas Digges (c.1546-1595) e o modelo geocêntrico híbrido do astrônomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601) que mantinha o Sol no centro do universo com a condição que o Sol e a Lua girassem ao redor da Terra.
Na época em que Shakespeare viveu, o velho modelo geocêntrico do universo aperfeiçoado pelo astrônomo grego Claudius Ptolomaeus (c. 140 a.C.) na obra Almagesto, era a concepção do cosmos conhecida mais aceito universalmente. Na verdade, parecia a mais razoável, desde que todos os movimentos aparentes celestes vistos da superfície terrestre sugeriam que eles ocorriam ao redor do nosso planeta, como se tudo estivesse centrado na Terra.
No entanto, o modelo da sociedade elizabetiana estava hierarquicamente estabelecido segundo o que Shakespeare expôs nas palavras de Ulysses na peça Troilus and Cressida (ato I, cena 3);
The heavens themselves, the planets and this centre
Observe degree, priority and place,
Insisture, course, proportion, season, form,
Office and custom, in all line of order;
And therefore is the glorious planet Sol
In noble eminence enthroned and sphered
Amidst the other; whose medicinable eye
Corrects the ill aspects of planets evil,
And posts, like the commandment of a king,
Sans cheque to good and bad: but when the planets
In evil mixture to disorder wander,
What plagues and what portents! what mutiny!
What raging of the sea! shaking of earth!
Commotion in the winds!
“Os próprios céus, os planetas e nosso globo central estão submetidos a condições de categoria, de prioridade, de distância, de regularidade, de direção, de proporção, de estação, de forma, de atribuição e de regularidade que observam com uma ordem invariável. E, portanto, o glorioso planeta, o Sol, trona numa nobre proeminência no meio das outras esferas; seu olhar salutar corrige o sinistro aspecto dos planetas funestos e se impõe com autoridade soberana e absoluta, aos bons e maus astros. Mas por pouco que os planetas ousem perder-se em condenável confusão, então, quantos flagelos! Quantas monstruosidades! Quantas sedições! Quantos furores agitam o mar! Quantos terremotos! Que comoções dos ventos!”
Vol I, pag. 77, (I,3) (Obras Completas, veja a bibliografia)
Lamentavelmente, o problema do movimento retrógrado dos planetas constituía um obstáculo à aceitação do modelo geocêntrico de Ptolomeu. Com efeito, o movimento retrógrado constituía uma reversão ocasional na direção do movimento aparente dos planetas Marte, Júpiter e Saturno em relação à esfera das estrelas. Com efeito, tal fenômeno ocorria quando estes planetas ocupam uma posição oposta àquela do Sol. Para explicar o movimento retrógrado e satisfazer as aparências observadas recorreu-se aos epiciclos que acabava com a simplicidade do movimento geocêntrico.
O astrônomo polonês Copérnico, resolveu o problema do movimento retrógrado propondo que o Sol fosse o centro do universo e que a Terra e os outros cinco planetas conhecidos girassem ao redor do Sol. A Terra ocuparia somente o centro da órbita da Lua e não teria nenhuma outra posição especial. No entanto, esse modelo exigia que a Terra se deslocasse e girasse em torno do seu eixo.
A idéia de uma Terra girando em torno do seu eixo e deslocando-se no espaço ao redor do Sol, além se opor à idéia mais intuitiva, aceita por todos, do Sol nascendo à leste e se pondo a oeste, era contrária à doutrina científica e religiosa estabelecida. Este último fato dificultou a aceitação imediata da idéia de Copérnico, logo depois da publicação da sua obra que coincidiu com a sua morte. Convém registrar que por volta de 1510, Copérnico escreveu a sua primeira obra – Commentariolus -, da qual distribuiu algumas cópias. Por volta de 1540, além de informar ao mundo científico a concepção heliocêntrica ao publicar Narratio Prima, Georges Rheticus três anos antes da morte de Copérnico, só voltou para a universidade de Witemberg depois de concluir o livro do seu mestre polonês.
Em 1551, as idéias copernicanas já haviam sido introduzidas na Inglaterra, graças às obras de Digges, um dos grandes defensores do modelo heliocêntrico, que 25 anos mais tarde, descreveu o seu próprio modelo de Universo na obra A perfit description of the caelestial orbes (1576).
Todos os modelos anteriores ao de Digges continham uma esfera de cristal onde as estrelas estariam incrustadas, constituindo o Paraíso e o primo móbile. Para Digges todas estrelas eram semelhantes ao Sol e todas estrelas estavam distribuídas no universo infinito. Essa visão revolucionária eliminou a esfera exterior de estrelas, substituindo-a por um espaço infinito ocupado por estrelas.
Ainda que essas especulações tenham surgido com o filósofo e teólogo Nicholas de Cusa (1401-1464), que reservava o termo infinito para tudo que tivesse um caráter divino como a própria criação do universo, no entanto foi Digges quem primeiro sugeriu a idéia do universo fisicamente infinito. Oito anos mais tarde, o filósofo italiano Giordano Bruno ( - 1600) expôs na Inglaterra e publicou idéias semelhantes de um cosmo infinito que o levaram a ser condenado pela Igreja a morrer queimado vivo em 1600.
Apesar de ter estudado em Witemberg, Tycho Brahe defendeu um modelo geoheliocêntrico no qual o Sol e a Lua giravam ao redor da Terra enquanto os outros planetas orbitavam em torno do Sol. Na realidade, Tycho estabeleceu uma espécie de modelo geocêntrico híbrido; mas seus detalhes nunca foram desenvolvidos e o modelo não conseguiu explicar o movimento retrógrado. O modelo de Tycho foi exposto em sua obra Recent Appearances in the Celestial World. (Aparências recentes do mundo celestial, 1588), publicada numa edição limitada e distribuída para um grupo selecionado de amigos e colegas. Tycho vivia na ilha de Hven, no Oresund Sound, onde ele construiu o seu observatório - o Uraniburgo -, na mesma época em que o rei da Dinamarca construiu o Castelo de Hellsingor nas vizinhanças.
Em 1590, o inglês Thomas Savile recebeu uma carta de Tycho para ser entregue a Digges. Nesta carta, Tycho sugeriu que um excelente poeta inglês compusesse uma epigrama para o seu trabalho. Enviou também quatro cópias de um retrato dele com os dos seus tataravôs Sophie Gyldenstierne e Erik Rosenkrantz.
Shakespeare, além de ser íntimo da família de Digges, deve ter, provavelmente, lido a carta de Tycho e visto o retrato, tendo escolhido os nomes de Rosenkrantz e de Gyldenstierne para personagens na peça Hamlet, onde representavam o geoheliocentrismo tychonicano. Enquanto o rei da Dinamarca, Claudius, constituía uma referência a Cláudio Ptolomeu, Hamlet personificava o modelo do universo infinito de Digges. O Elsinore em Hamlet é designado como o palácio do rei da Dinamarca, Hellsingor, onde ocorre a peça no qual a vista do céu está obstruída.
Estabelecido na ilha de Tycho Brahe, Hamlet afirma:
I am but mad north-north-west. When the wind is southerly, I know a hawk from a handsaw.
Só fico louco com o nor-nordeste; quando o vento é do sul, posso distinguir um falcão de uma garça.
Vol. I, pág. 562 (II, 2).
Essa idéia louca está associada a Elsinore, onde Cláudio reside e que está situada a no-noroeste de Hven, enquanto Witemberg está na direção sul de Hven. Na realidade, ele quer sugerir que as aparências observadas de Witemberg são aparentemente interpretadas. Quando Claudius perguntou ao príncipe, porque ele rejeitava a morte de seu pai, ao que respondeu Hamlet:
Not so, my lord, I am too much in the sun.
Nada disto, meu senhor, estou completamente ao Sol.
Vol. I, pág. 538 (I, 2).
Assim associando-se como ponte de referência os alinhamentos planetários. O casal real expressou o seu desejo de Hamlet não voltasse a Witemberg, dizendo que tal curso é “mais retrógrado do que o nosso desejo” (is most retrograde to our desire). Aqui ele se refere ao retrógrado Hamlet ou ao contrário ao movimento estabelecido pela cosmologia de Copérnico. O significado astronômico de “retrógrado” surgiu no século XIV cunhado por Chaucer, com o sentido de “movimento para trás” ou “ o retorno numa trajetória anteriormente prevista”. Essas expressões foram usadas pelo menos entre 1530 a 1564, respectivamente. Todavia, o termo “retrógrado” surgiu depois do termo “oposição” que é muitas vezes usado para designar o movimento retrógrado dos planetas, deixando a metáfora astronômica ambígua, como expressou Cláudio:
Why should we in our peevish opposition Take it to heart? Fie! 'tis a fault to heaven, A fault against the dead, a fault to nature,
Por que, pois, por perversa oposição à regra, tomar tão a peito o que deve ser e que sabemos tão comum quanto a coisa mais vulgar? Lamentável! É um pecado contra o céu, uma ofensa aos mortos, um delito contra a natureza,
Vol. I, pag. 539, (I, 2)
Para os geocentristas, o movimento retrógrado foi na realidade, uma falha da natureza “fault to nature” ou uma imperfeição no céu; na realidade, a natureza é contrária ao senso comum aqui. A conjunção é um permanente alinhamento e Cláudio conclui a metáfora quando diz para sua nova esposa:
She's so conjunctive to my life and soul, That, as the star moves not but in his sphere, I could not but by her.
Está de tal modo ligada à minha vida e à minha alma que, do mesmo modo que uma estrela só pode mover-se dentro da própria órbita, nada posso fazer que não seja através dela.
Vol. I, pag. 597, (IV, 7)
Rosenkrantz e Gyldenstierne foram contemporâneos de Hamlet assim como Tycho e Digges foram contemporâneos. Cláudio intimou que os dois cortesões elaborassem o novo modelo geocêntrico para auxiliar o velho. Mas logo, eles concordam com os argumentos de Hamlet que fez uma eloqüente defesa da idéia diggesiana de que “poderia viver recluso numa casca de noz e me considerar rei do espaço infinito”. A casca de noz pode se referir a esfera das estrelas fixas onde supostamente estaria contida toda a criação nos modelos anteriores ou a gravura com o retrato de Tycho Brahe, onde a sua imagem está enquadrada dentro de um arco de pedra.
Eventualmente, Cláudio enviou Hamlet para Inglaterra com os dois cortesões como seguranças, afirmando em carta “a morte de Hamlet deveria ocorrer ainda na Inglaterra”. Na verdade, Shakespeare baseou-se numa antiga lenda dinamarquesa do século XII, relatada por Saxo Grammaticus (1188-1201) na história dânica, na qual os dois cortesões dinamarqueses foram também assassinados pois Hamlet alterou o conteúdo das cartas que eles levavam. Hamlet acertou primeiro a morte de Rosenkrantz e Gyldenstierne e, em seguida, a de Claudius.
Para reconhecer o fato de que o modelo de Digges é um corolário do de Copérnico, Shakespeare recorreu à lenda dinamarquesa para ocupar se das atividades de Fortinbras na Polônia. Assim, Fortinbras saúda o embaixador inglês e desse modo unifica os modelos originalmente provenientes da Polônia e da Inglaterra. Com o objetivo de alcançar a verdade, ele falseia a exposição sobre um tema codificado na peça de Shakespeare. O castelo é uma interface entre o castelo interior e o céu. Um contraste que equipara a realidade e a aparência, quando Hamlet sugere diz: a passagem do geocentrismo para a visão de Digges de um universo infinito é a passagem da aparência à realidade.
Essa nova leitura sugere que a tragédia de Hamlet constitui uma alegoria da competição entre o modelo cosmológico de Thomas Digges, da Inglaterra, e o de Tycho Brahe, da Dinamarca. Foi a astrônoma norte-americana Cecília Payne-Gaposchkin quem sugeriu ter Shakespeare se referido à teoria heliocêntrica em Hamlet. Realmente, em 1970, ela registrou que durante o século XVI, o astrônomo Rhetico, que teve um papel proeminente na edição De revolutionibus, ensinou em Wittenberg, onde Tycho Brahe estudou, assim como Hamlet. No entanto, foi Leslie Hotson quem chamou a atenção para o fato de que os amigos de Hamlet, Rosencrantz e Guildenstern, tinham o mesmo nome dos ancestrais de Tycho Brahe, sugerindo que Shakespeare deve ter retirado esses nomes de uma gravura com o retrato do astrônomo dinamarquês enviado a Inglaterra.
Coube ao astrônomo Peter D. Usher sugerir que Hamlet ao lamentar que a “Dinamarca era uma prisão” em sua declaração:
Oh! God. I could be bounded in a nutshell and count myself a king / of infinite space
Oh! Deus.Eu poderia viver recluso numa casca de noz e me considerar rei do espaço infinitoafirmar ou difundir hipótese diggeniana de um universo infinito.
Vol. I, pág. 559, ato II, cena 2
Além de uma referência às idéias difundidas na época por Giordano Bruno, na Inglaterra, as preleções do padre dominicano italiano sobre o universo heliocêntrico infinito poderiam, sem dúvida, ter estimulado Shakespeare a elaborar uma tragédia entre os modelos cósmicos que se opunham naquela época. Se, por um lado, os modelos ptolomaico e copernicano aprisionassem a humanidade numa casca de noz cósmica, por outro lado a extensão visionária do modelo copernicano desenvolvido pelo contemporâneo de Shakespeare, Thomas Digges, liberava a humanidade daquela prisão para o espaço infinito. É evidente que Shakespeare não ignorou completamente a revolução astronômica que ocorria no século XVI. Com efeito, Hamlet é uma antecipação da nova ordem universal assim como da posição que a humanidade iria ocupar a partir desse século. Além do seu valor literário, historico e filosófico, Hamlet possui em contrapartida uma cosmologia científica não menos significativa. Enquanto o último ano do século XVI assistiu o martírio de Giordano Bruno, o primeiro ano do século XVII mostrou que o grande poeta e dramaturgo inglês divulgava o universo infinito das estrelas.
Realmente, Hamlet esteve em Elsina para visitar sua mãe, mas sua condolência obstinada ao rei Claudius destinava ajudar aos amigos Rosencrantz e Guildenstern. Depois da sua chegada, Rosencrantz logo argumentou com Hamlet que a Dinamarca é muito limitada para a minha mente, ao que Hamlet respondeu que poderia viver recluso numa casca de noz e se considerar rei do espaço infinito.
Se por um lado, a expressão “infinity space” é uma referência direta à visão de Digges de um firmamento totalmente ocupado por estrelas semelhantes ao Sol, por outro lado, o recurso às alegorias e às metáforas constitui uma referência à posição opressiva e o medo de perseguição que a inquisição com relação ao universo fazia na época.
Essa explicação é textualmente defendida por Polônio que advoga sua prisão se Hamlet não divulgasse o sistema copernicano para a sua mãe. Evidentemente, Shakespeare sugeriu uma posição prudente para o significado de Hamlet. No século XVI, as prisões e as execuções foram punições comuns, como o caso bem conhecido da perseguição de Giordano Bruno, condenado por acreditar em um universo infinito. Shakespeare deve ter tomado conhecimento da morte de Bruno em 1600, na época em que escrevia Hamlet.
Na realidade, quando Hamlet refere-se à Nova Astronomia, ele usa a seguinte expressão para o seu melhor amigo:
There are more things in heaven and earth, Horatio, Than are dreamt of in your philosophy.
Há mais coisa entre o céu e a Terra, Horácio, do que pode sonhar a tua filosofia.
Vol. I, pag. 550, (I, 5).
Bibliografia
- Heliodora, Bárbara. Reflexões shakespearianas, Lacerda Editores, Rio de Janeiro, 2004.
- Holden, Anthony. Vidas ilustradas Shakespeare, tradução Beatriz Horta, Ediouro, Rio de Janeiro, 2003.
- Kermode, Frank. A linguagem de Shakespeare, tradução Bárbara Heliodora, Editora Record, Rio de Janeiro, 2006.
- Paris, Jean. Shakespeare, tradução Bárbara Heliodora, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1992.
- Shakespeare, William. Hamlet, tradução Pietro Nassetti, Coleção a obra prima de cada autor, Editora Martin Claret, São Paulo, 2005.
- ---. Obras Completas, Companhia José Aguilar Editora, Rio de Janeiro, GB, 1969.
- ---. Hamlet, tradução Bárbara Heliodora, Lacerda Editores, Rio de Janeiro, 2004.
- ---. Romeu e Julieta, tradução Bárbara Heliodora, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1997.
- Spurgeon, Caroline. A imagística de Shakespeare, tradução Bárbara Heliodora, Martins Fontes, São Paulo, 2006.
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, astrônomo, criador e fundador do Museu de Astronomia e Ciências Afins, autor de mais de 80 livros, entre outros livros, do “Astronomia do Macunaíma” e “Astronomia em Camões” da Lacerda Editores. Consulte a homepage.