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"Se não pudermos questionar as nossas mais profundas suposições, então a humanidade não é uma espécie viável. "
- David Bohm


Titã – Lua Envolta Numa Atmosfera Baça e Irrespirável

2006-07-20
Durante muitos anos Titã foi considerada a maior lua do Sistema Solar. Mais tarde concluiu-se que o diâmetro de Ganimedes era ligeiramente superior. A imprecisão decorria do facto de se considerar que a pequena mancha observada nos telescópios correspondia a uma secção sólida. Em boa verdade, a realidade é mais complexa porque Titã possui atmosfera. O raio de Ganimedes e Titã é 2631 e 2575 km, respectivamente. Todavia, como a altitude efectiva da atmosfera de Titã é maior que a da Terra, obtém-se um valor superior ao raio de Ganimedes. Por outro lado, a existência de uma densa bruma torna ainda mais evidente a presença da atmosfera. Deste modo, a maior lua de Saturno passou para a segunda posição hierárquica em termos de dimensões, mas a sua importância relativa aumentou, não só por ser a única a ter uma atmosfera densa, mas também devido à própria composição do envelope gasoso: 98,5% de nitrogénio e 1,5% de metano. Contudo, a fracção de metano aumenta próximo da superfície onde atinge aproximadamente 5%.

Muitas pessoas questionam-se sobre o que aconteceria se acendessem um fósforo na superfície de Titã. Como existe uma quantidade significativa de metano a resposta mais óbvia seria: haverá uma explosão! Porém não existe esse risco, uma vez que nem o fósforo conseguiríamos acender, pois não existe um agente oxidante na atmosfera. Como em Titã não há oxigénio livre não haveria a possibilidade de efectuar a combustão, logo não haveria qualquer reacção.

Uma das questões mais aliciantes é saber porque estará presente esse metano na atmosfera pois a radiação solar destrói este gás para formar moléculas mais complexas (voltaremos a este tema no futuro). Ao fim de alguns milhões de anos todo o metano teria sido destruído, pelo que agora coloca-se a questão de saber porque continua a haver grandes quantidades desta molécula. No passado, a explicação mais plausível era a existência de um oceano de hidrocarbonetos na superfície, do qual o metano se evaporava, mas hoje sabe-se que essa grande quantidade de líquido não existe. A hipótese mais defendida actualmente é a libertação de metano a partir do subsolo, onde estará aprisionado nos cristais de gelo.


Figura 1: Perfis de pressão e temperatura de Titã, os quais possuem várias semelhanças com os da Terra.
Uma das semelhanças mais interessantes entre a atmosfera terrestre e a de Titã é o perfil de temperatura (Figura 1). De facto, a morfologia do perfil de temperatura é em tudo semelhante ao da Terra, à parte um factor de escala. As medidas efectuadas pela Huygens e as sucessivas passagens da Cassini permitirão refinar os modelos climáticos e físico-químicos da atmosfera. Agora que os cientistas vêem as suas teorias ajustarem-se com alguma precisão aos resultados obtidos, é chegada a altura de procurar respostas para os detalhes dos perfis de temperatura e pressão, bem como da composição química da atmosfera, de modo a afinar os vários modelos. De facto, pequenos detalhes fazem agora as delícias dos investigadores: porque razão existe uma inversão do sentido dos ventos na estratosfera? Qual a origem da turbulência atmosférica observada durante a descida da Huygens? Porque razão se mediram várias regiões com inversão de temperatura? Alguns destes fenómenos requerem uma análise muito mais sofisticada do que somente utilizar os modelos convectivos e radiativos actuais. Um fenómeno similar às ondas de gravidade observadas na Terra parece também desempenhar um papel importante na dinâmica do envelope gasoso de Titã. Quem se satisfaz com explicações aproximadas e grosseiras poderá dizer que os modelos desenvolvidos explicam a dinâmica atmosférica de Titã, mas quem anseia por compreender os detalhes tem agora muito trabalho pela frente…

Embora a atmosfera da Terra esteja cada vez mais contaminada com aerossóis, nem mesmo nas zonas industriais mais poluídas os níveis se assemelham a Titã. A elevada quantidade de partículas suspensas aumenta a difusão da luz, torna a atmosfera baça e reduz a visibilidade. Este fenómeno persistente limita a qualidade das imagens, sejam elas obtidas com telescópios a partir da superfície ou órbita terrestre, de sondas espaciais como por exemplo a Voyager e a Cassini, ou mesmo de medidas efectuadas no local, como foi o caso da Huygens. Por exemplo, a Huygens registou a presença contínua de aerossóis desde uma altitude de aproximadamente 150 km até à superfície. Na Figura 2, podem observar-se camadas desligadas de aerossóis a altitudes superiores. Estas moléculas orgânicas resultam da reacção do metano com a radiação solar, e possivelmente também com fontes electromagnéticas locais (dedicaremos um artigo a este assunto). A fotólise do metano (CH4) forma não só as moléculas com dois átomos de carbono – acetileno (C2H2), etileno (C2H4) e etano (C2H6) – mas também moléculas mais complexas, ainda que em menor quantidade, como é o caso do benzeno (C6H6) e substâncias derivadas. Além disso, formam-se também outros tipos de moléculas muito importantes, e que envolvem o radical HCN, chamados nitrilos, cuja fórmula genérica é CH3(CH2)CN, onde a cadeia (CH2) pode não existir ou estar presente uma ou várias vezes. É esta camada de aerossóis em suspensão na atmosfera que está na origem da cor alaranjada de Titã! Estas substâncias vão-se formando nas altas camadas da ionosfera, vão descendo pela atmosfera e polimerizando, até atingirem a superfície, onde se vão acumulando, formando lamas habitualmente designadas por tolinas. Muitas destas moléculas foram já detectadas pela Cassini e pela Huygens, mas agora os investigadores pretendem identificar a presença de moléculas mais complexas, de modo a aprimorar os seus modelos físico-químicos de Titã.



Figura 2: Titã e as várias camadas desligadas de aerossóis, as quais impossibilitam que se observe com nitidez a superfície. Crédito: Missão Cassini-Huygens. NASA/ESA.


A terminar ficam algumas novidades e interrogações sobre o ciclo meteorológico de Titã. A presença de uma atmosfera abre a possibilidade da existência de nuvens, que na maior lua de Saturno são de metano e, talvez, etano. Além disso, o ponto triplo do metano, isto é, as condições em que as fases sólida, líquida e gasosa de uma substância coexistem simultaneamente, pode ocorrer na atmosfera de Titã. Deste modo, pelo menos teoricamente, também pode existir metano nos estados sólido e líquido na atmosfera. E o ciclo funcionará mais ou menos como a água na Terra, mas com algumas diferenças subtis, as quais colocam muitas interrogações aos cientistas. Por exemplo, o intervalo de temperaturas em que a água existe no estado líquido, em condições do ambiente da superfície terrestre, é de 100°C ( [273, 373] K), mas para o metano em Titã é somente de ~20°C ( [89, 111] K), o que constrange a presença das fases líquida e sólida na atmosfera. Deste modo, estima-se que possa existir neve e granizo a altitudes de várias dezenas de quilómetros, mas para altitudes inferiores a ~30km só pode chover. Há modelos que sugerem a evaporação do metano mesmo antes deste chegar à superfície. Nos últimos anos, e através de telescópios e da sonda Cassini, foram observadas nuvens em Titã, principalmente em regiões de latitude elevada. Tudo o que podemos afirmar com a descida da Huygens é que não estava a chover com intensidade na região equatorial, mas discute-se a possibilidade de haver um ténue chuvisco, embora ainda não esteja confirmada esta última hipótese. A Huygens pousou numa superfície gelada, mas que continha algum metano, tipo areia molhada à moda de Titã, o qual começou a evaporar-se assim que a sonda começou a aquecer as imediações. Porque ninguém sabe ao certo o que dizer, é normal os cientistas afirmarem que não estava a chover em Titã, mas que teria chovido há não muito tempo. E o que é muito tempo? Bom, isso ainda ninguém sabe!... Talvez o leitor deseje estudar os dados da Huygens e fazer a sua própria análise, porque não?

Referências úteis:
  • J.-P. Lebreton et al, An overview of the descent and landing of the Huygens probe on Titan, Nature 438, 758-764, 2005.
  • M. G. Tomasko et al, Rain, winds and haze during the Huygens probe’s descent to Titan’s surface, Nature 438, 765-778, 2005.
  • H.B. Niemann et al, The abundances of constituents of Titan’s atmosphere from the GCMS instrument on the Huygens probe, Nature 438, 779-784, 2005.