O Eixo Caótico de Vénus



Figura 5: Exemplo de uma evolução possível do eixo de Vénus. A velocidade de precessão do eixo de rotação (em segundos de arco por ano) é traçada em função da inclinação do eixo (em graus). O período de rotação inicial é de 3 dias e a inclinação inicial do eixo é de apenas um grau, o que resulta numa velocidade de precessão inicial de 16 segundos de arco por ano. Devido aos efeitos dissipativos (efeitos de maré combinados com a dissipação na fronteira núcleo-manto) o período de rotação diminui bem como a velocidade de precessão. A certa altura o eixo do planeta entra na zona caótica (zona a cinzento) causada pelas perturbações planetárias. A inclinação do eixo de Vénus pode então aumentar fortemente e de uma forma totalmente imprevisível até que os efeitos dissipativos tirem o planeta desta zona, aumentando então a inclinação do eixo tranquilamente até aos 180 graus (Correia e Laskar, 2003).
Se se considerar apenas os efeitos dissipativos (efeitos de maré combinados com a fricção entre o núcleo e o manto), ambos os cenários retrógrados necessitam de uma inclinação inicial do eixo superior a 45 graus para que esta possa aumentar até 180. De acordo com as teorias de formação dos planetas, inclinações excessivas são bastante improváveis, resultado verificado pelos restantes planetas do Sistema Solar (exceptuando Urano). Na ausência de outros efeitos, a inclinação inicial do eixo de Vénus a ser inferior a 45 graus, o planeta deveria encontrar-se hoje num dos estados prógrados, o que não acontece. Há contudo um outro processo de aumentar a inclinação do eixo do planeta. Resulta do efeito das perturbações dos outros planetas sobre o eixo de Vénus. Devido à sua fraca magnitude, estas perturbações foram durante muito tempo ignoradas pelos cientistas. No entanto, para certos valores da velocidade de precessão do eixo de rotação, esta entra em ressonância com as perturbações planetárias, aumentando drasticamente o efeito destas perturbações sobre a inclinação do eixo. No caso de Vénus existem zonas onde estas ressonâncias se sobrepõem, dando origem a uma extensa zona caótica dentro da qual a inclinação do eixo pode variara de forma imprevisível entre 0 e 90 graus em apenas alguns milhões de anos (Laskar e Robutel, 1993). A consideração deste efeito no estudo da evolução do eixo de Vénus (Correia et al., 2003, Correia e Laskar, 2003) permite aumentar a inclinação inicial do seu eixo de rotação de zero até mais de 45 graus, valor a partir do qual os efeitos dissipativos podem levar o eixo até aos 180 graus (Fig. 5).

Devido à existência da zona caótica, que é sempre atravessada para inclinações iniciais do eixo de rotação inferiores a 90 graus, qualquer uma destas condições iniciais pode convergir para qualquer um dos quatro estados finais de equilíbrio (F0+,Fπ+, F0-,Fπ-). Se admitirmos que a rotação inicial do planeta é prógrada, como indicam as teorias de formação, então apenas três destes (F0+, F0-,Fπ-) estados podem ser alcançados (Correia et al., 2003), um prógrado e os dois retrógrados. A inclusão das perturbações planetárias juntamente com os diferentes efeitos dissipativos exclui a necessidade de uma forte colisão de Vénus com um corpo de grandes dimensões para que o planeta pudesse evoluir para o estado actual (como foi várias vezes sugerido). Consegue-se agora explicar a actual rotação de Vénus considerando apenas aspectos dinâmicos, embora dois cenários diferentes sejam possíveis:

  • O eixo do planeta vira-se ao contrário até chegar aos 180 graus de inclinação.
  • A velocidade de rotação diminui até se anular por completo e o planeta começa a rodar em sentido contrário ao inicial, enquanto a inclinação do sei eixo estabiliza em 0 graus.


Chega-se assim a uma forma de paradoxo, onde a rotação de Vénus pode ser explicada como o resultado mais provável de uma evolução natural sem recorrer a cenários catastróficos tais como uma colisão de grandes dimensões; mas ao mesmo tempo demonstra-se que o planeta pode chegar ao estado actual por dois caminhos completamente diferentes, sendo impossível determinar, a partir da simples observação do estado actual do planeta, qual deles foi efectuado (Correia e Laskar, 2003).