A revolução heliocêntrica


Apesar da conciliação que, entre o século XII e o século XV, se tentou, e de certa forma conseguiu, entre a cosmologia aristotélica e a teologia cristã, havia quem não estivesse completamente satisfeito com toda essa aparente harmonia. Os filósofos naturalistas terão sido os primeiros a avançar , em particular, com algumas objecções ao modelo de Ptolomeu. Os seus argumentos baseavam-se principalmente na constatação do facto de que naquele modelo, os movimentos planetários não eram circulares e uniformes, contrariando assim os princípios de simplicidade, harmonia, e simetria, defendidos por Aristóteles. A possibilidade de um movimento de rotação para a Terra era outro debate que muito apaixonava alguns intelectuais. Apesar dos argumentos a favor de uma Terra em rotação, o peso histórico dos princípios aristotélicos era ainda suficiente para preferir as antigas concepções de simplicidade e harmonia que sustentavam uma Terra imóvel no centro do Universo.


Estátua de Roger Bacon no Museu de História Natural da Universidade Oxford. Crédito: Wikipedia.
Os intelectuais medievais não são contudo, os primeiros a questionar os princípios cosmológicos aristotélicos. Como vimos anteriormente, quer Heraclides, quer sobretudo Aristarco, já o haviam feito na Antiguidade. No entanto, na época medieval, são alguns académicos parisienses e muitos intelectuais do seio da Igreja Católica, os primeiros a manifestar uma profunda insatisfação relativamente às ideias aristotélicas, e a tentar criar e desenvolver modelos alternativos. A título de exemplo é justo referir três membros da Igreja que, em três séculos consecutivos, deram um contributo importante à revolução que se já se adivinhava: Roger Bacon, um monge franciscano do século XIII, Nicolau Oresme, bispo do século XIV, e no século XV, o Cardeal Nicolau de Cusa.

Roger Bacon reflectiu muito sobre o que hoje conhecemos como método científico, defendendo que para avançar no caminho que conduz ao conhecimento, não basta ler velhos textos. Segundo ele, é igualmente importante, e necessário, efectuar observações, utilizar a matemática para verificar os resultados, e realizar novas experiências e observações.

Por seu lado, Oresme, preocupou-se sobretudo com os problemas associados aos movimentos. Uma questão essencial para o desenvolvimento dos modelos cosmológicos. Recusava velhos argumentos segundo os quais a Terra não podia ter um movimento de rotação, e mostrou que a rotação da Terra proposta por Heraclides, simplificava imenso a estrutura do universo.

Finalmente, Nicolau de Cusa, argumentando que o Universo havia sido criado por Deus, uma Entidade infinita e sem localização específica, tentou conciliar a teologia cristã com a geometria do universo, concluindo que o universo é infinito e ilimitado, sem fronteira, e sem centro definido. Apesar disto, não se opunha frontalmente ao sistema geocêntrico. Considerava até que a colocação da Terra no centro do universo poderia ser útil, fazendo no entanto notar que as observações não forneciam qualquer evidência que o permitisse concluir. Relativamente à questão fundamental dos movimentos “admitidos” para a Terra, considerou que, como não havia um verdadeiro centro no Universo, não existiam argumentos em favor de uma Terra em movimento.

Bacon, Oresme, e Nicolau de Cusa, ao contribuírem de forma fundamental para a criação de uma teoria alternativa ao universo de Aristóteles, são o exemplo de verdadeiros precursores da revolução profunda que, nos séculos seguintes, iria transformar a Europa e o mundo. Foi a reflexão profunda sobre questões fundamentais que permitiu pôr em causa velhos conceitos e concepções cosmológicas.


Nicolau Copérnico.
Por esta época, correspondente ao último período da Idade Média, fecha-se um ciclo importante na história da astronomia, no qual podemos destacar no século XII, as traduções das obras gregas da Antiguidade, enquanto que no século XIII a aprendizagem e assimilação do seu conteúdo foi o que mais preocupou os estudiosos; finalmente nos séculos XIV e XV, a comunidade intelectual faz progressos importantes ao questionar de uma forma sustentada as ideias de Aristóteles, ao mesmo tempo que procura alternativas.

No período que se vai seguir assiste-se a uma revolução global, iniciada com a proposta heliocêntrica de Nicolau Copérnico, no início do século XVI, e que apenas termina quase dois séculos mais tarde com os seguidores das teorias newtonianas. É uma revolução global, no sentido de que é uma revolução que atinge fortemente todas as áreas. É um processo abrangente, não é apenas uma revolução científica. É uma verdadeira revolução intelectual, com profundas implicações culturais, sociais, e religiosas. O desenvolvimento dos acontecimentos que se seguem, como em qualquer revolução, revela-se pleno de disputas, tendo como principais protagonistas os apoiantes dos princípios filosóficos aristotélicos e os heliocentristas. Entre os primeiros encontra-se a Igreja Católica, com o seu poder imenso e a sua enorme influência, mas também os protestantes reformistas(!?), como João Calvino ou Martinho Lutero, também eles muito influentes na época.


De Revolutionibus Orbium Coelestium.
A princípio a reacção ao heliocentrismo não foi muito violenta, até porque o trabalho de Copérnico, De Revolutionibus, continha um prefácio, anónimo... e muito subtil, que apresentava o modelo como uma mera hipótese, entre muitas outras, e que permitia aos matemáticos efectuarem os cálculos de Copérnico, mas sem a “obrigação” de admitir a sua cosmologia. Apenas mais tarde, quando começa a ser claro que a obra atinge também físicos e filósofos, se dá início a um movimento de reacção que atinge momentos de grande violência.

Um dos mais corrosivos e acérrimos defensores do heliocentrismo é Giordano Bruno, que faz um notável trabalho de “propaganda” do novo sistema de Copérnico. Giordano divulga mesmo a ideia de que se a Terra é um planeta como os outros, a divisão do Universo em cosmos e mundo sublunar deixara de fazer qualquer sentido. Proclama, por isso, a união entre o Céu e a Terra, a identificação entre o Sol e as outras estrelas, e a pluralidade de “mundos” semelhantes à nossa Terra.

É, no entanto, Galileu quem desfere o golpe final no geocentrismo. Fá-lo sobretudo com a descoberta dos satélites de Júpiter, pois mostra a quem quer “ver”, que a Terra não é o único centro para os movimentos, como sustentava a física de Aristóteles. Galileu constatara que Júpiter era também o centro para alguns movimentos: os movimentos dos seus satélites. É desta forma que o sistema de Copérnico, simples hipótese cinemática, se transforma em realidade física.

Depois disto, e em termos puramente científicos, a reacção da Igreja Católica foi tão brutal quanto ineficaz... Giordano Bruno foi queimado em Roma em 1600, as propostas de Copérnico são condenadas solenemente em 1616, mais de 70 anos após a sua publicação, e houve ainda, em 1633, o conhecido processo a que teve que se sujeitar Galileu.


Duas das primeiras lunetas utilizadas por Galileu.
Entre as questões mais importantes em torno das quais se desenvolveu o debate, há duas que são verdadeiramente fundamentais. Em primeiro lugar, naturalmente, o problema de saber a quem atribuir, se à Terra se ao Sol, a posição central (e portanto “privilegiada”), no modelo de Universo. Depois, foi necessário solucionar a questão sobre o(s) movimento(s) da Terra. Saber se era razoável admitir, para a Terra, movimento de translação e/ou de rotação.

Com os trabalhos de Kepler e Galileu, o geocentrismo vê-se definitivamente ultrapassado. Depois de Kepler, a importância do movimento circular uniforme é “abolida”, e as suas leis para os movimentos planetários abrem caminho a uma reflexão bastante mais profunda do que a simples contemplação do céu. Por outro lado, a cada dia que passava, Galileu ia apresentando argumentos fortes contra a física de Aristóteles. As suas experiências sobre a queda dos graves, traduzidas em linguagem matemática, permitiram não apenas obter a lei de inércia, passo essencial para a compreensão da dinâmica dos astros, mas estiveram sobretudo na origem de uma transformação fundamental na física.

Hoje, cerca de 4 séculos depois, é fácil concluir que as questões em torno de todo o processo originado pela proposta heliocêntrica de Copérnico, eram mais filosóficas e culturais que científicas. Foi a esse nível que foram efectuadas as transformações mais importantes, e só assim foi possível o sucesso da revolução heliocêntrica! No entanto, convém recordar que foi o trabalho de astrónomos como Tycho Brahe, Kepler e Galileu, entre outros, que permitiu acabar de vez com a aceitação cega de alguns princípios que durante muitos séculos impediram uma maior evolução do conhecimento.

Bibliografia:
  • A. Pannekoek, A history of astronomy
  • J. Adamczewski and E. J. Piszek, Nicolaus Copernicus and His Epoch
  • A. Armitage, Copernicus: The Founder of Modern Astronomy
  • P. Duhem, Medieval cosmology: Theories of infinity, place, time, void, and the plurality of worlds
  • W. R. Shea,
  • Galileo's intellectual revolution
  • S. Drake, Galileo Studies: Personality, Tradition, and Revolution