Porque persiste o enigma?



A imagem do topo tem uma caixa branca que indica a localização da imagem de baixo, onde se verifica a existência de vários canais de formação hídrica. Na imagem o Norte aponta para o canto inferior direito da imagem, a qual se localiza em Noachis Terra a 65ºS, 15ºW. Créditos: (www.msss.com).
Neste capítulo, continuamos a seguir as pistas que nos permitem crer que a água terá já circulado em Marte.

Uma pista fortemente reveladora da surgência de água em Marte encontra-se em Noachis Terra. A zona em questão, centrada a 65ºS; 15ºW, mostra escarpas em forma de V na parede Oeste de uma cratera de impacto com 50 km de diâmetro em Noachis Terra. Esta forma em V ao longo da encosta parece ser resultado da existência de vários canais estreitos e curvos que partem de um ponto numa zona escura da encosta. Investigadores da MOC (Mars Orbiter Camera – Mars Global Surveyor) interpretam-nos como figuras similares às que ocorrem na Terra quando ocorrem exsurgências de água em encostas e esta vai formando pequenos canais ao longo dela.

Recentemente a câmara HRSC (High Resolution Stereo Camera – Mars Express) revelou a existência de um 'glaciar de rocha' em Promethei Terra, no flanco Este de Hellas (hemisfério Sul). Na Terra, os glaciares de rocha são formações geomorfológicas existentes em ambientes predominantemente periglaciares, constituídos por blocos de rocha de várias dimensões, estendendo-se à frente de moreias glaciares. A sua formação está correntemente associada a fenómenos de gelo e degelo do permafrost, ou ainda a grandes movimentos de massa associados ao movimento de glaciares. Em Marte, esta figura é o resultado do material que terá fluído desde uma cratera pequena (com cerca de 9 Km de diâmetro) até outra de maiores dimensões (com cerca de 16 Km de diâmetro). O gelo interveniente terá precipitado da atmosfera, há alguns milhões de anos.


'Glaciar de rocha' em Promethei Terra. Creditos: ESA/DLR/FU Berlin (G. Neukum).
Algumas mineralogias já detectadas na superfície marciana constituem também importantes pistas: O espectrómetro OMEGA (Observatoire pour la Minéralogie, l’Eau, les Glaces et l’Activité – Mars Express) detectou a presença de sulfatos. Existem duas hipóteses para a sua ocorrência na superfície de Marte. Na primeira, os sulfatos resultam de alteração in situ com deposição ao longo de vertentes resultando de lixiviamento lento. Formação por flutuação ao longo de lençóis de água enriquecidos em SO2 dissolvido (ou seja, H2SO4). Na segunda, os sulfatos estão presentes em depósitos de evaporitos lacustres. Neste caso, requerem a alteração de espessas sequências de rochas primárias (basaltos). Permanece, no entanto, a dúvida sobre onde se encontrarão os resíduos enriquecidos em Si, Al e Fe.

Também as argilas (nontronite/ esmectite) foram já detectadas pelo OMEGA. A presença deste tipo de mineralogias implica que o meio em que elas se formaram tenha tido a presença de água.



Montanha de sulfatos' em Juventae Chasma, na região de Lunae Planum, a aproximadamente 5º S e 297ºE. Créditos: ESA/DLR/FU Berlin (G. Neukum).


A hematite é um mineral que ocorre em grande abundância por todo o planeta, no entanto, em algumas zonas claras (em termos de albedo) de Marte, tais como Meridiani Planum, Aram Chaos, Ophir/Candor Chasma, aparece sob a forma particular de pequenos depósitos ou granulos e não inclusa no solo. Esta hematite forma-se por evolução da goetite (-FeOOH), como é sugerido por ensaios laboratoriais. Este processo pode dar-se por transformação directa da goetite em hematite, por dissolução a baixa temperatura ou por precipitação na água através de oxigenação num meio líquido e enriquecido em Fe. No entanto, a goetite não é estável nas presentes condições de Marte. A sua existência é promovida numa atmosfera primária, com alta pressão de CO2 e H2O. Com a diminuição destas pressões houve tendência a ocorrer alteração da goetite (fase mais cristalina) em hematite (fracamente cristalina), uma vez que as condições húmidas proporcionam a formação de fases mais cristalinas.


Zona de Meridiani Planum, onde se observam grânulos de hematite. Créditos: Veículo Spirit, NASA.
A existência de uma densa atmosfera, rica em H2O e CO2, promoveu uma activa alteração da superfície, nos primórdios de Marte, ao possibilitar uma rápida cinética (troca enérgica de elementos através de um modelo de circulação global), equilíbrio termodinâmico, ocorrência de fases hidratadas e a presença de fases de Fe2+.

Presentemente, a alteração da superfície de Marte ocorrerá de forma bastante diferente do seu passado. Hoje verifica-se a existência de uma fina atmosfera, de um clima frio e seco indutor de uma cinética bastante lenta, de fases fracamente cristalinas (resultantes da inexistência de água), e da dominância da erosão eólica que é revelada através da exposição contínua de superfícies frescas e da mistura física entre componentes formados no presente e componentes primitivos. Ocorre ainda alteração induzida por fortes oxidantes (H2O2 ou O2) cuja abundância é suficiente para se sobrepor à acção do H+. Já os resultados da sonda Viking revelaram a existência de uma superfície marciana bastante oxidada (de novo, a cor vermelha de Marte...).

Uma das teorias para a evolução dos processos de alteração da superfície deste planeta prende-se com a alteração da obliquidade do seu eixo de rotação. Segundo James Head (2005) a alteração que ocorreu na superfície revela a mudança de obliquidade do eixo de rotação de Marte desde o Noaquiano (há mais de 3,7 mil milhões de anos) até ao presente, com vários períodos até cerca de 35º, por exemplo no Amazoniano. Com uma maior obliquidade as zonas polares ficariam sujeitas a um clima mais ameno, ocorrendo o degelo das calotes e a consequente formação de vales e canais que transportavam essa água. No presente, verificamos a existência destes extensos vales (veja-se p. ex. Valles Marineris, no capítulo 3) e canais (veja-se p.ex. Aram Chaos, no capítulo 3), outrora eventualmente preenchidos por água.

Para terminar proponho voltar às questões iniciais do primeiro capítulo: O que se conhece da geofísica marciana, até ao momento, permite crer que a água correu em Marte até há cerca de 3 – 3,5 mil milhões de anos. Existem formas de relevo (vales fluviais, leitos com meandros, zonas de escorrência e vestígios de verdadeiras enxurradas) que só parecem possíveis se supusermos que já circulou água na superfície deste planeta. No entanto, persistem ainda grandes enigmas... Será que no passado terá havido alguma forma de vida neste planeta? E no presente, será que existe água à sub-superfície?



À esquerda, imagem artística do globo de Marte há cerca de 3500 milhões de anos. À direita, globo de Marte no presente. Créditos: Space4Case.


A resposta que eu proponho é que muito há ainda para descobrir sobre Marte! As missões presentes e futuras - europeias e americanas - quer através de sondas (munidas por exemplo de sistemas de radar) quer através dos módulos de pouso (munidos por exemplo de magnetómetros e de sismómetros) contribuirão para o esclarecimento das dúvidas existentes e para o conhecimento do que anteriormente foi impossível.