Ganhar, perdendo tempo


ou, para comer bem, era preciso inventar o calendário

Desde a sua implementação com acesso público, a Internet levou menos de 20 anos até conquistar o globo e ultrapassar todos os outros tipos de transporte de dados entre computadores remotos. A informatização, ou seja, a implementação de computadores e processadores em quase todas as áreas e aspectos da vida quotidiana não demorou nem três décadas. A sua antecessora, a industrialização, já precisou de um pouco mais de meio século. Parece muito tempo? Certamente o é/era para um indivíduo empenhado em introduzir novas tecnologias ou conceitos para facilitar ou complementar o modo como vivemos. Obviamente que, e à margem de tudo isso, nem todas as revoluções “tecnológicas” ao longo dos tempos seguiram o caminho certo. Há quem defenda, que o maior erro da humanidade foi termos descido das árvores.

É evidente e compreensível que antigamente muitas das mudanças fundamentais levassem o seu tempo, tipicamente demoravam muitas décadas, pois para além do factor de tempo de aceitação e implementação, com todas as suas envolventes e complicações, havia também o entrave natural da comunicação. Isto é, não só existia a dificuldade da palavra duma descoberta ou do método fundamental se espalhar, mas também o inevitável e enorme atraso até chegar a todo o lado, e com o devido rigor de precisão, o conhecimento do “como fazer” (o know-how), um conceito a que hoje chamamos de transferência de tecnologia.

Início das estações em 2006
Primavera20 Março12:33 UT
Verão21 Junho06:46 UT
Outono22 Setembro22:23 UT
Inverno21 Dezembro18:35 UT
A mudança mais incisiva para a espécie humana, no entanto, não levou nem décadas, nem séculos...foram precisos quase 7000 anos para passarmos todos de recolectores e caçadores para a agricultura e para o sedentarismo a esta associado. Que a mudança fosse demorada é até compreensível, mas tanto tempo não deixa de ser admirável. Seria por comodismo? Sempre era mais fácil esperar até que uma tribo vizinha já convertida trouxesse as colheitas para casa para depois encenar uma incursão hostil com saque abundante de bens, do que aprender o ofício, mudar o modo de vida e a organização da população e ainda por cima arriscar a ser também vítima dos que preferiam manter as velhas e eficazes tradições de andar à paulada. Ou seria porque a agricultura não é só semear, regar e colher? Certamente que não havia fornecimento de sacos de sementes, rotulados no lado exterior com as instruções de utilização. Portanto, todas as envolventes tiveram de ser aprendidas da forma mais dolorosa e demorada, com perdas de colheitas ou com colheitas fracas. Perdeu-se imenso tempo até se saber que certas tarefas só podiam ser realizadas em determinadas alturas e condições. Mas quais seriam essas alturas?


O disco de Nebra encontrado na Alemanha é a mais antiga representação real do céu vindo até nós da Idade do Bronze. Pensa-se, que o disco foi utilizado para determinar os solstícios e todas as datas de permeio com precisão bastante razoável. Leia mais sobre este disco no tema do Mês de Junho do Calendário da Astronomia 2006. Imagem: Landesmuseum für Vorgeschichte de Sachsen-Anhalt (RFA).
Sem dúvida, durante as épocas finais da pré-história já era conhecido, que ao anoitecer, os asterismos formados pelas estrelas (as constelações) eram, de uma dia para o outro, praticamente os mesmos e que estes se encontravam na mesma posição no céu em relação ao horizonte. E definitivamente sabia-se que estes asterismos mudavam ao longo de um período mais longo progredindo no sentido do movimento do Sol (para Oeste) dando lugar a outros asterismos até o ciclo se completar e depois se repetir. Isto deve ter sido especialmente fácil de detectar nas terras em que as estações eram extremas ou suficientemente acentuadas. Por exemplo, na Idade do Bronze, era praticamente impossível não reconhecer que, em terras em que o Verão era severo, cada vez que vinham os tempos secos, havia uma seta gigante a apontar para cima ao anoitecer (hoje Orionte é associado ao Inverno). Porém, nas terras dos berços das primeiras civilizações, as estações mal se distinguiam. E mesmo que assim fosse, a margem de erro na determinação de uma dada estação, era muita elevada. A mera constatação de ter chegado uma dada estação, e da respectiva necessidade de uma dada actividade agrícola, são conceitos demasiado imprecisos, para que a agricultura possa dar os seus frutos e alimentar em pleno uma população crescente e cheia de fome.

Felizmente e graças ao politeísmo (ver 1a parte do tema) existiam os sacerdotes, magos, xamãs (estes mesmo sem politeísmo), ou o correspondente local ao “velho do Restelo”, que, por pura experiência de longa vida ou por estarem empenhados em decifrar e compreender os sinais dos deuses, deram um contributo extremamente valioso. Na maioria das civilizações, umas mais cedo que outras, não deve ter demorado muito tempo (poucos anos ou décadas) até se saber, que o ponto no horizonte onde nasce o Sol oscilava ao longo do tempo entre dois extremos. Certamente foi uma descoberta um pouco demorada, mas não complicada, contar a sucessão de dias entre duas passagens num dos pontos extremos (o que chamamos hoje os solstícios) e verificar, que este período era quase sempre igual; 365 dias. Nasceu assim o conceito do ano solar, nasceu assim a base do calendário actual.

Doravante e teoricamente bastava apontar o número de dias decorridos desde um dos pontos extremos do nascimento ou ocaso do Sol e sabia-se qual era a correspondente altura do ano. Porém, tal simples linearidade não era o suficiente. Por exemplo, desde que as condições do tempo o permitissem, o semear ou a colheita ou outros trabalhos de campo, tinham e ainda têm de ser executados dentro de uma reduzida janela de tempo (alguns dentro de cerca de 15 dias). Falhar esta janela significava a perda da colheita ou simplesmente um crescimento insuficiente das plantas. Portanto, o que fazer se em torno do dia do solstício escolhido como o dia 1, o céu se mostrasse encoberto por muito tempo não permitindo portanto saber se e quando o fenómeno se verificava? Também não é de ignorar, que era fácil o registo do ano já decorrido se perder ou ficar corrompido, por sabotagem, acidente ou má gestão.

Felizmente já era conhecimento comum há muito, que a lua leva quase 29 dias para voltar a mostrar a mesma fase. Aliás, as primeiras medidas de contagem de dias, embora imprecisas ou mesmo inúteis para certas tarefas, eram puramente lunares. Mas com a descoberta do comprimento real do ano, e fazer acompanhar em paralelo a contagem do calendário lunar e a do ano solar, já permitia, de certo modo, confirmar uma data específica. E isto era muito importante, não só para a agricultura, mas também para muitas outras actividades e festividades dos povos.

Ao longo dos primeiros milénios da História registada, prevaleceu a contagem do ano solar, mas gradualmente nem todas as culturas adoptaram ou ficaram com o calendário puramente solar. Alguns optaram pela referida mistura e introduziram um calendário luni-solar cujos ciclos de anos normais, e anos com dias suplementares para fazer a correspondência entre o movimento solar e o movimento lunar, variavam entre 8 anos (calendário antigo grego) até 19 anos (calendário judaico). Completamente desconectado do movimento solar e do tão imprescindível proveito de saber, a estação, como acima referido, ficou o calendário islâmico (introduzido já na nossa Era), o qual tem a particular desvantagem do início do ano islâmico passar gradualmente por todas as estações. Também principalmente lunar foi o calendário dos chineses, embora nele também se reflectissem noções puramente filosóficas e outros conceitos, alguns deles nem sequer correctos e reproduzíveis, como mais tarde se veio a verificar. Porém, praticamente todas as culturas, independentemente do calendário oficial adoptado, recorreram ao ano solar para a determinação das estações e tudo o que a estas se associava. Ainda mais complicações inventaram os Aztecas e os Maias, entrelaçando calendários lunares, venusianos e o seu próprio conceito complexo de contagem numérica e a forma como representavam os números.

Páscoa em 2006
16 de Abril
O nosso calendário actualmente empregue, o calendário gregoriano, remonta ao seu precursor da época romana. Trata-se de um calendário puramente solar desenvolvido com base no calendário dos egípcios. A sua designação de Calendário Juliano provém de Júlio César, o qual implementou este calendário em 709 AUC (ab urbe condita), o que corresponde ao ano 46 antes da nossa Era. Devido ao cristianismo e durante o início da época medieval, este calendário foi complementado com a componente do calendário lunar para fins do cálculo do dia de Páscoa.

Para um simples indivíduo empenhado no seu trabalho quotidiano, um ano era um prazo demasiado longo para ter alguma utilidade prática. Por isso, os romanos dividiam o ano em partes. O antigo calendário romano, não só tinha um ano de sensivelmente 355 dias (calendário lunar), mas também tinha 10 divisões, os meses, embora estes com um número variável de dias (tipicamente entre 20 a 34).

O ano começava com o que hoje é o mês de Março, mês da fundação de Roma. Como sabemos isso? Há vários motivos, sendo um muito simples. O nome do mês de Dezembro vem do latino decem, dez, Novembro de novem, o número nove, Outubro deriva do nome latino octo, significa oito, tendo sido então o oitavo mês do ano. Setembro de septus, o número sete. Portanto, contando para traz, o primeiro mês do ano romano era o actual mês de Março.

Numa Pompilius, sucessor do fundador de Roma, introduziu mais dois meses (Janeiro e Fevereiro) embora o seu calendário dividisse 355 dias em meses orientados pelas fases lunares, mas estes ao menos com comprimento quase igual (alternando meses de 29 e 30 dias). Porém, quando Júlio César decidiu introduzir o ano de 365 dias, teve de ajustar não só o comprimento dos meses. Já os egípcios sabiam que 365 dias não chegavam para fazer a correspondência entre o movimento solar e esta contagem, pois após quatro anos seguidos, o solstício verificava-se quase exactamente com um dia de atraso. A conselho de um estudioso alexandrino, César implementou por isso a regra dos anos bissextos.


Moeda com a efígie de Júlio César, fundador do Calendário Juliano, base do nosso calendário actual.
César decidiu que o mês do ajuste de contas entre o Sol verdadeiro e o ano fosse o último mês do antigo ano romano (ou seja, o mês antes de Março). Para compensar os desvios originados pela antiga contagem, César decidiu também colocar o Sol outra vez no seu devido lugar e fez com que o ano 46 antes da nossa Era ficasse como o ano mais comprido da História ocidental, com um total de 445 dias (annus confusionis ultimus – ano da última confusão). Já que estava tão empenhado em reformas, César aproveitou para se imortalizar, cunhando um dos meses com o seu nome, hoje o mês de Julho.

O sucessor de César, o imperador Augustus, teve de fazer novos ajustes ao conceito dos anos bissextos, pois a regra introduzida por César foi mal interpretada e houve um excesso de anos bissextos. Aproveitando esta remodelação, Augustus não se fez de rogado, e decidiu que o seu nome também deveria ser empregue num dos meses, e assim ficou o nosso mês de Agosto. Embora não esteja documentado, pensa-se que o imperador Augustus não tenha achado piada por o seu mês ser mais curto do que o do seu predecessor. Por isso tanto o mês de Julho como o de Agosto apresentam desde então 31 dias, embora Augustus também tenha aumentado para 31 dias os meses de Outubro e de Dezembro e tivesse diminuído para 30 dias os meses de Setembro, Novembro e Fevereiro (este para 28 em vez de 29). Para completar e perpetuar o seu legado, mandou gravar tábuas de bronze com todos os anos que futuramente seriam anos bissextos. Porém, não foi ele o primeiro a criar um almanaque.

O nosso calendário actual (adoptado por Portugal no dia 15 de Outubro de 1582) é praticamente igual ao Calendário Juliano. Na realidade, este nome está mal empregue visto que o que temos é antes o “Calendário Augustiano”. Porém, o nosso ano rege-se pelo assim chamado Calendário Gregoriano. Esta alteração do nome deu-se devido à reforma do calendário empregue pelo então papa Gregório. A única diferença entre os dois, para além de um ajuste da data no momento da sua implementação, foi uma pequena actualização na regra dos anos bissextos (deixou de ser ano bissexto um ano divisível, sem resto, por 100 e não divisível por 400) e o dia 1 de Janeiro ficou definitivamente como o dia do início do ano (desde César a data do início do ano variou por vezes por motivos religiosos).

Aos astrónomos de todos os tempos e até à actualidade cabe velar pela exactidão do nosso calendário com a posição real da Terra e do Sol. Aos observatórios astronómicos, por sua vez, cabia até há poucas décadas uma outra tarefa essencial: a medição e determinação do tempo, isto é, para além da base do nosso calendário e das suas inúmeras desmultiplicações, tinham também que assegurar a desmultiplicação do dia, da qual, uma das unidades é a hora (minuto e segundo etc.).

Porém, verdade seja dita. Apesar do motivo para a invenção do calendário ter sido o exposto no texto acima e no da semana passada, e, a introdução e frequente modificação dos calendários se prendesse especialmente com a tentativa de fazer coincidir os desvios com a realidade das estações, quando finalmente passou a existir um calendário que se podia dizer exacto, já ninguém o utilizou mais. A nenhum agricultor que se prezasse, passaria pela cabeça fazer os trabalhos destinados ao mês de Setembro, somente porque o calendário civil indicava que era Setembro. Este orientava-se principalmente pelo céu estrelado e pelas condições meteorológicas. Aliás, nem César confiou no seu próprio calendário. Quando ele mandou as suas tropas para passar o Canal da Mancha, determinou a altura adequada e a estação não através do seu calendário, mas sim através da altura do Sol.