Modelo evolutivo: Do politeísmo às ciências naturais



As ovelhas gozam de uma vida relaxada, desconectada de todos os males e preocupações. A sua mente simples, hospedada num miolo pequeno, não lhes permite discernimentos complexos e, creio, talvez por ignorância minha, que nem sequer são capazes de discernimentos nenhuns. Portanto, na vida de uma ovelha, os dias devem estar cheios de coisas fascinantes e espantosas. Ficam fascinadas quando de manhã alguém abre a porta do estábulo e as leva para a luz do dia, a qual também deve ser um espanto para elas por si mesma. Mas pouco dura este espanto, pois é logo substituído pelo fascínio de encontrar um solo verde e cheio de coisas aparentemente comestíveis, suculentas e de bom cheiro. Admiram-se com cada flor com que se cruzam, assustam-se com cada pedra, para logo a seguir, ficarem outra vez espantadas com o solo verde, cheio de coisas suculentas... enfim… chega.

Do ponto de vista evolutivo, provavelmente, o ser humano começou os seus dias de forma não muito diferente da das ovelhas. Certamente que levou uma boa parcela de tempo, exprimível em deca-milénios, até conseguir dominar as suas faculdades mentais, e ainda mais tempo, para fazer com que a natureza se dignasse acrescentar mais algumas faculdades cognitivas, expansões de memória e actualizações no núcleo de processamento paralelo (vulgo multi-tasking). Em retrospectiva, a natureza já se deve ter arrependido disso. Por outro lado, podemos refilar e ressentir também, porque a natureza nos forneceu apenas sentidos de segunda categoria aos quais escapa mais de 90% do espectro electromagnético, o que nos complicou imensamente a vida. Especialmente no que respeita à nossa evolução ao longo dos tempos.

Por vezes tento imaginar como possam ter sido alguns trechos do quotidiano da vida dos nossos antepassados ancestrais, embora, por falta de experiência, tenha que transportar forçosamente conceitos do nosso quotidiano para esse mundo imaginário. Por exemplo, como terá sido olhar para a esfera celeste para esta gente? Provavelmente, cansados de caçar mamutes, roer ossos e assegurar a preservação da espécie e a integridade dos clãs, ao anoitecer deviam cair redondamente no seu poiso nocturno habitual, e parar no sonho dos inocentes de um momento para o outro. Passeios nocturnos de qualquer modo, por questões de segurança, não devem ter sido moda de certeza. Mas o que terá feito um casal que, por questões que me escapam, tenha preferido alguma privacidade? Ou, o que fizeram aquelas raras mentes singulares sempre em busca da descoberta e a tentar desvendar o desconhecido, durante as noites em que o sono não se quis manifestar? Safa-os o dom da língua ainda não estar evoluído o suficiente. Caso contrário, as conversas longe da poluição luminosa das fogueiras nocturnas para afastar os predadores, teriam sido algo curiosas.

- O que é aquela coisa que brilha ali?
- Não sei.
- Olha! Aquilo mexe-se, porquê?
- Não sei.
- Ontem aquela coisa grande tinha uma forma diferente, não tinha?
- Não sei.

Isto faz-me lembrar as ovelhas.

O tempo foi avançando milénio a milénio e, com ele, a mente humana, a língua, as primeiras tentativas de registo (desenhos e contagens) e a melhor forma para se matarem uns aos outros. Porém, ao acompanhar uma conversa sob semelhantes condições como as acima descritas, nos tempos que pouco antecedem o que chamamos de História, demonstra-se um vocabulário mais sofisticado, mas o resultado seria sensivelmente o mesmo.

- O que são as estrelas que brilham no céu?
- Não sei.
- Olha! Aquela estrela mexeu-se, porquê?
- Não sei.
- Ontem a Lua tinha uma forma diferente, não tinha? Porquê?
- Não sei.

Isto seria quase como uma conversa entre ovelhas com instrução, embora não o seja, nem o era. O que distingue a ovelha instruída do homem, tanto fazendo qual a Era, é o nosso instinto para ultrapassar as incógnitas, assim que estas se manifestaram como tais.

No caso do pequeno diálogo imaginário, se fossem ovelhas, não haveria problema nenhum no relacionamento inter-ovino se esta conversa se repetisse, dia após dia. Mas, se a pessoa que perguntou à outra fizesse as mesmas perguntas uns tempos mais tarde e recebesse as mesmas respostas, na vez seguinte, o diálogo se calhar não terminaria com “não sei”, mas com o inquiridor a afirmar “és um estúpido” ou algo parecido. A nossa condição humana, que nos distingue das demais, assegura que a pessoa que reconhece a sua falta de conhecimento tente ultrapassar esta ignorância, para não ficar mal vista perante outra pessoa, ou mesmo perante todo um grupo.

Portanto, de certo modo para disfarçar a ignorância e para tentar explicar o inexplicável, (sendo incerto qual foi a ordem de prioridade), nasceu o politeísmo. Quando não se sabia explicar um dado fenómeno, ou objecto ou estado, empregava-se um deus e o assunto ficava resolvido, assim como a consciência tranquilizada. Os proveitos directos e indirectos eram tão numerosos quanto o número de deuses. Utilizando outra vez o pequeno diálogo fictício:


- O que são as estrelas que brilham no céu?
- São luzes colocadas pelo deus da noite para nos guiar.
- Olha! Aquela estrela mexeu-se, porquê?
- Foi o mensageiro dos deuses a entregar uma mensagem urgente ao nosso líder.
- Ontem a Lua tinha uma forma diferente, não tinha? Porquê?
- Porque a deusa da Lua conta os nossos dias assim.
- És muito esperto...e sabes muito sobre os deuses.

Tal método simples de atribuir divindades a tudo o que era inexplicável, e praticamente tudo o era, também proporcionou, com a evolução da civilização, e especialmente do sedentarismo, um vasto leque de empregos novos desconectados dos típicos afazeres de uma população crescente. Para cada divindade havia, inevitavelmente, alguém que sabia interpretar os sinais dessa entidade superior, encaminhar as oferendas para evitar que a raiva divina se manifestasse, e, tratar de outros assuntos mais ou menos ligados a esse tema. Por exemplo, os egípcios, como é sabido, tinham um particular apego aos seus deuses, nomeadamente àquele que lhes assegurava as enchentes anuais do rio Nilo.

Para este povo era imprescindível colher um certo tempo antes das inundações dos campos, nem cedo demais para que as plantas evoluíssem ao máximo, nem tarde demais para que a colheita não fosse água abaixo. Prever estes tempos e, preferencialmente, prever também a abundância da cheia, era uma das tarefas dos sacerdotes. Como hoje sabemos e perfeitamente entendemos, o rio Nilo e as suas façanhas, eram independentes da abundância de oferendas.

Por isso, a casta de clérigos encarregados de passar a palavra entre o deus e o povo, tinha de magicar algo mais convincente e minimamente funcional para assegurar que o povo, a longo prazo, não desenvolvesse uma acentuada desconfiança e lhes retirasse todo o crédito, incluindo especialmente a boa vida associada ao ser servente de um deus. A dada altura, estes sacerdotes, na sua incansável busca de uma solução para este dilema da previsão, descobriram que a altura do ano em que a estrela Sírio nascia pouco antes do Sol (nascer heliacal), correspondia à chegada iminente da enchente do rio Nilo. Certamente aliviados, envolveram este conhecimento num manto de rituais e supostas visões, tendo desde então, pelo menos, uma forma razoavelmente correcta de prever uma parte daquilo que o povo precisava mesmo de saber. Os videntes tornaram-se portanto, um pólo importante nas sociedades emergentes. Mas, para que fosse possível prever a altura de um evento recorrente, fosse ele qual fosse, tinha de ser primeiro inventado um conceito novo: o Calendário (ver a parte seguinte deste tema “Ganhar perdendo tempo”).


Obviamente que este exemplo pode ser transportado para todo o tipo de conhecimento e quase todas as ciências.

Ficando pela Astronomia, a casta de sacerdotes dedicou-se principalmente, a partir daí, à observação intensa da esfera celeste e ao registo dos fenómenos e da repetição de eventos ao longo dos tempos. Estes registos proporcionaram, ao fim e ao cabo, meios de previsão de uma data de aspectos. Alguns tão simples como as fases da Lua ou a hora do nascer do Sol. Outros eram mais complexos, tais como a determinação correcta da data de festas religiosas, tão importantes para o povo e seus governantes.

Esta mistura de conceitos religiosos com conceitos físicos, teve repercussões bastante negativas para a evolução da humanidade. Por um lado, todo o conhecimento adquirido foi mantido como segredo de acesso exclusivo das classes de elite, o que lhes permitia preservar o seu estatuto. Por outro, mantendo o povo na incógnita e mergulhada a população na sua crença, levou a que a descoberta de novos conceitos e dos porquês raramente tenha sido aceite fosse por quem fosse. É mais fácil acreditar em deuses do que tentar aprender e compreender a mecânica celeste. Por isso, desde os primeiros registos históricos, e durante mais de 6000 anos de história humana, chegando até aos tempos depois da Idade Média, reinava uma abundante ignorância sobre o que realmente se passava na esfera celeste.

Porém, para calcular as posições dos planetas, as datas dos eventos mais importantes, os inícios das estações, etc., tinham que ser empregues procedimentos metódicos para obter estes resultados. Procedimentos metódicos envolvem a lógica, e a lógica traz consigo o conceito do implícito (princípio da exclusão). Por exemplo, quando um dado fenómeno finalmente consegue ser inequivocamente explicado, a lógica implica que todas as outras explicações existentes deixem de ser válidas.

Isto é uma das bases da ciência, aplicar procedimentos metódicos, lógica, e, averiguar as suas implicações. O homem desde a pré-história até há poucos séculos atrás, como descrevi, declarou o céu como o lar dos deuses, pois não conseguiu explicar, entre muitos, o movimento irregular dos planetas na esfera celeste. Mas, desde Nicolau Copérnico e Galileu Galilei que os deuses foram colocados no seu devido lugar. Hoje em dia podemos calcular as órbitas dos planetas com elevada precisão, e cada fenómeno celeste é perfeitamente previsível.

Obviamente, esta capacidade de previsão usando métodos científicos rompeu com o medo da ira dos deuses, e também criou uma enorme brecha entre a ciência e a religião. Hoje em dia, existem portanto dois conceitos de céu. Por um lado, há o céu como sempre foi encarado, o céu dos deuses, ou, conforme a fé, cheio de santos, profetas e outros. Mas quando um cientista fala do céu, ele refere-se sempre ao céu estrelado.

Na fé cristã, Deus é a divindade suprema, o qual, como descreve o livro sagrado dessa fé, supostamente vela pelo bem-estar do seu rebanho de ovelhas (nós todos). Porém, a nossa mente evoluída recusa-se a ser colocada no mesmo patamar cognitivo que o das ovelhas. Desde sempre, o homem quis e precisava de saber mais para entender os mecanismos por trás, os porquês. Inventamos a escrita que nos proporciona um meio de preservar e transmitir informação. Transmitir informação, tal como neste Portal do Astrónomo, é crucial para a nossa existência e para o nosso progresso. Mas mesmo que não seja importante a um nível existencial, muita escrita tem utilidade prática directa. Entre estes escritos encontramos também dois bastante relevantes, embora raramente lhes demos a devida atenção. O primeiro, já referido, é o(s) Calendário(s), o segundo o(s) Almanaque(s).
- Porquê?
- Não sei.