As Horas Nocturnas



Figura 1 — Diferença entre dia solar e dia sideral.
A constatação de que existem fenómenos naturais que se repetem com um ritmo regular deverá ter sido das primeiras percepções que os nossos antepassados tiveram. A existência de períodos alternados de claridade e de escuridão, ou de períodos de frio e de calor, levaram ao nascimento das ideias de dia e de ano e portanto do conceito de tempo. Por outro lado, uma observação regular do curso dos astros no céu permite constatar que existem determinados movimentos que se repetem exactamente com a mesma regularidade com que alternam os dias e as noites, ou as estações do ano. Daí que desde a mais remota antiguidade a deslocação dos astros no firmamento tenha servido como referência para medição do tempo.

Uma noção rudimentar de dia não é mais que o intervalo de tempo decorrido entre duas ocorrências consecutivas de um determinado fenómeno astronómico para um dado astro, como por exemplo a passagem desse astro pelo meridiano do lugar. Por outro lado, os astros deslocam-se com velocidades diferentes uns dos outros. As estrelas deslocam-se todas à mesma velocidade, o Sol, a Lua e cada um dos planetas têm velocidades diferentes. Sendo assim, podemos considerar a existência de dias: siderais (relativos às estrelas), solares, lunares e planetários, cada um com durações diferentes. Em rigor, a duração de cada um destes tipos de dias, se medida com um relógio que ande a velocidade constante também varia ao longo do ano. No entanto, essa variação não tem interesse para a nossa explicação.

Para entendermos os casos que adiante serão expostos, de determinação de horas nocturnas, apenas interessa considerar a diferença entre dia solar e dia sideral.

Consideremos o caso representado na figura 1. Na situação “A”, temos o Sol e uma estrela a passarem em simultâneo do meridiano do lugar, ou seja, podemos considerar esse instante como o início da contagem de um dia sideral e de um dia solar. Como a estrela está a uma distância muito grande, quando comparada com a distância Terra-Sol, podemos considerar que os raios de luz provenientes da estrela são paralelos entre si. Ou seja, na situação “B” completa-se um dia sideral. Entretanto, devido ao movimento de translação da Terra em torno do Sol, este teve um deslocamento aparente de cerca de 1 grau (percorre 360º em 365 dias). Ou seja, a Terra ainda tem que percorrer esse espaço na sua órbita até que se complete um dia solar, o que vai acontecer em “C”. O que é o mesmo que dizer que se tivermos um relógio que nos dê horas solares, verificamos que as estrelas passam pelo meridiano do lugar cerca de 4 minutos mais cedo de dia para dia. A este fenómeno chama-se “Aceleração das Fixas”.


Figura 2 — Rotação aparente da esfera celeste em torno do pólo.
Durante o período diurno pode-se usar o movimento do Sol no céu para sabermos as horas. Desde há muitos séculos que se constroem relógios solares, em que pela projecção duma sombra sobre um mostrador se pode saber as horas. A referência para estes relógios é o instante da passagem meridiana do Sol, quando o comprimento da sombra atinge o seu menor valor, coincidindo com o meio-dia.

Quando o Sol desaparece podem ser usadas as estrelas com o mesmo objectivo. Se observarmos com atenção o céu, durante algumas horas, durante a noite, verificamos que os astros descrevem um movimento circular no céu, em torno de um ponto fixo. Se deixássemos a objectiva de uma máquina fotográfica aberta durante 24 horas podíamos constatar que o movimento das estrelas era representado por esferas concêntricas em torno do pólo celeste, como representado na figura 2.

Poderia também ser usada a passagem meridiana de uma dada estrela, para referência da contagem das horas. No entanto, existe um procedimento mais simples. Se tivermos uma estrela sobre o pólo celeste, ela não se movimentará. Não existe nenhuma estrela nessas condições, mas no hemisfério norte existe uma que se encontra bastante próxima, a Polar. Por esse motivo, o seu movimento é praticamente imperceptível. Basta então ao longo da noite ir observando o movimento de uma estrela qualquer, em torno desta “estrela fixa” para ser possível determinar as horas. É este o princípio subjacente a todos os processos que adiante serão descritos para conhecer as horas durante a noite. Compara-se a posição de uma dada estrela da Ursa Menor, a Kochab, com a Polar, e fica-se a conhecer as horas.

Antes de explicarmos detalhadamente cada um dos instrumentos e regras usados para saber as horas nocturnas interessa só esclarecer mais um aspecto. Durante o dia, a referência usada é o Sol e de noite uma dada estrela, que como vimos, se deslocam a diferentes velocidades. Para facilitar a contagem do tempo era conveniente usar apenas uma referência, tendo sido escolhido o Sol. Então para usar qualquer dos processos que adiante exporemos bastava saber uma coisa: qual a posição relativa entre a Polar e a Kochab à meia-noite, para os vários períodos do ano. Na figura 3 podemos observar essa posição relativa para algumas datas do ano, sempre à meia-noite.



Figura 3 — Posição relativa entre a Polar e a Kochab para diferentes meses do ano.


Comecemos por explicar como se podia saber a posição relativa da Polar com a Kochab, usando uma figura imaginária colocada sobre o pólo celeste. Imaginava-se uma circunferência com uma figura humana desenhada no seu interior.

O centro da circunferência coincidia com a posição da Estrela Polar. As regras descritivas serviam para se conhecer a posição da Kochab à meia-noite. Essa posição era descrita tendo como referência algumas partes do corpo humano representado na figura 4. Assim, apareciam regras como:

Janeiro meado, será meia-noite no braço esquerdo;
e no fim do dito mês, será meia-noite uma hora acima do braço.
Fevereiro meado, será meia-noite duas horas acima do braço;
no fim do mês será meia-noite na linha do ombro esquerdo.
[...]



Figura 4 — Roda do homem no pólo.
A aplicação prática da regra poderia fazer-se usando um nocturlábio. Este consistia simplesmente num círculo com um pequeno furo no centro, tendo ainda uma escala para contagem das horas. Essa escala tinha a indicação da posição ocupada pela Kochab, à meia-noite, para diferentes datas ao longo do ano.

Para saber as horas era necessário colocar o instrumento na posição correcta. Para tal nele estava pelo menos a indicação da posição da cabeça, do tal homem imaginário. Colocando a cabeça para cima, o instrumento estava devidamente orientado. Seguidamente, observava-se a Polar pelo furo central, e verificava-se qual a posição da Kochab, naquele instante. Depois era só utilizar a escala para saber quantas horas faltavam para, ou passavam da meia-noite. Para se saber se passava ou não da meia-noite, bastava ter conhecimento que as estrelas rodam no céu, da direita para a esquerda. Na figura 5 está representado um desses instrumentos, sendo a imagem reproduzida da obra de um piloto português do século XVI.


Figura 5 — Nocturlábio de João de Lisboa.
Apresentamos na figura 6 mais uma imagem de um instrumento do mesmo género. Nesta estão representadas duas linhas que representam os horizontes em Cochim e no Rio Gambia. Trata-se de locais com latitudes baixas, isto é próximos do equador. Aí já não era possível observar a Kochab em todas as posições, e no hemisfério sul desaparecia a própria Polar. Donde se depreende que estas regras apenas se podiam aplicar a norte do equador. Para sul foram desenvolvidas regras similares, usando outras estrelas.

Instrumentos deste género eram já utilizados na Idade Média. O mais antigo deles, conhecido na Península Ibérica, é atribuído a um maiorquino chamado Raimundo Lullo. Entre as várias ocupações deste sábio contava-se a medicina. Daí que o seu nocturlábio venha descrito num livro intitulado Medicina e fosse destinado a conhecer as horas em que se deveriam administrar os medicamentos durante a noite. Além de permitir conhecer directamente as horas, indicava ainda a duração do período diurno, consoante o mês.

Para saber as horas bastava orientar a roda, apontando a data respectiva para Este. Observava-se a Estrela Polar pelo orifício central, e a posição da Kochab indicava directamente as horas que se liam na escala exterior, graduada em numeração romana. Quanto à duração do período diurno bastava simplesmente ler na escala mais interior, em numeração árabe, qual a duração para o mês em que se estava.



Figuras 6 e 7 — Roda de horas pela Polar, e Nocturlábio de Raimundo Lullo.


Curiosamente, a imagem, que se encontra na figura 7, reproduzida a partir do livro de Lullo apresenta a escala errada. As horas aumentam no sentido dos ponteiros do relógio, enquanto que a Kochab, tal como todas as outras estrelas, se desloca no sentido contrário, sendo portanto nesse sentido que as horas aumentam. Uma explicação que aparece na bibliografia consultada aponta para um erro do copista que incluiu a imagem na obra de Lullo. Esse tipo de erros aparece por vezes em obras daquela época. Deste modo, a imagem, tal como está representada apenas está certa para meados de Janeiro e meados de Julho, correspondentes às situações em que, à meia-noite, a Kochab se encontra nos braços esquerdo e direito,.


Figura 8 — Roda de D. Duarte.
O rei D. Duarte também teria concebido um destes instrumentos. Neste, além de ser possível conhecer quantas horas passavam ou faltavam para ser meia-noite, também era possível saber a hora do nascimento do Sol, para o dia respectivo.

O procedimento seguido para saber as horas usando este instrumento é semelhante ao seguido com o primeiro instrumento. Começava por se orientar a roda, apontando o furo central para a Estrela Polar e o mês de Janeiro para Leste. Seguidamente, verificava-se qual a posição da Kochab e contava-se a diferença de horas entre esta posição e o mês em que se fazia a observação, indicado na escala mais exterior. Determinava-se assim o número de horas que faltavam ou passavam da meia-noite. Quanto ao procedimento para saber a hora do nascimento do Sol, que era a outra informação que se poderia obter nesta recta, ele também era bastante simples. Depois de conhecida a hora, num determinado instante, contava-se o número de horas até coincidir com o mês em que se estava, lido na escala mais interior. Não se conhece nenhum exemplar, nem nenhuma representação deste instrumento. Porém, pela descrição do mesmo no Leal Conselheiro, de D. Duarte, teria um aspecto semelhante ao da figura 8.


Figura 9 — Nocturlábio de ponteiro.
O nocturlábio de construção mais complexa era conhecido como nocturlábio de ponteiro. Composto por dois círculos concêntricos, sendo um deles móvel, e ainda por um ponteiro, permitia saber directamente as horas, pela posição da Kochab, em qualquer época do ano.

O processo era bastante simples. Apontava-se o centro do instrumento para a Estrela Polar. Rodava-se então o círculo menor, para que o seu ponteiro coincidisse com a data, e rodava-se o ponteiro maior até que apontasse para a Kochab. Este ponteiro indicava as horas, lidas directamente no círculo menor.