A radiação que incide sobre os astronautas obriga ao desenvolvimento de técnicas com aplicações nem sempre previsíveis. E nem a moda está a salvo!
É verdade que o programa Apollo (que levou o Homem à Lua no final da década de 1960), assim como todo o projecto do vaivém espacial americano, tiveram motivações políticas. Tanto é assim que, com o terminar da guerra fria, se fechou um período fantástico da ciência, tecnologia, exploração e grandeza humanas, um período após o qual houve inclusivamente certos feitos que até hoje não foram repetidos.

A custo de muito dinheiro? Certamente. Mas com que benefícios? Aí as opiniões divergem. O 'efeito Apollo' extravasou para muitas áreas da tecnologia, algumas com aplicações tão surpreendentes quanto úteis no dia-a-dia das pessoas. Hoje em dia, e como resultado de dois efeitos principais, a transferência de tecnologia entre as áreas espacial e 'terrestre' é tanto uma questão de sobrevivência como de manutenção da excelência técnica da indústria espacial.
Em primeiro lugar, hoje em dia acabaram os orçamentos tipo poço sem fundo (tão típicos da era da guerra fria), tendo-se ao mesmo tempo assistido a uma cisão em duas vertentes da indústria espacial: a comercial e a científica. A exploração do espaço propriamente dita deixou de ser vista como um fim em si, muito embora exista por vezes essa justificação para a continuidade do programa do vaivém espacial americano. A Estação Espacial Internacional (ISS), por seu lado, é advogada junto da opinião pública sobretudo como um instrumento que nos permite 'ter benefícios em áreas como a medicina física, indústria farmacêutica e a investigação em materiais', com o argumento da exploração do espaço como valor por si próprio perdido em parte incerta.
(A exploração do espaço como fim em si - há que o assumir - sumiu-se, ou foi delegada nos departamentos de ciências espaciais/planetárias. Na prática, não tem efeitos na expansão da presença do homem no espaço. Em parte porque hoje em dia pouco mais é justificável do que o que dá retorno imediato e visível.)
Em segundo lugar, a indústria espacial manteve-se como o ponto culminante das tecnologias de ponta. Aumentou assim a proximidade e a dependência mútua entre o desenvolvimento de tecnologia nas agências espaciais e os projectos de investigação em áreas de aplicação 'terrestre' dessas tecnologia, sendo hoje possível estabelecer estratégias de desenvolvimento em larga medida ajustadas entre uma e outra vertente, os chamados programas de transferência de tecnologia. E não se julgue que esta transferência de tecnologia é unidireccional, apenas no sentido do desenvolvimento de aplicações espaciais para aplicações 'terrestres'. Por exemplo: um dos instrumentos da primeira missão europeia a Marte, que aterrará no Planeta Vermelho já no Natal de 2003, e que tem a função de penetrar no solo e recolher amostras para medições diversas, foi proposto inicialmente por um dentista e utiliza métodos próprios da medicina dentária!

A tecnologia espacial aplicada às ciências médicas

O desenvolvimento das telecomunicações sem fios e os esforços de miniaturização provenientes da exploração espacial podem salvar a vida de pessoas com problemas cardíacos
A medicina tem sido, desde o início da exploração do espaço, uma das grandes beneficiárias das tecnologias desenvolvidas para o lançamento e operação de missões espaciais, a maior parte das vezes de forma perfeitamente casual. Por outro lado, e para além do esforço de miniaturização exigível para uma missão espacial dadas as limitações de espaço, peso e consumo de energia a bordo de um satélite, do qual beneficiam em particular as cirurgias médicas e a indústria das próteses, dever-se-á recordar que a monitorização do ser humano foi, desde as primeiras missões tripuladas, uma prioridade absoluta. Não é por acaso que uma missão tripulada é tão cara (cada missão do vaivém espacial custa entre 500 e 1000 milhões de Euro!!!): para além de exigir condições do ponto de vista ambiental e de segurança, concebidas especialmente para humanos e que uma máquina pode dispensar, durante toda uma missão tripulada é o astronauta que está no centro das atenções e cuidados de um número significativo de pessoas, precedendo mesmo tudo o resto a bordo da missão.

O esforço necessário para a monitorização e mitigação dos efeitos da permanência de astronautas no espaço, que obriga a uma congregação de esforços criativos extraordinários para a concepção de sistemas especificamente adequados a humanos, permitiu assim criar conhecimentos de utilidade assinalável para o cidadão comum, como sistemas de medição automática da pressão sanguínea (proveniente do programa de vôos tripulados Mercury, nos anos 60), regras para a concepção das cadeiras ergonómicas dos nossos gabinetes (parcialmente baseadas em investigações sobre o efeito da micro-gravidade nos humanos a bordo da estação Skylab, nos anos 70), sistemas de imagem de alta velocidade para a monitorização do coração em pacientes mais sensíveis à radiação, como bebés, crianças e grávidas (desenvolvidas para utilização em astronautas, que são vítimas de grandes doses de radiação durante as viagens espaciais), sistemas de estimulação de músculos utilizados em pacientes com doenças neuromusculares e com lesões na coluna vertebral (desenvolvidos para minimizar os efeitos da ausência de peso na massa muscular de astronautas), e até desfibriladores automáticos e implantáveis no corpo do paciente de forma a reagir, em tempo real, a potenciais arritmias cardíacas (um sistema inventado para corresponder aos efeitos da deslocação de fluidos dentro dos corpos de astronautas e que causa problemas cardíacos que se podem tornar num problema muito grave, sobretudo se atendermos à impossibilidade de intervenção de um especialista quando estão em causa vôos espaciais).

Os benefícios para as ciências médicas da exploração do espaço não se ficam, no entanto, apenas por aqueles decorrentes dos avanços ocorridos em técnicas de monitorização de astronautas. Verificam-se, de facto, situações em que as ciências mais díspares encontram soluções para os seus problemas que partilham de tecnologia comum. Quem acreditaria, sem a confirmação através da experiência, que um laser originalmente desenvolvido para a monitorização da camada de ozono terrestre (outro dos benefícios da exploração espacial) poderia ter ajudado a criar um revolucionário método de desobstrução de vasos sanguíneos por laser que substituiu técnicas que antes obrigavam os médicos a submeter um paciente a radiação (*)? Ou que os moldes hoje utilizados para a produção de próteses são idênticos aos utilizados como isolantes do depósito externo do vaivém espacial americano (dada a sua resistência a temperaturas extremas, leveza, robustez, preço reduzido e facilidade de armazenamento)? Ou, ainda, que os aparelhos utilizados por muitos de nós para corrigir problemas de formação (ou deformação...) com os nossos dentes são constituídos por um material chamado nitinol, concebido durante os anos da corrida ao espaço para suportar satélites durante o seu lançamento (e que possui a capacidade mágica de voltar à sua forma inicial mesmo após as contorções mais incríveis)?

As missões espaciais exigem constantemente novas soluções para problemas aparentemente incontornáveis. É, aliás, precisamente nessas alturas que vem ao de cima a incrível capacidade criativa humana, sustentada no trabalho de milhares de pessoas com o objectivo de ver apenas mais um (na perspectiva de cada um de nós) satélite no espaço.
Pôr um satélite 'lá em cima' torna-se assim algo que extravasa o conceito típico do lançamento de satélite = foguete + caixote cheio de bugigangas. Um satélite é um produto extremamente complexo e que exige atenção desde o planeamento inicial, até à construção, teste/integração de sistemas, lançamento e operação.
Embora em planos diametralmente opostos, o cuidado exigível ao longo de todo um projecto de um satélite assemelha-se assim à concepção, desenvolvimento, teste, instalação e sobretudo a monitorização de um elemento tão vital como um pacemaker para um paciente de coração. Com base nos aspectos comuns entre um e outro, a indústria espacial pode-se gabar de ter ajudado, ainda que indirectamente, a salvar a vida de imensas pessoas com problemas cardíacos um pouco por todo o Mundo, através dos sistemas de telemetria que foram desenvolvidos inicialmente para a operação de satélites em órbita e sondas inter-planetárias, e que permitem hoje a ligação entre o exterior e o interior do corpo do paciente e a monitorização do seu estado de saúde sem recurso a qualquer fio.

Segurança

Em países flagelados pelas minas anti-pessoais, os sistemas de radar concebidos para o estudo do subsolo de outros planetas podem fazer a diferença na sua detecção e eliminação
Uma das características principais de um aparelho espacial é a sua imensa robustez ao ambiente hostil do espaço. Não se trata apenas da radiação intensa aí existente, da ausência de ar ou de uma estação de serviço nas redondezas: alguns dos testes mais severos a um satélite servem para o preparar para as fortes vibrações a que este está sujeito durante um lançamento, para testar a solidez da sua estrutura durante uma reentrada na atmosfera terrestre a 30 000 km/h, ou para determinar a robustez de um sistema de airbags desenhado para proteger uma sonda do impacte na aterragem noutro planeta.
Dos materiais e tecnologias que constituem um tal satélite exige-se assim resistência, leveza, eficácia, e, acredite-se ou não, máximo controlo de custos (cada quilo de material enviado para o espaço custa cerca de 40 000 Euro; por cada 20 quilos de foguetão é posto em órbita um quilo de satélite!). Isto tudo são requisitos que se adaptam, por exemplo, perfeitamente aos sistemas de segurança dos nossos automóveis - de que outra forma estaria a construtora de Formula 1 McLaren em posição que lhe permitisse desenhar a estrutura da sonda britânica Beagle2 que seguirá em Maio do próximo ano para Marte? (Curiosamente, esta sonda será protegida por airbags especialmente resistentes durante a sua provavelmente pouco suave aterragem na superfície do Planeta Vermelho... recorde-se que um em cada quatro airbags é produzido por uma empresa que aplica aí o know-how adquirido na propulsão por combustível sólido de mísseis balísticos e lançadores de satélites).
Nos últimos anos, em particular, tem-se assistido à proliferação de materiais e técnicas utilizadas em missões espaciais um pouco por toda a sociedade: em automóveis, motas, veleiros, capacetes, roupas de protecção contra vandalismo e fogo, sistemas de redução activa de ruído, e por aí fora. As propriedades mecânicas e leveza de certos materiais são música para os ouvidos dos construtores de veículos de transporte e lazer (que poupam no consumo e ganham nas performances, na longevidade e na segurança), fabricantes de tecidos resistentes a vandalismo (saídos dos fatos de astronautas e alguns materiais a bordo dos lançadores de satélites europeus), fabricantes de fatos de protecção para bombeiros com sistemas de refrigeração (mais uma vez saídos da tecnologia utilizada nos fatos de astronautas), fabricantes de travões de alta performance e até empresas ligadas à área da moda, como os fabricantes de óculos (os óculos escuros polarizados, que protegem os olhos da radiação solar, foram inicialmente desenvolvidos para proteger trabalhadores na área aeroespacial das intensas radiações ultravioleta emitidas durante o lançamento de um foguetão).

As aplicações de tecnologia espacial para a segurança das pessoas são ainda e especialmente evidentes na área dos radares. Não os radares desenvolvidos para detectar aviões no ar, e sim os que inicialmente foram propostos para um programa de exploração do subsolo da Lua. Recentemente, a tecnologia daí derivada foi direccionada, através de um programa de transferência de tecnologia da agência espacial europeia (ESA), para a detecção de minas anti-pessoais, em zonas do planeta onde o número de vítimas destes engenhos é elevado, os custos de detecção e remoção também, e onde não existia muita esperança que a situação se viesse a alterar nos próximos tempos.
Os primeiros resultados confirmam as potencialidades deste sistema que pode ser transportado na mão de um utilizador, mostrando que é possível detectar corpos estranhos próximos da superfície, mesmo minas de plástico (difíceis de detectar utilizando outros métodos) através de dados obtidos por radar em cortes horizontais do terreno; é ainda possível reconstruir em 3 dimensões a forma do objecto em causa. Um protótipo deste sistema, desenvolvido por empresas, universidades e entidades europeias ligadas à investigação conseguiu já detectar minas até 40 cm de profundidade. Poderá isto ser o início de uma nova perspectiva de futuro para países como Angola?

Para além das aplicações que a tecnologia espacial tem na protecção e melhoramento dos cuidados médicos do indivíduo, muitas outras áreas beneficiaram, beneficiam, e beneficiarão no futuro de uma ligação próxima entre a exigência extrema das agências espaciais e as diferentes áreas da ciência e tecnologia, dada as enormes potencialidades ainda por explorar.
Os benefícios provenientes da exploração espacial para diversas áreas da tecnologia como a produção de energia, a investigação em materiais, o controlo e automação de robots, as telecomunicações, e a construção civil serão assim as próximas disciplinas a ser focadas, no penúltimo artigo desta série.

(*) O método de angioplastia por laser, aqui referido como revolucionário, surge como alternativo a outro modo de desobstrução de artérias no qual a tecnologia teve um papel decisivo. Com a assistência de um sensor de radiação utilizado em missões como a Meteosat-3 ou o telescópio espacial Hubble, é possível medir com grande precisão a dose de radiação recebida pelo paciente, de forma a que um tratamento eficaz seja compatível com níveis de radiação limitados.