A galaxia M99 observada no visível - National Optical Astronomy Observatory/Association of Universities for Research in Astronomy/National Science Foundation
Mas voltemos à nossa desolada galáxia, M99: o que lhe aconteceu não foi mais do que ser atraída pelo enxame - não pela sua beleza, embora esse fosse motivo suficiente! - mas pela atracção gravitacional que a grande massa deste exerceu sobre aquela pequena espiral que vagueava alheadamente pelo espaço circundante.

Assim acontece com várias galáxias espalhadas pelo Universo, que acabam por se juntar a estas "famílias" e abandonar o seu estatuto de galáxias "isoladas". Como consequência, e por meio de variadas interacções com o enxame, a galáxia recentemente chegada sofre, inevitavelmente, algumas transformações estruturais.

Foi o que se passou com M99: reparem como tem o seu núcleo ligeiramente deslocado "para cima" na imagem. Sabe-se que esta galáxia se move através do enxame com uma velocidade de 1200 km/s (ou 4 320 000 km/h): um valor estonteante para os nossos hábitos mas normal em termos de objectos extragalácticos. Para comparação, basta lembrar que o Sol se move a cerca de 227 km/s (ou 828 000 km/h) em torno do centro da nossa galáxia, a Via Láctea: uma espiral de certo modo semelhante a M99.

A galáxia M98 observada no visível (imagem composta a partir de observações em diferentes filtros). National Optical Astronomy Observatory/Association of Universities for Research in Astronomy/National Science Foundation.
Uma explicação proposta para justificar esta assimetria de M99 foi que tal teria sido o resultado da interacção gravitacional de M99 com as outras galáxias do enxame da Virgem. Ao passar por elas, M99 terá sido literalmente "puxada" em vários sentidos, o que a distorceu um pouco. No fundo, estamos a falar do efeito de forças de maré.

Mas M99 tem pouco motivo de queixa: a sua vizinha, M98, terá sofrido bem mais com estes encontros: repare-se como, vista de perfil, se adivinha uma forte distorção do disco e bastantes irregularidades na estrutura espiral.

Para além destes "revezes", muitas destas galáxias que "caem" para dentro dos enxames ficam "anémicas": o seu gás é literalmente "varrido" pelo gás do enxame. Ficando mais pobres em conteúdo gasoso, estas galáxias formam menos estrelas e tornar-se-ão mais ténues do que se vivessem isoladas. Este destino tiveram várias galáxias que se encontram hoje bem aninhadas nos enxames como, por exemplo, a galáxia NGC4522.

Como as imagens que aqui se mostram são no óptico, não é notória a diferença relativamente a uma galáxia que não tenha sofrido este tipo de interacção com o meio denso de um enxame. É apenas quando os astrónomos observam na banda do rádio e medem o fluxo da radiação que o gás galáctico emite nesses comprimentos de onda, que se apercebem da deficiência deste ao compararem com o conteúdo gasoso de uma galáxia normal do mesmo tipo mas que não é membro de um enxame.

A galáxia espiral NGC4522, também pertencente ao enxame da Virgem. A imagem foi obtida a partir da combinação de vários filtros ópticos. A maior parte da luz que se observa provem das estrelas da galáxia. As bandas escuras são devidas às partículas de poeira, também constituintes da galáxia, que bloqueiam e absorvem essa radiação.
Jeff Kenney at the WIYN 3.5-meter telescope
E podemos prosseguir na enumeração dos mecanismos que alteram a vida das galáxias de enxame como, por exemplo, o seguinte.

A maior parte das galáxias dos enxames tem órbitas radiais ou circulares com tendência a espiralar para o centro do enxame. Para tal contribuem, essencialmente, dois factores.

Primeiro, a maior profundidade do poço de potencial nessa zona: a densidade da matéria (galáxias, gás intergaláctico e matéria escura) é maior aí, exercendo portanto uma poderosa atracção gravitacional. Assim, as galáxias têm tendência a dirigir-se para o centro do enxame, tal qual como uma bola abandonada no bordo de uma tigela acaba, irremediavelmente, por cair para o fundo desta.

Para alem disso, há a considerar uma espécie de "atrito" que se desenvolve no interior dos enxames e que trava o movimento das galáxias que se estão a mover para as regiões centrais. Para percebermos o mecanismo aqui em jogo, imaginemos uma galáxia numa órbita radial. Ao longo do seu movimento, ela vai atraindo as galáxias mais próximas com que se vai cruzando, continuando no entanto sempre a avançar. O resultado é uma tendência para se acumular um maior número de galáxias no seu rasto. Este acréscimo de massa que se constitui "nas costas" da galáxia em movimento puxa-a, por sua vez, para trás, tornando-a mais lenta.

O conceituado astrofísico Subrahmanyan Chandrasekhar, quando ainda jovem.
NASA/CXC/SAO
Este efeito denomina-se fricção dinâmica e foi enunciado na primeira metade do século XX pelo famoso astrofísico Indiano-Americano Chandrasekhar, mais tarde laureado com o prémio Nobel da Física em 1983.

Ao terem a sua velocidade diminuída pela fricção dinâmica, mais difícil se torna às galáxias de escapar à significativa atracção gravitacional exercida pela região central do enxame. De maneira ilustrativa, e voltando ao nosso exemplo anterior, é análogo a pensar que se não houvesse atrito entre a bola que cai do bordo da tigela e as paredes da tigela, a bola manteria sempre uma velocidade suficiente que lhe permitiria nunca parar no fundo da tigela: faria um vaivém contínuo.


Assim, várias "congéneres" de M99 (ou mesmo a própria, se esperarmos vários milhões de anos) já terão terminado ou terminarão a sua viagem até à zona central do enxame. Nessas regiões, a menor velocidade que já possuem e a maior proximidade de outras galáxias (no centro a densidade aumenta) levam a que os encontros entre galáxias deixem de ser meras passagens próximas que afectam a morfologia das galáxias que se cruzam para se "converterem" em verdadeiras colisões frontais em câmara lenta que acabam na fusão das galáxias numa só.


Imagem no visível da galáxia elíptica gigante M87. Com um diâmetro superior ao do disco da Via Láctea, a forma elipsoidal típica das elípticas implica um volume muito superior preenchido por estrelas, o que resulta numa massa total e luminosidade verdadeiramente gigantes para uma galáxia.
Estas fusões acontecem em escalas de tempo muito longas para nós mas relativamente curtas quando comparadas à idade do Universo. Falamos de processos que levam da ordem das centenas de milhões de anos a completarem-se. Muitas vezes, a estrutura das galáxias em interacção - os discos, o padrão espiral - fica totalmente destruída, resultando uma galáxia elíptica.

Na verdade, as dimensões e outras propriedades físicas de M87, a monstruosa galáxia elíptica central do enxame da Virgem, levam a crer que esta é o resultado de repetidas fusões de galáxias.

Clique na imagem para ver o filme.
John Dubinski (CITA, University of Toronto)
O filme mostra uma simulação numérica em que se reconstitui este processo dinâmico, feita com base nas equações físicas que regem a atracção gravitacional entre os corpos em questão.

Este é, alias, um método a que muitas vezes se recorre em Astrofísica: dado que as escalas de tempo envolvidas são extremamente longas quando comparadas com o tempo de vida da Humanidade, a única coisa que podemos fazer é observar diferentes galáxias em diferentes fases de fusão e, a partir dessas observações e recorrendo aos conhecimentos da Física que regem a Natureza e que os cientistas vão desvendando, reconstituir o processo.

Apesar de nem todas as galáxias que hoje existem serem o resultado de fusões entre galáxias de menores dimensões, este processo contribuiu fortemente para a formação de uma percentagem considerável destes objectos. Ou seja, se há galáxias elípticas que, tal como M87, "canibalizaram" outras, muitas elípticas (ditas normais) são resultado de uma galáxia única que se formou há muito tempo atrás e evoluiu pacificamente ao longo da sua vida. Esta era, alias, a ideia preponderante sobre a formação das galáxias até há poucos anos atrás, quando novos dados observacionais levaram os astrónomos a desenvolver a ideia da fusão que, longe de destronar a original, surgiu como um processo alternativo.

Imagem no óptico da região onde se encontra o enxame de galáxias MS1054-03, um dos mais longínquos que se conhece. As galáxias pertencentes ao exame têm uma cor avermelhada, enquanto que as de tom azul ou amarelo são objectos mais próximos de nós que se encontram na linha de visão do enxame. Uma equipa de astrónomos europeus e americanos estudou as imagens detalhadas de 81 das galáxias membros do enxame, apurando que 13 delas são o resultado de colisões recentes ou ainda em curso (as ampliações à direita mostram alguns desses objectos). Pieter van Dokkum (University of Groningen), ESA and NASA
Uma dessas observações foi feita pelo telescópio espacial Hubble, que recolheu imagens em diferentes filtros do enxame de galáxias distante MS1054-03. Este enxame encontra-se cerca de 166 vezes mais longe de nós que o enxame da Virgem, o que quer dizer que o estamos a ver como ele era há cerca de 8 mil milhões de anos atrás (ou seja, numa altura em que o Universo tinha pouco mais de metade da sua idade actual), devido ao tempo que a radiação que ele emite demora a chegar até nós.

Nos cortes que mostram detalhes da imagem, vêem-se algumas das galáxias membros deste enxame que apresentam estranhas formas, bem diferentes das belas espirais ou elípticas de estrutura bem delineada que mostramos para o enxame da Virgem. Estas galáxias ainda estão no processo de se formarem e algumas mostram mesmo núcleos múltiplos, prova incontestável de fusão em curso.


Do ponto de vista de M99, a aventura terá começado há alguns milhões de anos atrás e, provavelmente, estão longe de se terminarem as suas peripécias!