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"Não chega ter uma boa mente. O mais importante é usá-la bem."
- René Descartes


O Universo e a Gota d’Água

2005-10-06
Outro dia, uma leitora amiga minha me perguntou porque esta coluna se chamava micro/macro1. “Nomezinho estranho esse, não é não?” disse ela, sorrindo. Após repreendê-la, afirmando (também sorrindo) que se ela tivesse lido todos os textos ela saberia responder à sua própria pergunta, me dei conta de que o nome merece mesmo uma explicação.

Meu pai costumava sempre dizer que existe um universo em uma gota d’água. “O macro cabe no micro”, era uma de suas frases prediletas. Na época, não dava muita bola para o que ele dizia. Hoje, já penso diferente e sei que não só o macro cabe no micro, como o Universo é uma gota. Talvez uma gota em um infinito oceano de universos.

A partir dos anos 70, duas áreas da física aparentemente muito diferentes começaram a se aproximar. Antes, uma relação entre as duas parecia ser impossível. No início a coisa foi meio tímida, algumas idéias arrojadas aqui e ali testando uma possível união. Hoje, uma não pode viver sem a outra. As áreas são a cosmologia, que estuda o Universo como um todo, sua origem e evolução, a área mais “macro” da ciência, e a física das partículas elementares, que estuda as propriedades das menores entidades que existem, os tijolos fundamentais da matéria, ou seja, a área mais “micro” da ciência. Tudo o que sabemos sobre a Natureza, incluíndo o que sabemos sobre nós, fica entre estes dois extremos. O que não sabemos também.

De onde veio esta união? Em 1965, o modelo do Big Bang foi confirmado através de observações realizadas por dois astrofísicos dos Laboratórios Bell que testavam transmissões de microondas para comunicações por satélites. Eles descobriram um ruído em sua antena que vinha de todas as direções do céu. Aflitos, conversaram com outros astrofísicos que explicaram que este “ruído” era radiação eletromagnética que vagava pelo Universo desde a sua infância. Usando dados atuais, este ruído foi produzido quando o Universo tinha em torno de 400 mil anos de idade. Hoje, a idade do Universo é de aproximadamente 14 mil milhões de anos. A consequência é imediata: se o Universo tem essa radiação toda e ela agora é muito fria (-270 graus Celsius), no passado, quando o Universo era menor, ela era bem mais quente: quanto mais para trás no tempo, mais quente o Universo. E, como ele está em expansão desde os seus primórdios, menor também. O Universo bebê era pequeno e quente.

E a matéria toda que existe? Continuando nossa visita à infância cósmica, quanto mais quente o Universo, mais díficil é para a matéria se manter coesa. Como exemplo, voltemos à gota do meu pai. Muito frio, ela congela. Muito quente, ela evapora, e moléculas de H2O viajam solitárias pelo espaço. E se o calor aumentar? As ligações entre o átomo de oxigênio e os dois de hidrogênio se rompem e temos apenas átomos livres. Mais calor, e os elétrons não conseguem continuar junto aos prótons: os átomos se dissociam (ionizam) e não existe mais água. No Universo, isso ocorreu aos 400 mil anos. Antes disso, o calor era ainda maior. Com um segundo de vida, o Universo era tão quente que os prótons e nêutrons nos núcleos atômicos se separaram. À um centésimo de milésimo de segundo, prótons e nêutrons não existiam: eles se dissociam em quarks, as partículas das quais são feitos. A gota de meu pai virou uma sopa de quarks e elétrons, as partículas elementares da matéria. O macro virou micro.

Ainda nem chegamos ao tempo zero e o Universo virou uma sopa de partículas e radiação. Mas o tempo continua correndo ao contrário e o Universo continua encolhendo. Quando chegamos à uma fração ridiculamente pequena de um segundo (10-44 seg para os interessados) o Universo inteiro é do tamanho de uma pequena gota d’água…E a temperatura é tão alta que nem sabemos que tipo de partículas existiam. Chegamos ao limite, o macro e o micro entrelaçados. E agora? Da física de partículas vem uma inspiração: talvez nosso Universo seja mesmo um gota, flutuando em um meta-oceano, o multiverso feito de todos os universos. Meu pai adoraria saber disso. “Tá vendo filho? O próprio macrocosmo não passa de um microcosmo”.

1Micro/macro é o nome da crónica publicada na "Folha de S. Paulo".


Marcelo Gleiser é professor catedrático de física e astronomia no Dartmouth College, EUA e autor, mais recentemente, do livro "O Fim da Terra e do Céu". Esta crónica foi inicialmente publicada em 19 de Setembro de 2004 na “Folha de S. Paulo”