Poeiras da Criação
Análises detalhadas dos minerais e elementos dos meteoritos dão importantes informações das fontes astrofísicas que contaminaram a nébula solar, como esta evoluiu e como se deu a diferenciação e evolução protoplanetária, aquilo que hoje pode ser designado por astronomia ao microscópio.
Este estudo faz-se recorrendo a sofisticadas técnicas analíticas que vão desde a simples microscopia óptica até técnicas de microscopia electrónica com sistema de microanálise por raios X, microssonda electrónica, microssonda iónica e métodos analíticos instrumentais como o ICP-MS, espectroscopia de massa, INAA, entre muitos outros. Por isso não é de todo descabido dizer, como veremos, que algumas observações astronómicas importantes, geralmente efectuadas com potentes telescópios, podem também ser feitas com o recurso ao microscópio, pelo que as disciplinas de Astronomia ao Microscópio, Cosmoquímica ou Astromineralogia merecem hoje ser encaradas, como complementos auxiliares da Astrofísica.
Astronomia ao microscópio
Avião de espionagem do tipo U2, aqui usado pela NASA para a recolha de partículas cósmicas na estratosfera terrestre (Cortesia NASA).
A - Partícula de Brownlee ou IDP observada ao microscópio electrónico, com um diâmetro aproximado de 20 µm (Cortesia: NASA/JSC). B - Espectro da composição elementar das IDPs mais primitivas. Os seus teores em elementos refractários não se desviam muito dos valores encontrados para a atmosfera solar e do dos condritos carbonáceos do tipo I (Cortesia NASA/JSC).
Muitas destas partículas são de origem extraterrestre e são designadas de poeiras cósmicas, partículas de Brownlee, do cientista que pela primeira vez as estudou, ou mais correctamente de partículas de poeiras interplanetárias (IDPs). Com facilidade consegue-se separar as IDPs de outras contaminações, como as partículas vulcânicas, aerossóis de poluição e outras partículas terrestres que sobem até à estratosfera. A maioria das IDPs mostram um conjunto elementar que reflecte as abundâncias solares dos diferentes elementos, não sendo ainda possível uma separação entre as partículas cometárias e as dos condritos carbonáceos.
Proveniência, recolha e estudo das poeiras interplanetárias (IDPs). A sua origem cometária e ou meteorítica ainda está por estabelecer.
É até provável que este tipo de meteoritos primitivos sejam fracções rochosas dos cometas, sendo o assunto ainda uma dúvida entre os especialistas. Uma futura análise das partículas recolhidas pela sonda Stardust poderá permitir esclarecer um pouco mais da sua real proveniência e sabermos ao certo o que constitui os cometas, para além dos gases e compostos já identificados. É de esperar que a sua mineralogia não seja diferente da dos condritos carbonáceos havendo quem aponte que estes são meteoritos de natureza cometária. Um verdadeiro meteorito cometário – composto por gelos e matéria orgânica abiótica – nunca foi encontrado. Apesar de algumas especulações, não temos a certeza de que nas nossas colecções de meteoritos existam amostras provenientes de cometas. Um facto que corrobora esta ideia é o de nunca se ter observado a queda de nenhum meteorito aquando de uma “chuva de meteoros”, como as que falamos na primeira parte deste artigo.
Fragmentos do condrito carbonáceo Tagish Lake conservado naturalmente no gelo logo após a queda (Cortesia de M. Mazur/University of Calgary).
O Tagish Lake mostrou-se similar ao grupo dos condritos carbonáceos do tipo CI, um grupo que representa 4% das quedas dos meteoritos, sendo, pela sua composição, considerado o mais primitivo dos meteoritos conhecidos, reservando uma relíquia químico mineralógica dos tempos pré-planetários do sistema solar. Mostra uma composição similar aos elementos da atmosfera solar, com excepção óbvia do hidrogénio e do hélio. Quimicamente falando, estes meteoritos sofreram pouca ou nenhuma alteração desde a acreção do material solar, num tempo que pode ser datado entre os cinco mil e os 4,5 mil milhões de anos. O Tagish Lake foi formado num corpo parental com menos água do que os outros condritos carbonáceos conhecidos, o que significa que a sua textura original se mantém preservada.
Correlação de elementos refractários nos condritos carbonáceos do tipo I e os teores na atmosfera solar.
Nébula solar
O nosso sistema solar foi formado há aproximadamente 4,55 mil milhões de anos atrás a partir de uma nuvem molecular do espaço interestelar. Esta nuvem consistia numa grande concentração de gás (aproximadamente 75% de hidrogénio e 21 a 24% de hélio com traços de outras moléculas) e grãos de poeira. Em adição ao hidrogénio (H) e ao hélio (He), o meio interestelar gasoso consiste num conjunto variado de moléculas orgânicas e inorgânicas, entre as quais podemos referir: H2O, CO, NH3, CN, CO2, OH, HCN, CH3OH, H2CO, CH3C2H, HNCO, CH3CN, etc. A poeira, que consiste em aproximadamente 1% da massa da nuvem molecular, é feita de núcleos refractários (silicatos e carbono) envolvidos por gelos e compostos orgânicos.
Fases de evolução da Nébula Solar que a química, mineralogia e textura dos meteoritos documentam (Adaptado de Meech, 1997).
Sequência teórica de cristalização dos minerais a diferentes temperaturas na Nébula Solar tal e qual é observada nos meteoritos.
Um conjunto grande de evidências teóricas (termodinâmicas) e de observação microscópica (mineralógico-texturais) atestam que os condritos se formaram na nébula solar por condensação de um gás de composição solar de acordo com a hipótese nebular que acabamos de expor. Esta hipótese considera que o Sol se formou directamente do processo de concentração de uma nuvem de gás e poeira, ao mesmo tempo que uma nuvem proto-planetária se estabeleceu à sua volta, tendo esta arrefecido da periferia para o centro. O curioso é que estes modelos termodinâmicos encontram uma correspondência enorme nas inclusões refractárias, ricas em cálcio e alumínio (CAIs) de alguns condritos carbonáceos, como o meteorito de Allende, onde é possível identificar as diferentes fases que se dispõe conforme a cristalização preconizada. Também a ordem teórica de cristalização dos minerais está de acordo com o que é observado nos condritos.
Evolução de uma nuvem de gás e poeira interestelar para o sistema solar. Notar que esta nuvem primordial não é um sistema isolado, tendo sido afectada por processos estelares variados, anteriores a um tempo em que a Terra, o Sol e os próprios planetas ainda não existiam.
A formação do sistema solar a partir de uma nuvem de gás e poeira é assim um processo contínuo mas que não pode ser analisado independentemente do meio interestelar em que ocorre. Como é de esperar, muitas fontes nucleossintéticas diferentes enriqueceram a primitiva nuvem de gás e poeira donde resultaram o Sol, os planetas, os cometas e os meteoritos. Será que estes últimos, pelo menos os mais primitivos, como os condritos carbonáceos, não possuirão evidências ou assinaturas desses momentos que antecederam o sistema solar?
Assinaturas estelares
Outro aspecto importante no estudo dos meteoritos é o facto de eles apresentarem um registo isotópico de distintas fontes astrofísicas que contaminaram a nébula solar, assim como inequívocos grãos de diamante e de carboreto de silício de origem pré-solar. Com base nos diferentes tipos de carbono e de outros tipos de isótopos marcadores, é possível dizer que três tipos de carbono são locais e as suas propriedades podem ser explicadas por processos no sistema solar inicial. Os outros são exóticos e a sua origem é revelada pela composição isotópica do carbono ou pelas anomalias de gases raros que carregam, não havendo a mínima dúvida que a sua formação antecedeu os processos que se passaram na nébula solar. Assim, diferentes populações de carbono e os seus marcadores, representados por distintas populações isotópicas de gases raros, mostram que nucleossínteses típicas de estrelas tipo "nova", "gigante vermelha" e "supernova" contaminaram a nuvem que veio a dar origem ao Sol e aos planetas.
Contaminação da nuvem de gás e poeira com isótopos marcadores de diferentes fontes nucleossintéticas, fases que ficaram preservadas nas fracções mais refractárias dos condritos.
Podemos dizer que estes diferentes tipos de carbono são marcas da actividade de distintas fontes estelares, verdadeira poeira das estrelas preservada nos meteoritos. Actividade de um tempo em que a Terra e o sistema solar ainda não existiam.
Receita para um planeta
Rápida diferenciação de alguns corpos parentais dos meteoritos onde os elementos mais densos migraram para o centro formando um núcleo (constituído por meteoritos metálicos) e um manto rico em silicatos de ferro e magnésio. A crusta posterior pode corresponder em muitos casos a acondritos diferenciados, alguns com texturas vulcânicas e evidências de metamorfismo de choque.
Como vimos anteriormente, os acondritos são um grupo de meteoritos desprovidos de côndrulos que apresentam texturas ígneas semelhantes a algumas rochas terrestres. Estes meteoritos fornecem um recurso valioso para o estudo da evolução e dos processos iniciais ocorridos na Terra, na Lua e em outros planetas siliciosos. Estes são o produto das primeiras e complexas diferenciações nos materiais primitivos da nébula solar. Os acondritos são ainda úteis para prever quais as fontes de calor que actuaram no sistema solar inicial, uma vez que as texturas acondríticas foram produzidas pela recristalização de material parcial ou totalmente fundido. Em virtude do reduzido tamanho dos corpos parentais dos acondritos, as fontes de calor dos nuclídeos radiogénicos de longa vida ( U-235, Th-232 e K-40) não foram efectivas nos primórdios do sistema solar. Até agora não foi possível traçar com toda a certeza as evidências de que isótopos radioactivos de curta vida tenham sido os únicos responsáveis. O aquecimento provocado por colisão e acreção deve igualmente ter sido uma fonte de calor muito importante.
Clasto basáltico do acondrito de Chaves ao microscópio petrográfico mostrando que partes deste meteorito arrefeceram próximo da superfície do corpo parental, muito possivelmente o asteróide Vesta. O clasto tem 3 mm de eixo maior (Foto do autor).
Vários acondritos, como o nosso howardito de Chaves, são brechas com clastos de várias partes da litosfera de Vesta, produzidas por impactos. O seu estudo dá-nos informação sobre os rególitos dos asteróides diferenciados e os processos de impacto nos pequenos planetas. Estes rególitos registam ainda informações da actividade do Sol inicial e a interacção do vento solar com a superfície do asteróide. Uma vantagem do estudo destes meteoritos brechificados tem sido mostrada pela investigação dos howarditos, dos eucritos polimíticos e dos ureilitos polimíticos, que contêm muitas componentes de várias partes dos corpos parentais e os registos dos processos de choque, aquecimento e brechificação.
Idade dos principais eventos no sistema solar inicial obtida por datações radiométricas em diferentes meteoritos (Adaptado de Allègre e de outros autores).
As idades do grupo HED indicam que o asteróide Vesta tardou somente entre 5 e 15 milhões de anos a formar-se. Por sua vez, a fusão e diferenciação do asteróide deu-se poucos milhões de anos depois da origem dos asteróides condríticos, já que as idades dos acondritos HED são quase indistinguíveis das dos 4,5 mil milhões de anos. Isto permite-nos elaborar um modelo para a estrutura do asteróide Vesta, modelo que é apoiado pelas imagens de elevada resolução obtidas na década passada pelo Telescópio Espacial Hubble.
Mapas geoquímicos de Vesta baseados nas imagens do telescópio Hubble em 1994. As cores roxas e avermelhadas interpretam-se como escoadas basálticas (de composição eucrítica) e brechas polimíticas com fragmentos de superfície e profundidade (howarditos). As cores alaranjadas, amarelas e verdes correspondem possivelmente a rochas ortopiroxeníticas (diogenitos) e dunitos (rochas compostas apenas por olivina que faltam nas nossas colecções de meteoritos), segundo uma interpretação de Zellner, 1995 e de Monteiro, 2003. (Mapas STScI).
Estrutura superficial do asteróide Vesta. A crusta está formada por escoadas basálticas (eucritos); debaixo das escoadas há um nível de acumulados piroxeníticos (diogenitos). Os impactos fragmentaram a crusta e misturaram os seus níveis, gerando um rególito que posteriores impactos se encarregaram de “soldar” formando os howarditos como o que caiu em Chaves em 3 de Maio de 1925. Esta hipótese prevê que no futuro se venham a encontrar meteoritos duníticos provenientes do manto de Vesta.
O modelo mais aceite para o grupo HED parte da diferenciação de Vesta (que na sua origem seria um asteróide condrítico) em um núcleo (?) e um manto peridotítico. Por sua vez este fundir-se-ia parcialmente, deixando um resíduo de dunito (rocha peridotítica formada apenas por olivina) e gerando líquidos basálticos em câmaras magmáticas provisórias. Nelas se formariam acumulados (os diogenitos) e delas migrariam lavas que dariam origem aos eucritos. Os processos de impactos sobre os asteróides brechificariam umas e outras originando um rególito que formaria os howarditos. O único ponto desta hipótese que não tem apoio total nos dados é o da existência de um resíduo dunítico, já que (embora os dados espectroscópicos astronómicos o apontem) nunca foram encontrados meteoritos com esta composição.
A sonda Dawn, do programa Discovery da NASA que em 2006 será lançada em direcção aos asteróides Ceres e Vesta (JPL/NASA/UCLA)
Bibliografia: