O movimento dos auges e estrelas fixas


São hoje conhecidos os movimentos de nutação e da precessão dos equinócios para explicar o deslocamento aparente das estrelas sobre a esfera celeste ao longo dos anos.





O movimento de precessão dos equinócios consiste no deslocamento do eixo de rotação da Terra sobre um cone cujo eixo se pode considerar uma direcção fixa no espaço. Este movimento tem um período de aproximadamente 26 000 anos.

No seu movimento sobre o cone, o eixo de rotação da Terra ainda oscila sobre uma circunferência, causando alguma perturbação no movimento de precessão dos equinócios. Este é o chamado movimento de nutação, com um período de 18,6 anos.

Hiparco (160 a. C), que comparou as suas observações com registos de observações feitas um século antes dele próprio, já conhecia o movimento de precessão dos equinócios, que ficou conhecido pelo nome de movimento dos auges e das estrelas fixas. Mais tarde, Ptolomeu (140 d. C.) deduziu que este movimento se devia à oitava esfera e seria de um grau em cada cem anos, e assim uma revolução completa levaria 36.000 anos a realizar-se.

Por sua vez, o astrónomo Thebit Ben Chora (836-901) terá o primeiro a propor o movimento da trepidação para explicar variações no movimento das estrelas fixas em relação aos equinócios, imaginando, em cada equinócio, um pequeno círculo, sobre cuja circunferência o equinócio verdadeiro se moveria com movimento uniforme. Tratava-se de uma versão grosseira do hoje designado movimento de nutação.

Diz o texto de Sacrobosco:

[…] e porém elas [as esferas] sem embargo deste movimento [o movimento diurno] andam em contrário. A oitava esfera [move-se] em cem anos um grau […]”

ao que Pedro Nunes acrescenta, corrigindo quer a duração de tal movimento, quer a esfera responsável por ele, indicados no texto de Sacrobosco:

“Isto segundo a opinião de Ptolomeu [...] este movimento de ocidente para oriente pela ordem dos signos pertence à nona esfera e não é 100 anos um grau, mas em 200 anos um grau e 28 minutos, de sorte que em 49 mil anos se cumpre a revolução. E o movimento próprio a oitava é o da trepidação que se faz em 7.000 anos.”


Para Pedro Nunes,

a décima esfera, que dá uma volta completa por dia, é a propulsora do movimento diurno, de oriente para ocidente

a nona esfera, que se move de ocidente para oriente e que completa uma revolução em 49.000 anos, é a responsável pelo movimento dos auges e das estrelas fixas.

O movimento de trepidação da oitava esfera consiste no movimento dos pontos equinociais verdadeiros da oitava esfera sobre dois pequenos círculos na nona esfera, de centros sobre os pontos de Áries e Libra da nona esfera.

Cada círculo seria descrito em 7.000 anos, e depois de sete movimentos (ou seja, passados 49.000 anos) seria dada uma revolução completa.


A oitava esfera, o firmamento, teria assim um movimento triplo:

  • O movimento diurno das esferas, pelo primeiro móbil: as estrelas dão uma volta completa por dia no firmamento, de oriente para ocidente.
  • o movimento dos auges e das estrelas fixas pelo segundo móbil: um movimento regular mas muito lento, este de ocidente para oriente, levando 49.000 anos a dar uma volta completa.
  • o movimento de trepidação da oitava esfera, movendo-se os pontos equinociais da oitava esfera sobre dois pequenos círculos na nona esfera, demorando 7.000 anos a percorrer um círculo.


Vejamos agora a forma discreta mas rigorosa como Camões descreve o triplo movimento da oitava esfera, nas estâncias 85, 86 e 87 do Canto X.

O movimento diurno provocado pela décima esfera é descrito na estância 85:

Enfim que o sumo Deus, que por segundas
Causas obra no Mundo, tudo manda.
E, tornando a contar-te das profundas
Obras da Mão Divina veneranda:
Debaxo deste círculo, onde as mundas
Almas divinas gozam, que não anda,
Outro corre, tão leve e tão ligeiro,
Que não se enxerga: é o Mobile primeiro.

Canto X, 85
Por baixo do Empíreo move-se, ligeiro, o primeiro móbil, a décima esfera.


Mas dentro da décima esfera, rápida, está a nona esfera, lentíssima:

Com este rapto e grande movimento
Vão todos os que dentro tem no seio;
Por obra deste, o Sol, andando a tento,
O dia e noite faz com curso alheio.

Debaxo deste leve, anda outro lento,
Tão lento e sojugado a duro freio,
Que, enquanto Febo, de luz nunca escasso,
Duzentos cursos faz, dá ele um passo.

Canto X, 86
O primeiro Mobile move-se rapidamente, dando uma volta completa num dia e provocando o movimento diurno das estrelas (fixas e errantes).

Já o segundo móbil é tão lento que enquanto o Sol faz duzentos cursos (200 anos), anda ele um passo (um grau).


Segundo Camões, enquanto o Sol faz duzentos cursos – anos – o segundo móbil dá um passo. Ou seja, um grau em duzentos anos. Como terá Camões chegado a este valor?

As suas contas são as de Pedro Nunes, embora tal não seja claro à primeira vista. Como já nos disse o próprio Pedro Nunes, a uma revolução completa em 49.000 anos, corresponde um grau e 28 minutos em 200 anos. Camões simplesmente arredondou este valor para um grau em 200 anos, mostrando que não está a seguir os valores de Ptolomeu, para quem o movimento seria de cem anos um grau.

E finalmente, na estância 87 Camões descreve o movimento próprio da oitava esfera, de um modo tão subtil que apenas Luciano Pereira da Silva, vários séculos mais tarde, viria a descodificar:

«Olha estoutro debaxo, que esmaltado
De corpos lisos anda e radiantes,
Que também nele tem curso ordenado
E nos seus axes correm cintilantes.

Bem vês como se veste e faz ornado
Co largo Cinto de ouro, que estelantes
Animais doze traz afigurados,
Apousentos de Febo limitados.
Canto X, 87
As estrelas estão fixas no firmamento. No entanto, também nele, firmamento, os corpos têm curso, ou seja, também esta esfera tem movimento próprio!

Por outro lado, os seus axes, só podem ser os eixos do movimento da oitava esfera, fixos nesta, mas móveis com ela.


Durante estas quatro semanas, procurámos revelar mais alguns dos espantosos conhecimentos astronómicos de Camões, por vezes tidos como literariamente obscuros, mas que se desvendam exemplarmente à luz da análise de Luciano Pereira da Silva.