O tempo de Einstein e o Princípio da Relatividade


Os Impérios do Tempo


A teoria da Relatividade de Einstein tem sido vista pelos estudiosos, cientistas e historiadores da ciência, como um monumento ao poder do pensamento abstracto. Mas para Peter Galison, no livro recentemente editado pela Gradiva: “Os Relógios de Einstein e os Mapas de Poincaré”, a física e Einstein floresceram mais facilmente das suas ligações com o mundo real do que do isolamento numa torre de marfim, ou como Einstein referiu uma vez, na torre de um farol. É certo que Einstein insistira que a solidão era perfeita para um cientista ocupado com problemas filosóficos e matemáticos. E alguns serão tentados em pensar que, neste sentido, o Departamento de registo de patentes de Berna, foi o seu farol, quando precisou da solidão e da tranquilidade para se concentrar nos pensamentos abstractos da óptica dos corpos em movimento.

O livro de Galison não é uma história da relatividade. No entanto, em minha opinião lança muita luz sobre o contexto em que Einstein fez a sua grande descoberta. Galison procura aqui captar o momento do encontro entre o muito abstracto e o muito concreto, quando a física, a filosofia e a tecnologia convergem em torno de uma questão: o significado da simultaneidade de acontecimentos distantes. Ou numa linguagem mais concreta: a sincronização de relógios afastados.

Efectivamente na última parte do século XIX, a coordenação de relógios e a padronização do tempo estavam na ordem do dia das nações, dos estrategos militares, dos grandes empresários, dos astrónomos e dos filósofos. E o departamento de registo de patentes, onde Einstein trabalhava, era o local adequado para a certificação de patentes sobre a sincronização de relógios. Aliás, na Europa, a Suiça era o centro de produção de equipamentos de precisão e coordenação do tempo. Como Galison constatou, havia na altura um grande número de patentes e diagramas com relógios ligados por sinais (electromagnéticos). E havia aliás muitas propostas para patentes e artigos em revistas técnicas da época sobre relógios ligados por ondas de rádio. Claro que as fábricas e os inventores não estavam preocupados com os “sistemas de referência” e com a “física do éter”. Mas a importância da distribuição da simultaneidade por meios electromagnéticos era clara para toda a gente.

Einstein é sem dúvida o mais bem conhecido cientista de sempre, e ocupa uma posição cultural particularmente sólida. No sentido em que não sofre flutuações de modas, e pelo contrário parece adequar-se aos novos propósitos de cada geração. Mas uma das características mais perenes de Einstein o ícone, é o de uma mente extraordinária vivendo num mundo à parte, o grande solitário que não pertencia a nenhum país, a nenhuma família, a nenhum círculo de amigos. Sem dúvida que Einstein é em larga medida responsável por esta imagem, pois na velhice ele referia-se com nostalgia à solidão, ao isolamento e à criatividade. Por isso, talvez o vejamos com alguém incapaz de conviver com o mundo real, e associemos essa característica com a identificação romântica do génio científico. Daí que alguns vejam o departamento de patentes, com o seu farol, o local de isolamento do génio no seu trabalho diário. Mas esta visão não contribui para a compreensão da sua ciência. Pois a ciência não é uma espécie de ascensão platónica, um processo de evaporação ou sublimação do material no abstracto. Tão pouco a ciência avança por pura condensação, nomeadamente a física não começa no reino das ideias puras e depois adquire gradualmente o peso da materialidade até dar lugar às formas corporais do objectos de todos os dias como o computador, o telemóvel ou a câmara digital. Em Einstein, como noutros cientistas, existe uma estranha justaposição do muito abstracto e do muito concreto. Em vez de um processo que parte do abstracto para o concreto ou do concreto para o abstracto, há uma contínua oscilação entre o abstracto e o concreto, há uma mistura a alta pressão de tecnologias materiais, filosofia e física em torno da coordenação de relógios e da questão da simultaneidade de acontecimentos distantes.

Falando da ciência de Einstein, importa recordar que a previsão da existência de “ondas electromagnéticas”, e a consequente identificação das ondas luminosas com um fenómeno electromagnético, é o maior sucesso da física do século XIX. Subitamente, a antiga ciência da óptica torna-se uma capítulo do electromagnetismo. Mas isto trouxe consigo um enigma: para os físicos do século XIX, uma onda tinha que ser uma onda em algum meio, tinha de haver um suporte para a propagação dessas ondas. É pelo menos o que acontece com as ondas do mar, que se propagam na água, ou as ondas sonoras que se propagam no ar ou nos meios sólidos. Mas a luz propaga-se no vácuo, isto é, num espaço aparentemente vazio. Isto levou à suposição da existência de um meio dotado de características especiais, permeando todos os espaços vazios - o éter. Porém não havia forma de revelar directa ou indirectamente a existência desse meio. O próprio Einstein acreditou algum tempo na sua existência e propôs uma experiência que o permitisse detectar. Ao reconhecer não ser possível a detecção do movimento da Terra em relação ao éter, Einstein decide eliminá-lo completamente das suas considerações. E com isso elimina o referencial “privilegiado” onde, segundo Lorentz e Poincaré, as equações de Maxwell do electromagnetismo estavam escritas, ou seja, o referencial onde a velocidade da luz (e das outras ondas electromagnéticas) tinha um valor conhecido representado por c. A eliminação desse referencial vai permitir estender o princípio da relatividade do movimento uniforme a toda a física conhecida na altura, com excepção da teoria da gravitação de Newton. Para isso, Einstein avança com a única proposta possível: a da constância da velocidade de propagação das ondas electromagnéticas em todos os referenciais de inércia, isto é, os referenciais que se deslocam com velocidade constante. Mas esta proposta, parecia entrar em conflito com o princípio da relatividade de Galileu e Newton que Einstein pretendia estender a toda a física. Como poderia a velocidade da luz ser a mesma em todos referenciais? A chave para resolver o enigma encontrou-a Einstein ao quebrar a ideia newtoniana de tempo absoluto.

Os Princípios da Teoria de Einstein

Para Newton, existia um tempo absoluto, verdadeiro, matemático que fluía constantemente da mesma forma para todos os observadores. Os relógios de todas as espécies não passavam de meros reflexos, aproximações do tempo metafísico. Quando Einstein estabelece os seus dois princípios, para construir a sua nova teoria à semelhança da Termodinâmica, surgem consequências dramáticas. Por exemplo, se um comboio passa com velocidade constante numa estação, e duas pessoas nas extremidades do comboio acendem as suas lanternas e apontam-nas para o centro do comboio de modo que um passageiro sentado na estação veja os sinais luminosos chegarem simultaneamente, podemos perguntar o que vê alguém colocado no centro comboio? Do ponto de vista da pessoa sentada na estação, a pessoa colocada no centro do comboio está a mover-se no sentido do condutor que está na frente do comboio e a afastar-se do condutor na retaguarda. De modo que para os observadores estacionados na estação não restam dúvidas que o observador no centro do comboio recebe o sinal da frente primeiro e só depois o sinal luminoso proveniente da retaguarda. Logicamente este observador assume que os dois sinais enviadas à mesma velocidade e percorrendo a mesma distância não podiam ter sido enviados simultaneamente. Logo, os dois sinais luminosos são simultâneos no referencial da estação, mas não são simultâneos no referencial do comboio. A simultaneidade de acontecimentos distantes é pois um conceito relativo.

Antes de discutir mais profundamente a relatividade do tempo vamos enunciar os princípios de Einstein na sua forma original:
  1. Princípio da relatividade: todas as leis da física tomam a mesma forma em todos os referenciais inerciais; em particular as leis da electricidade, magnetismo e óptica, além das da mecânica.
  2. Postulado da luz: a luz propaga-se através do espaço vazio com uma velocidade definida c que é independente do estado do movimento do corpo emissor.


O primeiro princípio poderá ser enunciado do modo mais enfático que se segue: nenhuma experiência, realizada num referencial, poderá detectar ou medir o movimento uniforme desse sistema de referência.

O postulado da luz é uma das leis da natureza que deve ser verdadeira para todos os observadores inerciais. Se a velocidade da luz não fosse a mesma em todos os referenciais, então seria possível detectar o movimento de um referencial medindo a velocidade da luz nesse referencial.

Uma consequência directa dos dois princípios é que dois observadores inerciais em movimento relativo discordam se dois acontecimentos que tenham ocorrido em lugares diferentes são simultâneos ou não. Esta relatividade da simultaneidade está também presente nas medidas dos tempos dos relógios e dos comprimentos das barras em movimento. Sem estes dois fenómenos, que podem aliás ser vistos como as duas faces da mesma moeda, entraríamos naturalmente em conflito com o princípio da relatividade.

Em 1913, Einstein publicou uma nova versão da relatividade do tempo, com base numa experiência de pensamento particularmente simples. Imaginemos que dois espelhos paralelos constituem um relógio em que cada clique é definido pela travessia de um sinal luminoso de um espelho para o outro. Consideremos dois sistemas destes (“relógios”) com uma velocidade relativa v entre si. Um observador em repouso em relação um destes relógios (referencial S) verá o outro (referencial S’) a afastar-se para a direita, no exemplo da figura, de tal modo que ele vê a luz descrever uma trajectória oblíqua. Por conseguinte, medido pelo o seu relógio, o clique do relógio em movimento é mais longo do que o seu.





Mas para um observador em repouso em relação ao relógio da direita, a luz continua a descrever uma trajectória vertical e, sendo a distância entre os dois espelhos igual nos dois relógios, ele mede-a da mesma maneira: d=ct’. Note que na figura t’ é o tempo (de ida) medido pelo observador em repouso em relação ao relógio que se afasta para a direita com velocidade v. Normalmente mede-se o tempo de ida e de volta, i.e., 2t’, mas a distância entre os espelhos é ct’. Ao tempo t’ entre dois acontecimentos corresponde o tempo t, medido pelo observador em repouso em relação ao relógio da esquerda. É fácil verificar, usando o teorema de Pitágoras, que t’<t, sendo t’ um intervalo entre 2 acontecimentos que ocorrem no mesmo ponto do espaço de S’ e t o intervalo de tempo entre os mesmos dois acontecimentos que, em S, ocorrem em pontos do espaço diferentes. Este é o fenómeno da dilatação do tempo: o observador de S vê o tempo dilatado em relação ao tempo (próprio) medido em S’.





Não se trata de uma ilusão mas de um efeito físico real. Os dois observadores medem tempos diferentes para os mesmos acontecimentos e para os intervalos entre dois acontecimentos.


Em 1911, Einstein mostrou que o mais interessante seria considerar um relógio vivo, um organismo, lançado numa viagem de ida e volta a uma velocidade próxima da velocidade da luz. No regresso o organismo quase não teria envelhecido enquanto os que ficavam na Terra teriam envelhecido ao longo de gerações. De forma ainda mais gritante Paul Langevin imaginou posteriormente uma situação com dois gémeos: um ficava na Terra enquanto o outro fazia uma viagem de ida e volta durante, por exemplo, 10 anos do seu tempo (próprio), isto é, o tempo medido no referencial do viajante. Quando volta à Terra verifica que o seu gémeo está quase 58 anos mais velho se a velocidade relativa durante toda a viagem tiver sido v=0,985 c, quase 99% da velocidade da luz do vácuo. É interessante notar que de acordo com o gémeo que ficou na Terra, o gémeo viajante afastou-se até uma distância de 4,925 anos-luz (quase cinco anos-luz) e depois regressou. Mas de acordo com o gémeo viajante, o espaço percorrido na ida foi só 0,8498 anos-luz, o que corresponde a uma contracção das distâncias na direcção do movimento. Percebemos que os dois efeitos: dilatação do tempo e contracção de comprimentos andam sempre associados, como não podia deixar de ser para que a velocidade da luz se mantivesse invariante. Finalmente, notemos que sendo o movimento relativo e os referenciais inerciais equivalentes, e sendo dados dois referenciais inerciais, cada um deles com uma barra de um metro dispostas ao longo da direcção da velocidade relativa entre os referenciais, e admitindo v=0,6 c, então ambas as barras são observadas com um comprimento de 80 centímetros. Claro que no referencial onde estão paradas, os comprimentos das barras continuam a ser um metro. Ao tentarmos perceber porque razão o comprimento de uma barra é diferente nos dois referenciais, deparamos novamente com a relatividade do tempo. E porquê? Porque para medir o comprimento de uma barra em movimento somos obrigados a observar as suas extremidades simultaneamente nesse referencial. Ora esses dois acontecimentos não serão simultâneos em qualquer outro referencial. De modo que a observação de uma dada barra a partir de vários referenciais obriga-nos a considerar vários pares de acontecimentos diferentes. Um mesmo par de acontecimentos só poderá ser simultâneo num dado referencial. Em última análise, todas estas questões cinemáticas se reduzem à discussão da relatividade de acontecimentos distantes.

Como último ponto desta discussão salientemos que a Teoria da Relatividade Restrita, como veio a ser chamada, não afirma que tudo é relativo, como algumas vezes se ouve comentar. Einstein distingue o que é relativo do que é absoluto. A velocidade da luz, por exemplo, é invariante, é a mesma para todos observadores inerciais. E há vários outros invariantes nesta teoria. Por isso, a designação de Teoria da Relatividade é talvez infeliz. Einstein, de início, referia-se à Teoria do Princípio da Relatividade. E o matemático Felix Klein sugeriu o nome de Teoria dos Invariantes. Mas vários autores utilizaram a designação “Teoria da Relatividade” e Einstein, especialmente a partir de 1915 depois de construir a sua teoria da gravitação, passou a designar a teoria construída em 1905 por Teoria da Relatividade Restrita, para marcar a diferença com a sua Teoria Geral da Relatividade.