Marte com uma vista preferencial do Valles Marineris e os três vulcões de Tharsis. Crédito: USGS/NASA
Tanto quanto sabemos, a Terra é um planeta ímpar, não apenas no sistema solar, mas muito certamente na Galáxia e no universo. Condições muito especiais - a distância adequada ao Sol e uma diferenciação geológica peculiar - permitiram que o nosso Mundo adquirisse os requisitos necessários à origem e desenvolvimento de vida, entre as quais podemos destacar, entre muitas outros, a presença de água no estado líquido e uma estabilidade climática que, com ligeiras flutuações, tem sido factor determinante para a permanência e aparecimento de formas diversificadas de vida, como o documenta o registo fóssil. De simples células sem núcleo, a história da Terra documenta-nos o aparecimento de formas de vida mais complexas nos oceanos, o aparecimento de seres multicelulares e uma evolução, com interrupções, recuos e avanços, que levou a formas mais sofisticadas como os invertebrados, as plantas, os peixes, os anfíbios, os répteis, as aves e os mamíferos, no topo do qual colocamos a nossa espécie, uma espécie recente que se interroga sobre o significado da sua presença, sobre o seu futuro e, explora e modifica o meio em que surgiu.

Tradicionalmente, e de acordo com aquilo que são os nossos conhecimentos sobre as formas e limites que se impõe à vida, esta exige um planeta que, além de suficientemente pesado, para reter uma atmosfera, tenha a órbita a uma distância do Sol que lhe garanta temperaturas razoáveis, aquilo que se designa por "ecosfera planetária", uma zona do sistema solar que se estende um pouco para além da órbita de Vénus, abrange obviamente a Terra e engloba a órbita de Marte. No nosso sistema solar, Mercúrio está demasiado próximo do Sol e é muito quente para nele existirem a matéria e as condições indispensáveis aos organismos vivos. Plutão é excessivamente frio, e as reacções que levam à formação de compostos orgânicos não devem produzir-se a temperaturas muito baixas. Um planeta precisa de ter ainda o tamanho conveniente para aguentar uma atmosfera. A força gravítica é indispensável para evitar a fuga dos gases mais leves, necessários à realização dos processos biológicos e à retenção da água essencial à vida. A Lua, por exemplo, é demasiado pequena para reter uma atmosfera. Por outro lado, um planeta como Marte, ou Vénus, é suficientemente grande, embora este último, pelo "efeito de estufa" que apresenta, impossibilite a existência de algo vivo sobre a sua superfície. Todas estas restrições - distância ao Sol, dimensão do corpo planetário e composição química - reduziram o número de possíveis locais com vida, além da Terra.

No nosso sistema solar, Marte surge-nos como um planeta promissor. Sem nos alongarmos com todo o historial da descrição de canais e de antigas civilizações em Marte que remontam ao astrónomo Percival Lowell (1855-1916) e ao fascínio que a ficção e a humanidade sempre depositaram no Planeta Vermelho, reportemo-nos sumariamente aos resultados das diferentes missões a Marte e às observações que claramente sugerem que o planeta teve já condições diferentes das actuais e que poderão ter permitido a origem e o desenvolvimento de formas primitivas de vida. Com efeito, a superfície do planeta mostra-nos que Marte possuiu, numa fase inicial, um complexo sistema hidrológico, com possíveis grandes oceanos espalhados sobre a superfície. É também provável que a sua atmosfera tenha sido diferente e a temperatura muito certamente favorável às sínteses pré-bióticas.

Apesar de negativos, os resultados das três experiências biológicas do programa Viking, que em 1976 levou ao pouso de duas sondas na superfície marciana, fica sempre a dúvida se não se procurou no local errado. A análise química do solo, dos dois locais onde as Viking pousaram, também não mostrou sinais de compostos orgânicos, algo que se pode explicar pela ausência de uma camada de ozono, o que leva, na actualidade, a uma incidência de elevada radiação ultravioleta sobre a superfície, criando uma química destrutiva para eventuais compostos orgânicos.

Marte possui água no estado sólido. Os estudiosos pensam que ela se poderá encontrar um pouco abaixo da superfície, em regime de "permafrost". Os resultados das últimas sondas, em particular da Mars Global Surveyor e da Mars Odyssey, são bastante animadores e permitem condicionar a futura exploração de Marte por missões que arrancam já proximamente, como a sonda europeia Mars Express com o Beagle 2 um sofisticado "kit" laboratorial que, se tudo correr bem, pousará no Natal deste ano em Marte e iniciará um complexo estudo da procura de assinaturas de uma vida passada ou actual sobre o planeta. Outras missões se seguirão.

O quarto planeta do sistema solar, mostra-se, depois da Terra, como o local mais promissor a encontrar traços de vida, apresentando-se ainda como o mais adequado a uma exploração e ocupação humana no futuro.

Uma grande incógnita que paira sobre Marte é porque razão as suas condições são hoje bem diferentes das de um passado longínquo. Para muitos astrónomos, a ausência de um verdadeira lua, é talvez o factor responsável. Sabemos que na Terra, a Lua é importante na estabilização dinâmica do eixo de rotação terrestre, permitindo que a sua inclinação não flutue acentuadamente e, consequentemente, que o clima apresente uma certa estabilidade. Marte possui dois pequenos calhaus - Fobos e Deimos - dois velhos asteróides certamente capturados à cintura daqueles corpos. Não apresentam nenhum efeito sobre a estabilidade do eixo do planeta e por isso o clima em Marte é caótico variando entre períodos em que a água nos três estados é possível e outros em que o planeta mais parece um deserto ventoso. Tudo isso não obsta a que em formações sedimentares, perto dos pólos ou em antigos pequenos lagos alguns extremófilos possam ter sobrevivido ou tenham deixado o seu registo fóssil.

Visão artística da descida da sonda Huygens na atmosfera de Titã. Crédito: NASA/ESA
Titã é um caso paradigmático no sistema solar. Um dos maiores satélites de Saturno, Titã é a única lua do sistema solar a possuir um densa atmosfera, um facto confirmado já em 1944 por Gerard Kuiper (1905-1973). Muita informação sobre esta lua foi obtida pelas sondas Voyager que em 1980 e 1982 passaram pelas proximidades deste mundo, revelando alguns dos seus segredos. A sua densa atmosfera é essencialmente composta por azoto, algum metano e hidrogénio que retêm algum do calor do Sol dando origem a um pequeno "efeito de estufa". Estes gases reagem numa química orgânica à qual a estabilidade climática de Titã está ligada. Experiências laboratoriais mostram que o metano é atingido fotoquimicamente produzindo etano, acetileno, etileno e, quando combinado com o hidrogénio, ácido cianídrico, uma molécula importante na elaboração de aminoácidos. A atmosfera do satélite é assim vista como uma espécie de Terra primitiva onde as primeiras síntese pré-bióticas tiveram lugar. Observações recentes no infravermelho, efectuadas pelo Telescópio Espacial Hubble e pelos telescópios Keck mostram regiões escuras na superfície do satélite, com dimensões de 250 Km, estruturas que poderão corresponder a oceanos e lagos líquidos de etano que devem cobrir parte do satélite. Pensa-se também que lua é sujeita a chuvas de metano líquido, um cenário que poderá às sínteses bióticas. De acordo com alguns investigadores, as zonas mais claras de Titã, evidenciadas pelo Hubble e Keck podem corresponder a planaltos de gelo de água, envolvidos pelas manchas escuras que corresponderiam a superfícies sólidas e líquidas de moléculas orgânicas. É todo este fabuloso mundo que a sonda Huygens, a bordo da missão Cassini, irá tentar estudar a partir de Novembro de 2004, quando atravessar a atmosfera de Titã e pousar na sua superfície. Esperam-se importantes revelações para compreender toda a química que antecede a origem da vida.

Superfície de Europa com a intrincada rede de fracturas e dinâmica crustal , processo ligados à actividade do oceano interior do satélite. Crédito: NASA/JPL
Europa, um dos mais pequenos satélites dos quatro grandes que orbitam Júpiter, tornou-se subitamente um dos mais promissores mundos para a astrobiologia, quando em 1979, o encontro com a sonda Voyager 2 confirmou aquilo que há muito se especulava: o satélite possuía um oceano de água interior, como consequência do efeito de maré provocado pelo gigante Júpiter. Não apenas a presença de água líquida mas a possibilidade da existência de fontes hidrotermais interiores, resultantes da energia que aí se acumula, são factores que permitem o desenvolvimento de comunidades vivas independentes da luz solar, algo semelhante ao que se passa nas chaminés vulcânicas dos fundos oceânicos onde arqueobactérias realizam quimiossínteses que estão na base de gigantescos e atípicos ecossitemas.

Quem sabe se o mesmo não se passará em Europa e noutros satélites de Júpiter (Calisto é também um caso apontado) ? O estudo efectuado pela sonda Galileo veio fornecer muitos mais dados sobre estes fascinantes satélites e colocar a questão da necessidade de uma exploração dos oceanos interiores de Europa. Embora ainda nada esteja decidido, algumas missões começam já a ser desenhadas e a construção de "criorobôs", submersíveis automáticos que furem a camada de gelo e penetrem nos oceanos interiores de Europa está já nos planos de alguns programas astrobiológicos da NASA. O aproveitamento de algumas fracturas visíveis na superfície de Europa que darão acesso mais facilitado a esse oceano de incógnitas será uma via a explorar, embora difíceis problemas tecnológicos se coloquem a um futura exploração de Europa.

A química orgânica do sistema solar não se limita aos mundos que acabamos de falar. Dissemos já no capítulo anterior que os núcleos cometários e alguns meteoritos primitivos, como os condritos carbonáceos, são repositórios de matéria orgânica que teve origem na própria nébula. Para além de certamente terem contribuído com esse material para as superfícies planetárias, o estudo destes dois tipos de corpos ainda tem muito para nos ajudar a compreender os passos intermédios entre a matéria inorgânica e a vida.

Hipotéticas formas fossilizadas no meteorito ALH 84001. Crédito: NASA
Um caso mediático e que não gostaríamos de deixar de opinar é relativo à proclamada descoberta de fósseis marcianos no meteorito ALH 84001. Embora não restem dúvidas da proveniência do meteorito de Marte, como consequência de um violento impacto sobre a superfície, o mesmo não se pode dizer das alegadas estruturas biológicas fossilizadas presentes no mesmo. Outras sugestões parecem explicar muitas das observações.

O estudo geológico do ALH 84001 revela a sua história. Trata-se de uma rocha ígnea que foi formada a partir de um magma na base de um câmara magmática de um antigo vulcão marciano há cerca de 4,5 mil milhões de anos. 500 milhões de anos depois foi deformada por um violento choque, provavelmente o resultado de um impacto de um asteróide ou grande meteorito, ficando exposta aos agentes superficiais. Depois, há 3,6 mil milhões, um líquido circundante levou à deposição de glóbulos arredondados de um mineral carbonatado nas fissuras da rocha ígnea. Há cerca de 15 milhões de anos, o ALH 84001 foi expelido da superfície de Marte por um violento impacto tangencial que fez com que a rocha escapasse do campo gravítico do planeta, andasse à deriva pelo sistema solar e viesse a colidir na Antártida, há 13 mil anos, sendo encontrada em 1984. Doze anos depois, o seu estudo por David McKay e outros investigadores do Johnson Space Center da NASA levantou uma das grandes controvérsias planetárias dos últimos tempos. McKay e a sua equipa dizem ter descoberto nas formações carbonatadas do meteorito umas estruturas segmentadas e alinhadas que lembram bactérias fossilizadas, embora muito mais pequenas que qualquer estrutura viva da Terra, matéria orgânica do tipo de hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (PAHs) e cristais de magnetite, por vezes o produto de actividade biológica. Outras equipas, principalmente o grupo de Harry McSween, da Universidade do Tennessee, talvez os maiores especialistas em meteoritos marcianos - os SNC, como são conhecidos - demonstraram que as estruturas em forma de anel são inorgânicas, bem como a magnetite, e os PAHs são contaminação terrestre, embora compostos deste tipo sejam comuns em muitos outros meteoritos e mesmo nas nuvens interestelares.

Apesar de não encerrada, a polémica em torno do ALH 84001 aponta para que as estruturas nada tenham que ver com processos biológicos. De qualquer forma este debate lançou a astrobiologia e a procura de vida em Marte para as primeiras páginas dos jornais e, consequentemente, para um série de financiamentos sobre a vida para além da Terra. Um assunto que continuaremos a analisar no próximo capítulo, dando ênfase às últimas e polémicas questões da astrobiologia.