O peculiar movimento orbital de Mercúrio é finalmente explicado

2004-06-28

Em cima: ilustração da ressonância spin-órbita 3/2. Ao completar a primeira órbita (de 1 a 5, a verde), o planeta rodou sobre si mesmo uma vez e meia (ilustrado pelo ponto vermelho). Em duas voltas, o planeta rodou sobre si mesmo, ao todo, exactamente 3 vezes. No meio: densidade de probabilidade da excentricidade da órbita de Mercúrio para diferentes soluções orbitais, calculadas para 4 mil milhões de anos. Para a solução BVW50, calculada na década de 60, a excentricidade de Mercúrio é sempre inferior ao valor crítico de 28,5%. Para a solução mais rigorosa e moderna, LA04, a excentricidade pode superar este valor, aumentando assim o número de capturas na ressonância spin-órbita 3/2. Em baixo: possibilidades de captura na ressonância spin-órbita 3/2 para diferentes modelos. O traço negro traduz a evolução, em função do tempo, do quociente entre o período orbital e o período de rotação (1,5 corresponde à ressonância 3/2). A tracejado é dado o valor limite da velocidade de rotação devido ao efeito gravitacional - este valor está directamente ligado ao valor da excentricidade da órbita. Repare-se que no primeiro caso, com a solução antiga BVW50, o valor limite da rotação é sempre inferior ao valor da ressonância 3/2, pois a excentricidade de Mercúrio não chega a 28,5%. O segundo caso é calculado utilizando um modelo actual e verifica-se que embora o planeta escape aos primeiros encontros com a ressonância, posteriormente (aliás, bastante tempo mais tarde), após um aumento da excentricidade acima do valor crítico de 28,5%, a travessia da ressonância volta a ocorrer dando origem a novas possibilidades de captura. Crédito: J. Laskar/CNRS.
Em 1889, Giovanni Schiaparelli previu que Mercúrio
Mercúrio
Mercúrio é o planeta mais próximo do Sol. É o mais pequeno dos planetas rochosos, com um diâmetro cerca de 40% menor do que o da Terra.
se encontra em rotação síncrona à volta do Sol
Sol
O Sol é a estrela nossa vizinha, que se encontra no centro do Sistema Solar. Trata-se de uma estrela anã adulta (dita da sequência principal) de classe espectral G. A temperatura na sua superfície é aproximadamente 5800 graus centígrados e o seu raio atinge os 700 mil quilómetros.
. A rotação é síncrona quando o tempo de rotação de um corpo sobre si mesmo é igual ao período orbital
período orbital
O tempo necessário para que um corpo descreva uma órbita completa e fechada em torno de outro corpo.
à volta de outro corpo. É o caso da Lua
Lua
A Lua é o único satélite natural da Terra.
em relação à Terra, pois demora 27,3 dias a rodar sobre si mesma e a completar uma volta em torno da Terra - essa é a razão pela qual a Lua nos apresenta sempre a mesma face. As grandes Luas dos outros planetas
planeta
Um planeta é um objecto que se forma no disco que circunda uma estrela em formação e cuja massa é superior à de Plutão (1/500 da massa da Terra) e inferior a 10 vezes a massa de Júpiter. Ao contrário das estrelas, os planetas não produzem luz, apenas reflectem a luz da estrela que orbitam.
do Sistema Solar
Sistema Solar
O Sistema Solar é constituído pelo Sol e por todos os objectos que lhe estão gravitacionalmente ligados: planetas e suas luas, asteróides, cometas, material interplanetário.
também têm uma rotação síncrona com o seu planeta - por exemplo, Io, Calisto e Europa com Júpiter
Júpiter
Júpiter é o quinto planeta mais próximo do Sol. Com um diâmetro cerca de 11 vezes maior do que a Terra e uma massa mais de 300 vezes superior, é o maior planeta do Sistema Solar e o primeiro dos planetas gigantes gasosos.
.

O movimento de Mercúrio em torno do Sol só foi bem determinado em 1965, através de medições realizadas com o radiotelescópio de Arecibo, por G. Pettengill e R. Dyce (Universidade de Cornell, EUA). Surpreendentemente, verificou-se que Mercúrio está em ressonância spin-órbita 3/2, ou seja, Mercúrio efectua exactamente três voltas completas em torno do seu eixo por cada duas voltas completas na sua órbita
órbita
A órbita de um corpo em movimento é a trajectória que o corpo percorre no espaço.
em torno do Sol. O facto de ser exactamente três para dois revela que Mercúrio chegou a um ponto de equilíbrio. Embora a estabilidade deste movimento invulgar tenha sido explicada pouco tempo depois, ficou por demonstrar a razão pela qual a rotação de Mercúrio evoluiu para esta configuração peculiar. Num artigo publicado na revista Nature, o investigador português Alexandre Correia (Universidade de Aveiro) e o seu colaborador francês Jacques Laskar (Observatório de Paris) provam que, quando se leva em conta o movimento caótico da órbita de Mercúrio, a sua captura na ressonância spin-órbita 3/2 é a rotação final mais provável.

A maioria dos planetas do Sistema Solar, quando se formaram, tinham uma rotação muito rápida, inferior a 24 horas. O efeito gravitacional exercido pelo Sol foi diminuindo a velocidade de rotação, de forma que os planetas foram atravessando várias ressonâncias spin-órbita, podendo ser capturados numa delas.

A probabilidade de captura do planeta numa dada ressonância spin-órbita depende da excentricidade
excentricidade
A excentricidade de uma elipse é a razão entre a distância de um foco ao centro da elipse (c) e o seu semi-eixo maior (a): e=c/a. A circunferência tem excentricidade nula, e=0.
da sua órbita. O valor actual da excentricidade da órbita de Mercúrio é de 20,6%, o que resulta numa probabilidade de captura de apenas 7% (calculada por Goldreich e Peale em 1966, logo após a descoberta da rotação do planeta). No entanto, devido às perturbações dos outros planetas, a órbita de Mercúrio varia com o tempo e na altura em que este atravessou a ressonância 3/2, a sua excentricidade podia ser maior, ou menor. Nos anos 60, as simulações da variação da órbita indicavam que esta probabilidade era de apenas 4,0%; em meados dos anos 70, uma nova solução orbital, mais completa, indicava que a probabilidade de captura não excedia os 5,5%.

A velocidade de rotação dos planetas diminui até um valor limite, que depende da excentricidade da órbita do planeta. Para excentricidades pequenas (órbitas quase circulares), este limite está próximo do período orbital, isto é, da rotação síncrona. Para excentricidades grandes, o período de rotação limite é superior ao período orbital, aproximando-se da ressonância 3/2 quando a excentricidade é de 28,5%. Nas soluções orbitais mais antigas, a excentricidade da órbita de Mercúrio é sempre inferior a este valor, pelo que a ressonância 3/2 é apenas atravessada uma vez e com muito poucas hipóteses de captura, dificultando as explicações para a rotação de Mercúrio.

Há mais de uma década, Laskar demonstrou que o Sistema Solar não é periódico como um relógio, tal como se pensava, mas é caótico, e por isso imprevisível a partir de um dado momento. Deste modo, as órbitas dos planetas sofrem modificações muito mais importantes do que aquelas que se julgava anteriormente. A equipa de investigadores deste trabalho realizou simulações numéricas intensivas das diferentes possibilidades de evolução da órbita de Mercúrio, utilizando a mais moderna solução orbital, e mostraram que a excentricidade da órbita de Mercúrio pode, na realidade, ter sido superior a 28,5%, e até mesmo 40%.

A captura não tem de ocorrer necessariamente na primeira vez que o planeta atravessa a ressonância 3/2. Como a excentricidade de Mercúrio varia constantemente, o valor limite para a velocidade de rotação varia igualmente. Quando a excentricidade sobe acima do valor crítico de 28,5%, torna-se possível que Mercúrio volte a atravessar a ressonância (algo que era impossível com as soluções orbitais anteriores). Mesmo se a probabilidade de captura é reduzida a cada passagem, o facto de o planeta passar várias vezes pela ressonância faz com a probabilidade total, ao fim de mais de 4 mil milhões de anos (idade do planeta), seja consideravelmente maior.

Os investigadores demonstraram desta forma que a captura de Mercúrio na ressonância 3/2 aumenta bastante com o tempo, tornando-se mesmo na evolução mais provável para a rotação final do planeta. Com efeito, estima-se a probabilidade de o planeta terminar nesta configuração em cerca de 55,4%. Outras possibilidades seriam a sincronização (2,2%), captura na ressonância 2/1 (3,6 %), ou ausência de captura (38,8%). Ocorrem ainda capturas temporárias em ressonâncias de ordem mais elevada (5/2, ou 3/1, por exemplo), mas nenhuma subsiste muito tempo, uma vez que estas ressonâncias são destabilizadas nas alturas em que a excentricidade de Mercúrio diminui para valores reduzidos.

Fonte da notícia: http://astro.oal.ul.pt/~acorreia/press/

Pode ainda consultar o Tema do Mês “Mercúrio”, por Alexandre Correia: http://www.portaldoastronomo.pt/tema_12.php