Massa ausente encontrada em bancos de nevoeiro intergaláctico

2003-03-18

O espectrógrafo de radiação ultravioleta a bordo do FUSE (NASA) foi construído na Universidade do Colorado (EUA). A luz percorre o caminho desde o elemento dispersivo, no topo, até o detector, em baixo. Crédito: NASA/JHU/APL/Univ. Colorado.
Saber de que é formado o Universo é uma das questões fundamentais da Astronomia e Astrofísica. Actualmente, acredita-se que o Universo é constituído por cerca de 73% de energia escura, 23% de matéria escura
matéria escura
A matéria escura é matéria que não emite luz e por isso não pode ser observada directamente, mas cuja existência é inferida pela sua influência gravitacional na matéria luminosa, ou prevista por certas teorias. Por exemplo, os astrónomos acreditam que as regiões mais exteriores das galáxias, incluindo a Via Láctea, têm de possuir matéria escura devido às observações do movimento das estrelas. A Teoria Inflacionária do Universo prevê que o Universo tem uma densidade elevada, o que só pode ser verdade se existir matéria escura. Não se sabe ao certo o que constitui a matéria escura: poderão ser partículas subatómicas, buracos negros, estrelas de muito baixa luminosidade, ou mesmo uma combinação de vários destes ou outros objectos.
e apenas 4% de matéria bariónica
matéria bariónica
Matéria constituída por bariões - essencialmente, protões e neutrões. É a matéria "normal" que conhecemos, em oposição à matéria formada por eventuais partículas desconhecidas. Por exemplo, a Terra e o Sol são feitos de matéria bariónica.
- chamada matéria normal: protões
protão
Partícula que, juntamente com o neutrão, constitui os núcleos atómicos. Todos os átomos têm pelo menos um protão e é o número de protões que determina o elemento químico do átomo. Os protões têm carga eléctrica positiva. Os protões são formados por três quarks (dois u e um d), são bariões (e hadrões), e o seu spin é um número semi-inteiro.
, neutrões
neutrão
Partícula que, juntamente com o protão, constitui os núcleos atómicos. Exceptuando o hidrogénio, todos os átomos têm neutrões, e é o número de neutrões que determina o isótopo de determinado elemento químico. Os neutrões têm carga eléctrica neutra. Os neutrões são formados por três quarks (dois "d" e um "u"), são bariões (e hadrões) e o seu spin é um número semi-inteiro. Os neutrões livres declinam por decaímento beta, com um tempo de semi-vida de 10,8 minutos, originando um protão, um electrão e um neutrino. No núcleo atómico, o neutrão é tão estável quanto o protão.
, electrões
electrão
Partícula elementar pertencente à família dos leptões - partículas sujeitas à interacção nuclear fraca, electromagnética e gravitacional. Os electrões possuem carga eléctrica negativa e encontram-se nos átomos de todos os elementos químicos, orbitando à volta do núcleo atómico, que possui carga eléctrica positiva.
. No entanto, ainda não se sabe onde reside toda a matéria bariónica. É relativamente fácil contabilizar a quantidade de matéria normal que se encontra sob a forma de estrelas
estrela
Uma estrela é um objecto celeste gasoso que gera energia no seu núcleo através de reacções de fusão nuclear. Para que tal possa suceder, é necessário que o objecto possua uma massa superior a 8% da massa do Sol. Existem vários tipos de estrelas, de acordo com as suas temperaturas efectivas, cores, idades e composição química.
luminosas, ou sob a forma de nuvens moleculares
nuvem molecular
As nuvens moleculares são nebulosas constituídas predominantemente por hidrogénio molecular.
escuras que bloqueiam a luz estelar. Mas esta contribuição totaliza apenas uma fracção da matéria normal que se sabe existir. Este dilema é chamado o problema da massa
massa
A massa é uma medida da quantidade de matéria de um dado corpo.
desaparecida.

Num recente trabalho publicado na edição de 12 de Fevereiro de 2003 da revista Nature, o astrónomo F. Nicastro (Centro Harvard-Smithsonian para a Astrofísica, EUA) e os seus colaboradores descrevem a descoberta de um grande reservatório de matéria bariónica no nosso Grupo Local de galáxias
Grupo Local de galáxias
O Grupo Local de galáxias é o enxame de galáxias a que a Via Láctea pertence. É um enxame pequeno, constituído por duas galáxias espirais grandes - Andrómeda e a Via Láctea - e por mais de quarenta pequenas galáxias, muitas só descobertas recentemente.
. Estes bariões
barião
O barião é uma partícula constituída por três quarks. Os protões e os neutrões são bariões. Tal como os mesões, os bariões são um subconjunto dos hadrões, ou seja, das partículas sujeitas à interacção nuclear forte.
formam um nevoeiro quente que envolve a Via Láctea
Via Láctea
A Via Láctea é a galáxia de que faz parte o nosso Sistema Solar. Trata-se de uma galáxia espiral gigante, com um diâmetro de cerca de 160 mil anos-luz e uma massa da ordem de 100 mil milhões de vezes a massa do Sol.
e os seus vizinhos e poderá conter até dois terços da matéria normal na vizinhança da Via Láctea.

Embora brilhe nos raios-X
raios-X
A radiação X é a radiação electromagnética cujo comprimento de onda está compreendido entre o ultravioleta e os raios gama, ou seja, pertence ao intervalo de aproximadamente 0,1 Å a 100 Å. Descobertos em 1895, os raios-X tambêm são, por vezes, chamados de raios de Röntgen em homenagem ao seu descobridor. A radiação X é altamente penetrante, o que a torna muito útil, por exemplo, para obter radiografias.
devido a encontrar-se a uma temperatura entre 100 000 e 10 milhões de graus Kelvin, este nevoeiro não pode ser visto directamente por ser demasiado difuso. A forma de o descobrir é através da sombra que ele causa. O nevoeiro intergaláctico absorve a luz das fontes distantes, como os quasares
quasar
Os quasares são objectos extragalácticos extremamente brilhantes e compactos. Hoje acredita-se que são o centro de galáxias muito energéticas ainda num estado inicial da sua evolução (são, pois, núcleos galácticos activos - NGAs) e a sua energia provém de um buraco negro de massa muito elevada. Os seus desvios para o vermelho indicam que se encontram a distâncias cosmológicas. O seu nome, quasar, vem do inglês quasi-stellar object, ou seja, objecto quase estelar, devido à semelhança da sua imagem em placas fotográficas com a imagem de uma estrela.
e os núcleos de galáxias activas
galáxia activa
Uma galáxia diz-se activa quando emite quantidades excepcionalmente elevadas de energia. São exemplo de galáxias activas as galáxias Seyfert, as radiogaláxias, os quasares e as galáxias com surtos de formação de estrelas (starburst galaxies).
, nos comprimentos de onda
comprimento de onda
Designa-se por comprimento de onda a distância entre dois pontos sucessivos de amplitude máxima (ou mínima) de uma onda.
do ultravioleta
ultravioleta
O ultravioleta á a banda do espectro electromagnético que cobre a gama de comprimentos de onda entre os 91,2 e os 350 nanómetros. Esta radiação é largamente bloqueada pela atmosfera terrestre.
e dos raios-X. Por isso, estes investigadores analisaram dados da sonda de espectroscopia no ultravioleta longínquo FUSE (acrónimo do inglês Far Ultraviolet Spectroscopic Explorer) para identificarem cerca de 50 nuvens, ou bancos de nevoeiro, que envolvem a nossa Galáxia em todas as direcções.

Em cada nuvem individual, os átomos
átomo
O átomo é a menor partícula de um dado elemento que tem as propriedades químicas que caracterizam esse mesmo elemento. Os átomos são formados por electrões à volta de um núcleo constituído por protões e neutrões.
absorvem a luz em comprimentos de onda específicos, criando riscas escuras (de absorção
absorção de radiação
A absorção de radiação é um decréscimo da intensidade da radiação devido à energia dispendida na excitação ou ionização de átomos e moléculas do meio que atravessa.
) nos espectros das fontes de luz que se encontram por detrás da nuvem. Devido ao efeito de Doppler, o movimento da nuvem altera o valor do comprimento de onda da risca espectral
risca espectral
Uma risca espectral pode ser uma risca brilhante - risca de emissão - ou uma risca escura - risca de absorção - num espectro de luz. A emissão de radiação (no caso da risca de emissão), ou a absorção de radiação (no caso da risca de absorção), num determinado comprimento de onda, é causada por uma transição atómica ou molecular. O estudo das riscas espectrais permite caracterizar a composição química e as condições físicas do meio que as produz.
. Determinando estes desvios de comprimento de onda, pode-se derivar a velocidade radial das nuvens (ou seja, a componente da velocidade segundo a direcção que nos une à nuvem), donde se pode inferir a localização e a origem das nuvens. O presente estudo mostrou que é quase certo que as nuvens quentes fazem parte do Grupo Local de galáxias
galáxia
Um vasto conjunto de estrelas, nebulosas, gás e poeira interestelar gravitacionalmente ligados. As galáxias classificam-se em três categorias principais: espirais, elípticas e irregulares.
a que pertence a Via Láctea, Andrómeda e mais umas 30 galáxias menores.

A quantidade de material detectado utilizando o FUSE e o observatório de raios-X Chandra
Chandra X-ray Observatory
O observatório de raios-X Chandra, lançado em 1999, faz parte do projecto dos Grandes Observatórios Espaciais da NASA. O seu nome homenageia Subrahmanyan Chandrasekhar, Prémio Nobel da Física em 1983. O Chandra detecta fontes de raios-X a milhares de milhões de anos-luz de nós. Observar em raios-X é a única forma de observar matéria muito quente, a milhões de graus Célsius. O Chandra detecta raios-X de regiões de alta energia, como por exemplo remanescentes de supernovas.
(NASA
National Aeronautics and Space Administration (NASA)
Entidade norte-americana, fundada em 1958, que gere e executa os programas espaciais dos Estados Unidos da América.
) levou Nicastro e os seus colegas a concluírem que este nevoeiro quente do Grupo Local contém tanta massa como um bilião de sóis! Este resultado está em excelente acordo com a quantidade de matéria necessária para segurar gravitacionalmente as galáxias dentro do Grupo Local.

Dado o facto de que este nevoeiro existe, levanta-se a questão da origem da matéria que o constitui. O mais provável é tratar-se de material que sobrou da formação das galáxias - uma relíquia dos primeiros tempos do Universo.

As actuais teorias indicam que o Universo primordial era uma mistura homogénea de gás de hidrogénio e hélio, e terão sido concentrações de matéria escura dentro desta sopa primordial que actuaram como sementes para a formação de galáxias. Ao longo de algumas centenas de milhões de anos, a força da gravidade agrupou parte da matéria bariónica para formar galáxias que contêm milhares de milhões de estrelas. No entanto, só cerca de um terço da matéria bariónica foi consumida - a restante ainda flutua entre as galáxias, invisível excepto pela sombra que provoca.

A presente descoberta vem reforçar as actuais teorias de formação das galáxias e fornecer mais dados sobre a história da nossa Galáxia. Juntamente com investigações futuras, poderá mesmo levar à descoberta da matéria escura que tanto se procura (e que ainda não foi encontrada!), pois pensa-se que os filamentos intergalácticos de matéria bariónica devem ligar as sementes de matéria escura que estão na origem das galáxias.

Fonte da notícia: http://cfa-www.harvard.edu/press/pr0306.html