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Problemas com a escala de Torino

2005-01-04

Imagens do asteróide Toutatis, um bem conhecido Near Earth Object (JPL/NASA)
Há muito que os astrónomos sabem que o espaço interplanetário, bem próximo da Terra, é cortado por imensos astros menores – conhecidos por asteróides – e que são calhaus ou restos da criação dos mundos. Muitos são provenientes da cintura que rodeia o Sol e está situada entre as órbitas de Marte e de Júpiter. Outros foram para sempre capturados para órbitas mais internas e com frequência cruzam a órbita do nosso planeta. Estes são conhecidos por Near Earth Objects (cometas ou asteróides) e merecem uma vigilância e monitorização redobrada.

Em finais da década de 70 do século passado, o geólogo Walter Alvarez e o seu pai, o físico Louis Alvarez, Prémio Nobel da Física, descobriram que há 65 milhões de anos a Terra sofreu a colisão de um enorme corpo cósmico (cometa ou asteróide, ainda não há a certeza) que foi responsável pela extinção em massa que ocorreu no final do Cretácico, precisamente há 65 milhões de anos. Calcularam que esse corpo teria de ter produzido uma cratera com pelo menos 150 km de diâmetro. Doze anos depois, seguindo-se a um trabalho de detective sem paralelo nas Geociências, os estudiosos descobriram a “marca do crime”: uma cratera com 180 km de diâmetro, situada naquilo que é hoje a península do Iucatão, no Golfo do México. Muitas outras crateras foram descobertas, algumas coincidentes com mudanças globais ou grandes extinções de fauna e de flora, outras cuja datação pontua toda a escala estratigráfica que os geólogos conhecem tão bem. Eventos como os do final do Cretácico são felizmente raros. Os cientistas sabem que ocorrem com um intervalo aproximado de 100 milhões de anos. Colisões menores, de asteróides e ou restos de cometas, que deixam as suas marcas na superfície terrestre, são todavia mais frequentes. Há 97 anos, no dia 30 de Junho de 1908, um fragmento do núcleo do cometa Encke colidiu com a Terra na região de Tunguska, na Sibéria Central. Se o evento se desse cinco horas depois teria atingido S. Petersburgo. Se a explosão tivesse tido lugar sobre Lisboa, toda a vida entre Santarém e Setúbal teria sido apagada, um evento com uma potência energética que ocorre na Terra com um intervalo de pouco mais de mil anos.

Perante este facto, a comunidade científica sentiu-se impelida a seguir estes asteróides ameaçadores que nos passam verdadeiras tangentes e não raras vezes colidem com o nosso planeta. Vários projectos de monitorização dos Near Earth Objects (NEOs) foram desencadeados e não raras vezes encontramos notícias de que “a Terra escapou por pouco a uma colisão” ou que “asteróide x tem a hipótese de y % de colidir com a Terra na data z”. Ainda recentemente fomos defrontados com uma situação destas: a de a Terra ter a hipótese de colidir com um asteróide de 400 metros – o MN4-2004 – uma notícia que foi cabalmente desmentida por responsáveis do Jet Propulsion Laboratory da NASA. O que gera estas confusões, notícias e contra-notícias nos media?



Quadro Geral da escala de Torino (ARC/NASA)


Objectivamente o problema parece residir numa escala de riscos de colisão de NEOs com a Terra e que foi criada com o objectivo de permitir uma comunicação facilitada entre os astrónomos e o público em geral sobre a eventualidade de uma colisão de corpos cósmicos com o nossos planeta. Conhecida por escala de Torino, desenvolvida em 1999 por Richard Binzel, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, esta escala pretendia ser para os planetólogos, aquilo que a escala de Richter representa para os sismólogos, mas assim não é. Primeiro porque na escala de Torino aquilo que se encontra são previsões e não o resultado objectivo da energia libertada no evento, embora uma tal correspondência possa ser feita, como se pode ver no gráfico anexo. Depois, trata-se de uma escala em que algumas variáveis introduzidas são subjectivas, portanto sujeitas a modificação com o nível de conhecimentos que se ampliam com uma observação mais demorada dos parâmetros orbitais dos NEOs.

A escala de Torino utiliza números que variam num intervalo de 0 a 10, onde 0 indica que um determinado objecto celeste tem uma hipótese quase nula de colidir com a Terra, e o valor 10 representa uma colisão certa com um impacto de um objecto capaz de gerar uma catástrofe de consequências globais, como a que aconteceu nos finais do Cretácico. A escala está ainda dividida num código de cores com o seguinte significado:

- branco – os eventos não apresentam consequências práticas pelo que o objecto celeste não necessita de uma vigilância séria. Se ocorrer a colisão com a Terra, o corpo desfaz-se totalmente na atmosfera; Corresponde à categoria 0;

- verde – os eventos merecem monitorização cuidada, reportando-se a objectos que sofrem aproximações ao nosso planeta, mas cuja colisão é pouco provável. De qualquer forma a observação prolongada do objecto deve ser mantida podendo informações mais detalhadas levar a que se mude de índice de perigosidade. Corresponde no geral à categoria 1;

- amarelo – há poucas probabilidades de uma colisão embora os objectos necessitem de uma vigilância apertada. Os valores correspondentes na escala são os números 2, 3 e 4, variando apenas em função do diâmetro do corpo e consequente efeito após a queda. Tratam-se de objectos que exigem um acompanhamento constante;

- laranja – corresponde a eventos ameaçadores, reportando-se a objectos de tamanho suficiente para produzirem efeitos regionais e globais, correspondendo aos números 5,6 e 7 da escala;

- vermelho – correspondem a colisões certas, com objectos que, de acordo com o seu tamanho, podem causar desde prejuízos locais a efeitos globais, semelhantes ao do final do Cretácico, distribuindo-se assim de 8 a 10.

Um objecto é numerado na escala de Torino em função da sua probabilidade de colisão (um factor que é melhorado com um conhecimento crescente dos elementos orbitais) e a sua energia cinética (proporcional à massa do corpo e velocidade do mesmo). Aqui surge logo um problema com a escala de Torino porque a atribuição de uma valor probabilístico é algo de subjectivo e que tem que ver com um perfeito conhecimento dos parâmetros orbitais. Daí que um objecto, com o tempo e refinamento dos dados de observação possa mudar de categoria, como aconteceu recentemente com o asteróide MN4-2004. Inicialmente considerado do nível 2, astrónomos italianos reclassificaram-no como de nível 4 no dia de Natal, ou seja: um objecto com a probabilidade superior a 1% de colidir com a Terra e de causar uma devastação regional. Análises detalhadas de elementos orbitais passados, efectuados mais tarde, fizeram com que a hipótese de um encontro imediato com a Terra fosse afastada (1).

Este facto de variação do nível na escala faz confusão entre o público em geral e na comunicação social que já várias vezes apresentou um valor que em seguida desmentiu. Se por si só isto não fosse problemático e gere desconfiança, imagine-se como tais alarmes e posteriores desmentidos caem nos políticos, aos quais muitas vezes se recorre para apoiarem projectos internacionais de monitorização de NEOs. Embora a escala de Torino seja importante, muitos consideram que ela não deve ser usada como factor de previsão até que um rigoroso conhecimento da órbita seja obtido e assim afastada ou reconsiderada a probabilidade de colisão. Estes actos de notícia e contra-notícia, nos meios académicos e nos media em geral, fazem-nos recordar a fábula do menino mentiroso que constantemente gritava “Aí vem lobo!”. Um dia o lobo veio, o menino gritou e ninguém quis acreditar…

(1) http://neo.jpl.nasa.gov/news/news148.html