O que fez Galileu? (II)



Réplica de um dos telescópios de Galileu Galilei.
As partes polémicas das Sagradas Escrituras

Vejamos seguidamente as partes da Bíblia em que os religiosos mais conservadores se baseavam para dizer que as Sagradas Escrituras impõem a imobilidade da Terra e sugerem o movimento do Sol em volta do nosso planeta. Apresentam-se duas traduções diferentes.

Salmo 104:5
“Lançou os fundamentos da terra, para que não vacile em tempo algum.”
(Cf. Trad. João Ferreira de Almeida (1628-1691)).

“Ele fundou a terra sobre os seus lugares estabelecidos; não será abalada, por tempo indefinido ou para todo o sempre”.
(Cf. Trad. New World Bible Translation Committee).


Eclesiastes 1:4 e 1:5
(1:4) “Uma geração vai, e outra geração vem; mas a terra para sempre permanece.
(1:5) “E nasce o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar de onde nasceu.”
(Cf. Trad. João Ferreira de Almeida (1628-1691).

(1:4) “Uma geração vai e outra geração vem; mas a terra permanece por tempo indefinido.
(1:5) “E também o sol raiou e o sol se põe, e vem ofegante ao seu lugar onde vai raiar”.
(Cf. Trad. New World Bible Translation Committee).


Josué 10:13
“(…) O sol pois se deteve no meio do céu, e não se apressou a pôr-se, quase um dia inteiro”
(Cf. Trad. João Ferreira de Almeida (1628-1691).

“(…) o sol ficou parado no meio dos céus e não teve pressa em pôr-se por cerca de um dia inteiro”.
(Cf. Trad. New World Bible Translation Committee).


Na leitura da Bíblia que as autoridades religiosas então faziam, as frases anteriormente referidas pareciam "garantir" a imobilidade da Terra e "certificar" o movimento do Sol em torno do nosso planeta, interpretações que Galileu Galilei contestava. A essas afirmações Galileu contrapõe dizendo que o que observa no céu, com o seu telescópio, é também obra de Deus. E que tal obra tanto pode ser vista na Bíblia (se devidamente interpretada) como na observação dos próprios fenómenos celestes. Afirma que a Bíblia não se engana e está sempre correcta, mas deve ser interpretada adequadamente, pois Deus não pode contradizer-se dando a ver nos céus (Sua obra) coisas diferentes das que se podem ler nas Sagradas Escrituras. Vejamos algumas das suas justificações a este propósito.

“As Escrituras não se enganam, mas sim os seus intérpretes e comentadores, de várias maneiras (…)” “A Bíblia ensina-nos como se vai para o céu, não como vai o céu” (citação usada por Galileu). “Não me sinto obrigado a acreditar que o mesmo Deus que nos dotou de sensibilidade, razão e intelecto pretenda que nos esqueçamos os utilizar.” “Uma referência, por exemplo, à mão de Deus não significa um apêndice de cinco dedos, mas antes a Sua presença nas vidas humanas”.


Convém referir que Galileu foi sempre um homem profundamente religioso, de fé sólida e inabalável, pelo que nunca se lhe pôs a questão da dúvida religiosa. E, convém referir que as suas duas filhas foram freiras, no Convento de São Mateus, perto de Florença, regido pela ordem franciscana das Clarissas, a que exigia uma conduta quotidiana mais dura e austera. Também teve um filho, Vincenzo Galilei.


Galileu Galilei com 60 anos, segundo o retrato feito em Florença (1624) pelo pintor Ottavio Leoni.
Início dos problemas com a Igreja Católica

Todos os problemas referidos levaram a que, em 1616, Galileu fosse chamado a Roma, por ordem do Papa Paulo V, para ser advertido de que só poderia considerar o heliocentrismo (e a teoria de Copérnico) como mera hipótese académica (uma forma de facilitar cálculos), mas nunca como um facto. Tal advertência foi-lhe dada pelo cardeal Belarmino, que também o avisou de que o livro de Copérnico fora proibido. É de notar coragem e perseverança de Galileu, pois nesses tempos desafiar a Igreja era muito perigoso: em 1600, o monge Giordano Bruno fora queimado vivo, atado a um poste, por afirmar que o Universo podia ser infinito e que haveria muitos planetas habitados, além da própria Terra. O inquisidor foi precisamente... Roberto Belarmino, mais tarde beatificado (1923) e canonizado (1930), passando a ser Santo e conhecido como São Roberto Belarmino.

A vida continua

Galileu contém-se por algum tempo, mas por fim (c.1624) começa a escrever uma das suas maiores obras: os Diálogos sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo, onde compara os sistemas geocêntrico (de Ptolomeu) e heliocêntrico (de Copérnico). O Papa desse tempo, Urbano VIII, autoriza-o a escrever esse livro desde que fale dos dois sistemas sem tomar partido pelo sistema heliocêntrico, suposto como mera hipótese. O livro é publicado em 1632, mas o Papa, anteriormente amigo e admirador do sábio italiano (quando era o cardeal Maffeo Barberini), sente-se ridicularizado numa personagem do livro, defensora do geocentrismo (os inimigos de Galileu tiveram a habilidade de convencê-lo nesse sentido). A fúria do Papa é imensa e o livro é proibido: em 1633 Galileu é chamado a Roma, acorrentado se se recusar, apesar de já velho (69 anos) e doente. Ao fim de muitos e extensos interrogatórios e depois de lhe terem mostrado os instrumentos de tortura da Inquisição (o temível Santo Ofício), é forçado a negar as suas convicções. Não é queimado vivo, devido ao apreço do Papa e à influência de muitos amigos poderosos que tinha. Em vez disso é condenado a prisão perpétua, mais tarde comutada em prisão na sua casa pessoal de Arcetri, nos arredores de Florença. Sempre vigiado pelos oficiais da Inquisição.

Galileu regressa ao trabalho

Apesar de proibido de escrever, Galileu retoma a escrita e as suas investigações. Em 1636 tem pronto um novo livro, denominado Discurso sobre Duas Novas Ciências, onde não toca no heliocentrismo mas lança os fundamentos da resistência de materiais, precursora da engenharia mecânica e os alicerces da dinâmica, uma área da Física que mais tarde servirá de inspiração ao grande Isaac Newton que (apesar de não ser pessoa dada à modéstia) afirma ter visto mais longe do que outros por ter subido aos ombros de gigantes (referindo-se a Galileu e a Kepler). Devido às proibições a que o autor estava sujeito, o original desta obra teve de ser levado secretamente de Itália para a Holanda, onde foi impresso. Entretanto, devido a infecções oculares, Galileu ficou totalmente cego em 1637. Recebeu o livro já impresso em 1638 e foi na escuridão total que tomou nas mãos a sua obra derradeira. Ainda teve tempo para idealizar a aplicação dos pêndulos aos relógios, ideia concretizada mais tarde por Huygens (em 1656). Por fim, em 8 de Janeiro de 1642, “entregou a alma ao Criador com firmeza filosófica e cristã”, como descreveu Vincenzo Viviani, o seu último discípulo e primeiro biógrafo.