Se não se mexe, está avariado


Lua nova, lua cheia
Preia-mar às duas e meia



É preciso saber quando chega a maré ou os barcos não vão a lado nenhum. Porto de Husum (RFA) durante a Baixa-mar.
Com provérbios destes, quem precisa de um almanaque? Bem, para começar, o provérbio é impreciso. Na maioria dos casos de Lua Cheia/Nova, na nossa costa continental, a preia-mar verifica-se pouco depois das 15h e pouco antes das 3 da manhã. Se bem que, há ocasiões em que a hora recai mesmo sobre a dita meia hora.

Para quem se deita, devidamente besuntado, junto ao mar para melhorar a tonalidade da pele, tais desvios da hora são de pouca ou nenhuma importância. No entanto, a pesca, a vela desportiva ou recreativa e praticamente toda a gente que "se faz ao mar", dependem bastante da hora precisa do estado das marés, visto que esta poderá fazer a diferença entre uma saída bem sucedida ou umas horas encalhado num qualquer banco de areia. Não é de admirar, portanto, que os almanaques astronómicos tenham sido e ainda sejam as publicações recorrentes mais procuradas por qualquer pessoa que, por gosto ou profissão, manobra carcaças flutuantes sobre o mar e que rumam a bom porto.

Aliás, o Astronomical Almanac, o anuário de referência para muitos profissionais, apesar do próprio título indicar o seu foro astronómico, é publicado em conjunto pelo Observatório Naval dos Estados Unidos e, traduzindo livremente a designação, pelo Departamento do Almanaque Náutico de Sua Majestade (Inglaterra), portanto, por entidades navais e não especificamente astronómicas. Esta publicação começou a sua existência em 1766 (relativo ao ano de 1767) até sob um outro título; Nautical Almanac and Astronomical Ephemeris, sendo assim claramente identificado como uma publicação para certos ambientes aquáticos e muito menos relevante para os astrónomos. Porém, não é bem assim. Na realidade, o título é antes uma questão de marketing, dirigido a uma maior massa de compradores. Ao capitão de um barco ou navio, seja qual for a dimensão, não interessavam nem interessam 90% dos elementos listados nesta obra, e mesmo a precisão dos dados ao décimo de segundo não é assim tão crucial para a orientação numa paisagem cheia de água até ao horizonte.

Por outro lado, esta mesma precisão e praticamente todos os elementos listados neste e noutros almanaques de foro astronómico têm bastante relevância para o astrónomo, especialmente aquele virado para os trabalhos relacionados com os corpos do Sistema Solar. Mencionando apenas alguns exemplos; sem estes anuários, não seria possível determinar, e assim comunicar aos demais colegas para fins de comparação, a posição planetográfica precisa de um fenómeno esporádico observado num dado planeta. Sem o assim chamado ponto subsolar, listado com precisão, não teria sido possível determinar o ângulo e a incidência da sombra nas formações lunares e, assim, calcular a profundidade ou altura dos relevos paisagísticos lunares. E claro, seria praticamente impossível prever com alguma fidelidade a ocorrência e visibilidade de uma ocultação, fossem quais fossem os objectos envolvidos. Aliás, cada elemento listado num almanaque astronómico tem a sua dedicada e leal clientela particular, sejam estes elementos a libração lunar, o ângulo de fase, o meridiano central e o seu progresso, a hora e altura de culminação etc. etc. etc.

Se não se mexe...


Modelo planetário de Schotte do fim do séc. XIX
Foi numa noite de Outono ou Inverno há muitos, muitos anos, a uma hora já bastante avançada, que estive com os meus amigos reunido na biblioteca e sala comum do nosso observatório, o único local aquecido em todo o monte. Na mesa e à nossa frente estava um pequeno, muito antigo, modelo mecânico do Sistema Solar (até Neptuno). A nossa conversa já se tinha prolongado por algumas horas, e passou gradualmente de uma tertúlia cosmológica e algo filosófica para uma amena cavaqueia em redor dos movimentos planetários, da sua aparente harmonia, da admiração pelo artesão que limou todas aquelas pequenas rodas dentadas de precisão do modelo, e do desgraçado que tinha de descer e voltar a subir o monte (a pé) para comprar mais bebidas e algo comestível a tais horas pouco convenientes para esta tarefa.

A minha sorte, quanto à dita tarefa, foi ter a agenda já cheia para essa noite. O meu programa consistia em desenhar com máxima precisão e em intervalos regulares de 30 em 30 minutos, todos os fenómenos atmosféricos visíveis em Júpiter. Júpiter estava em oposição, o que significava, considerando a estação, que era possível captar uma rotação inteira do planeta e assim mapear toda a sua superfície. Repetindo este programa em várias noites sucessivas, permitia, por um lado acompanhar o progresso evolutivo desses fenómenos e, por outro, verificar o movimento próprio desses fenómenos através da alteração da sua posição entre si.

Recorrendo às efemérides do almanaque astronómico, nomeadamente a longitude e latitude no ponto central do disco (meridiano central, inclinação do eixo e latitude) permitia com uma espantosa precisão determinar as posições exactas dos fenómenos visíveis e assim a velocidade diferencial com que estes flutuavam na atmosfera joviana. Tais dados, na altura, eram ainda bastante importantes no estudo deste planeta gasoso gigante.

Uma vez escolhido o desafortunado comprador de bens alimentares, a conversa na biblioteca centrou-se sobre o modelo mecânico e em qual teria sido o proveito de se criar um tal objecto. Tem de ser dito, que até ao século XIX, estes tipos de modelo estavam bastante em voga. Chegado a este ponto, foi a minha vez de voltar para o topo do observatório e ao telescópio, para efectuar o próximo desenho do planeta Júpiter. Esta tarefa levava obrigatoriamente no máximo 10 minutos, para evitar que as posições dos objectos visíveis se alterassem demasiado, devido à veloz rotação do planeta observado. Voltando para a conversa, aos restantes amigos reunidos e aquecendo-me na pequena salamandra da biblioteca, apenas ouvi um deles dizer, que algo não se mexia. Em tão pouco tempo, presumi, o tema da conversa não tinha avançado muito, e assumi que o não "se mexe" se referia a algo no dito modelo mecânico. Respondi, com um certo pesar na voz, visto que o modelo era uma antiguidade, que "Se não se mexe, está avariado". Não esperava que esta expressão fosse provocar uma gargalhada bastante demorada, que se reacendia com muita frequência. Efectivamente, os outros já tinham avançado para as diferenças entre o modelo heliocêntrico e geocêntrico, para Copérnico e Galileu, e o que não se mexia...evidentemente era o Sol. Felizmente, o modelo mecânico estava em boas condições e perfeitamente funcional.

Mesmo assim, não chegamos a um consenso comum de para quê, nos séculos passados, se tinham criado tantos modelos animados do Sistema Solar e com tanta precisão no seu acabamento. Ou seja, não podia ser apenas um modelo para demonstração de como é constituído o Sistema Solar. Para tal finalidade simples, o esforço do artesão e o preço do produto final, certamente seriam demasiado elevados. Porém, como constatámos, ajustando e fazendo girar os planetas em torno do pequeno Sol de latão, não só era possível recriar a posição correcta dos planetas em relação ao Sol, como também determinar, com alguma imaginação básica, onde ou quando estes se iam apresentar na esfera celeste em qualquer altura do ano ou hora. Portanto, ajustado para a data correcta, o modelo podia servir perfeitamente como uma espécie de almanaque com validade para muitos séculos. Para além disso, fazendo girar o mecanismo, este fornecia uma forma visual das diversas configurações entre planetas, como quadratura, oposição etc., bem como quando estas se iam verificar. Como tal, estes modelos eram uma ferramenta, um pouco rudimentar quanto à precisão, para ajustar a ocorrência de certos eventos ou configurações de relevo de dois ou vários planetas e saber, através da escala do tempo na base do suporte do Sol, quando isto se tinha verificado ou se iria verificar.

Hoje em dia, estes modelos mecânicos do Sistema Solar são, na maioria, caixas pequenas de plástico e em nada se assemelham aos antigos, tanto em termos da estética como em funcionalidade. Porém, progresso é progresso, e gastamos sensivelmente a mesma fortuna que os nossos antepassados, para obter o mesmo efeito, isto é, ver os planetas girar correctamente em torno do Sol. Porém, os nossos modelos são apresentados num monitor, requerem computadores e software e não são, minimamente, tão bonitos como os modelos antigos maciços. Quanto à funcionalidade, porém, os nossos programas de computador são mais fiáveis e reproduzem todos os aspectos com precisão ao minuto, o que, infelizmente, os modelos mecânicos nunca podiam alcançar.

Para fechar


O Calendário da Astronomia, editado em Portugal, é o único almanaque astronómico que simultaneamente é um livro para quem gosta da astronomia e queira aprender ou conhecer o que acontece neste ramo.
Do almanaque mecânico para o de papel, e como já referido nos tópicos das semanas anteriores, tanto um como outro deixaram de ter o mesmo impacto que tiveram noutras alturas. A frente de combate da sabedoria humana afastou-se bastante do nosso Sol e da tralha que gira em torno dele. Agora importam os buracos negros, a radiação cósmica de fundo, os raios cósmicos, as ondas gravitacionais e os planetas, não os nossos, mas os das outras estrelas, e por mais abrangente que um almanaque possa tentar ser, jamais se irá encontrar um que satisfaça todas as envolventes da astronomia actual. Por isso verificou-se um declínio substancial dos almanaques astronómicos em todo o mundo. Continuam a persistir os de longa data, Astronomical Alamanac (EUA/RU) e Connaissance des Temps (F), bem como os mais veiculados nas décadas passadas na Alemanha, Austrália e Rússia. Porém, por falta de participação activa dos meios amadores nas pesquisas profissionais, a necessidade de um almanaque astronómico puro, deixou de existir, e com isso o incentivo económico para os produzir.

Uma das raras excepções é o Calendário da Astronomia (acrónimo CdA), o qual existe há 4 anos e é feito em Portugal. Um almanaque já não pode ser apenas uma ferramenta de trabalho, cheia de quadros e números. Para isso temos os nossos computadores. Fugindo do conceito meramente tabelar, um almanaque moderno tem de ser mais abrangente. Nisso o CdA apresenta-se antes como um livro anual, oferecendo nos seus vastos temas e tópicos mensais os mais variados aspectos sobre as estrelas, a astronomia, os astrónomos, a ciência actual como a de outros tempos. Evidentemente, não podem faltar os quadros para eventos e fenómenos, nem as datas e horas de nascer e ocaso dos objectos celestes e os elementos que, como se referiu acima, têm a sua clientela assegurada. O CdA serve e destina-se a todas as pessoas com gosto pelo firmamento estrelado, sejam estas curiosas, principiantes, amadoras ou mesmo aos profissionais, pois até eles podem às vezes aprender algo desconhecido. Este tipo de almanaque/livro anual é um conceito novo no seio dos almanaques, e será provavelmente o futuro de muitos.

Olhar para trás

Conforme prometido, este tema mensal do Portal do Astrónomo fugiu um pouco do conceito habitual de apresentar a sua informação. Insultou-se as ovelhas, tratou-se mal os famosos oráculos, falou-se a brincar dos imperadores que moldaram uma boa parte do mapa do mundo e os nossos calendários actuais, e até se elevou o estatuto do único animal ainda mais estúpido que as ovelhas, ao patamar de fonte de inspiração indirecta dos grandes cientistas. À parte destes pequenos desvios do rigor científico, o desenvolvimento gradual do tema certamente permitiu entender as necessidades e funcionalidades para existirem calendários e previsões do futuro em geral e astronómicos (almanaques) em específico. Houve também um pequeno olhar para o que fez os almanaques evoluírem, desde os primeiros, dos quais temos registos até aos dos tempos modernos. O tema não se esgota por aqui. Podia-se encher um livro bem apetrechado de páginas e ainda não ficaria tudo dito e contado.

Nota final

Espero que esta pequena excursão ao longo do tempo e pelos meandros dos almanaques, das gentes e da bicharada tenha deixado um ou outro conceito na memória do caro leitor. Se assim for, valeu a pena a escrita e a leitura.
- Porquê?
- Não sei.