Quando falamos de ondas gravitacionais decerto que a maior parte dos leitores associa a sua produção a eventos astrofísicos de grande violência envolvendo objectos exóticos extremamente compactos (buracos negros, por exemplo) e localizados no espaço-tempo. Existe no entanto uma outra fonte de ondas gravitacionais cujas características são completamente diferentes das fontes discutidas nas duas últimas semanas: o nascimento e expansão do Universo. De acordo com o modelo cosmológico padrão o nascimento do universo terá sido decerto o acontecimento mais violento alguma vez ocorrido no Universo, mas as ondas gravitacionais produzidas por este evento não se encontram localizadas e formam um fundo de radiação gravitacional que preenche todo o Universo da mesma forma que a radiação cósmica de fundo ou o fundo cosmológico de neutrinos.

Nesta terceira parte vou discutir o fundo cosmológico de ondas gravitacionais, algumas das razões porque não goza em geral de tanta publicidade como outras fontes mais convencionais e também a razão da sua importância e a possibilidade que nos oferece de abrir uma nova janela sobre os instantes iniciais do Universo.


Um fenómeno alarmante

Figura 1: Shrödinger, um dos fundadores da mecânica quântica e um dos primeiros a perceber que a expansão do Universo produz partículas. Crédito: Nobel Foundation.
Nos finais dos anos 30 do Séc. XX, Erwin Schrödinger, mais conhecido como um dos fundadores da mecânica quântica, percebeu que num universo em expansão existe uma produção não desprezável de partículas dependente da aceleração da expansão. Este resultado deixou-o tão chocado que no artigo onde esta descoberta é relatada, Schrödinger usa a expressão "fenómeno alarmante" para descrever este resultado e decide abandonar todos os modelos onde esta produção acontecia por a considerar totalmente irrealista. Poderá o leitor mais atento perguntar: mas afinal o que é que isto tem a ver com a produção de ondas gravitacionais? A resposta é simples: da mesma maneira que um fotão (a partícula que medeia a interacção electromagnética) pode ser associado a uma onda electromagnética (a dualidade onda-partícula da mecânica quântica), podemos postular a existência de uma partícula elementar mediadora da interacção gravitacional, o Gravitão, e fazendo uso da dualidade onda partícula, associar o gravitão a uma onda gravitacional. Embora os detalhes estejam completamente fora do âmbito da nossa discussão, o gravitão tal como o fotão não tem massa, move-se à velocidade da luz e tem spin 2. Note-se que em principio isto poderia dar origem a 5 estados de spin, mas devido às simetrias da teoria só dois desses estado são independentes e dai os dois estados de polarização para as ondas gravitacionais que discutimos a semana passada. Tendo estes factos em conta, é agora fácil perceber que a descoberta de Schrödinger implica que um universo em expansão acelerada produz ondas gravitacionais.

À parte o fenómeno em si, o que é interessante notar nesta análise de Schrödinger é que ele associa a produção de partículas à aceleração e não directamente à expansão. Esta observação crucial viria a tomar grande importância no contexto da cosmologia inflacionária.

Seria necessário esperar até meados dos anos 70 para percebermos, em grande medida devido ao trabalho seminal de Lenid Grishchuk, que não existe nada de alarmante neste fenómeno que têm origem nas flutuações quânticas que povoam o vácuo. Quando o comprimento de onda de uma destas flutuações é "esticado" para lá do horizonte cosmológico (que em geral é da ordem de grandeza do inverso da constante de Hubble H-1), a flutuação "congela" e pode a partir dai ser vista como uma onda gravitacional que é amplificada pela expansão do universo.

Uma das imagens mais intuitivas para este processo foi desenvolvida por Grishchuk e baseia-se na semelhança entre as equações que descrevem a amplificação das ondas gravitacionais e as equações que descrevem o efeito de túnel de uma partícula numa barreira de potencial com um potencial V=ä/a onde a é o factor de escala do Universo e as " indicam a segunda derivada. Tal como Schrödinger tinha percebido, o

Figura 2: A amplificação de ondas gravitacionais induzida pela aceleração do Universo. "k" é o número de onda, e "a" o factor de escala do Universo. Crédito: Luís Mendes.

importante neste caso é a aceleração da expansão (ä) não a velocidade da expansão. Como a figura ilustra, enquanto a onda se encontra debaixo da barreira de potencial a sua amplitude é constante e sofre uma amplificação quando comparada com um onda cuja amplitude é amortecida enquanto dura a expansão.

O resultado final é em geral uma sobreposição incoerente de ondas gravitacionais que resultam num fundo que se assemelha em grande parte a ruído. Embora a origem quântica deste fundo cosmológico introduza correlações subtis entre as varias ondas, não é claro que elas possam ser detectadas, e como veremos quando discutirmos a detecção de ondas gravitacionais, a possibilidade mais realista de detectar este fundo consiste no efeito que ele tem sobre a polarização da radiação cósmica de fundo. Ou, quem sabe, num futuro não muito longínquo se um detector de ondas gravitacionais for afectado por níveis de ruído claramente acima daquilo que seria de esperar, talvez essa seja uma boa notícia...


Uma janela sobre os instantes iniciais do Universo

Admitindo que este fundo de ondas gravitacionais é real, existirá alguma razão para o querermos medir? Tendo em conta que devido à sua fraca capacidade de interagir as ondas gravitacionais desacoplam da matéria nas fracções de segundo imediatamente após o Big Bang, da mesma maneira que os mapas da radiação cósmica de fundo produzidos pelos satélites COBE e mais recentemente WMAP nos mostram


Figura 3: O Universo segundo WMAP. Crédito: WMAP/NASA.

uma imagem do Universo no instante em que radiação e matéria deixaram efectivamente de interagir (isto é, quando a idade do Universo era aproximadamente 200000 anos), um mapa do fundo cosmológico de ondas gravitacionais seria basicamente uma imagem do Universo imediatamente após o Big Bang! Parece-me que não será excessivo dizer que uma tal observação seria uma das mais extraordinárias descobertas que podemos neste momento imaginar. Para além do fascínio que a possibilidade de observar o "nascimento do Universo" claramente exerce sobre os cosmólogos que se dedicam ao estudo dos instantes iniciais do Universo esta não é a única razão que justifica investir algum do nosso tempo no estudo deste tópico. Uma vez que o fundo de ondas gravitacionais se encontra desacoplado desde muito cedo da matéria que preenche o Universo, qualquer processo que contribua para este fundo durante a evolução do Universo, deixará nele uma marca que se manterá inalterada (à parte o desvio para o vermelho das ondas gravitacionais devido à expansão do Universo) até ao presente.

Figura 4: A evolução do Universo. Crédito: LISA/NASA.



Alguns exemplos

Medindo as características espectrais do fundo cosmológico de ondas gravitacionais podemos ver a história do Universo desenrolar-se diante dos nossos olhos. As figuras 5 e 6 ilustram este ponto. O primeiro facto que se torna aparente ao observar as figuras é a extensão da gama de frequências produzidas: 30 ordens de grandeza! Para ter uma ideia do significado desta extensão basta reparar que as frequências correntemente usadas em astronomia extendem-se desde o domínio das ondas rádio (f~106 Hz) até aos raios gama (f~1020 Hz), ou seja "apenas" 14 ordens de grandeza! Tendo em conta a variedade das descobertas feitas nesta banda "tão limitada" de frequências durante os últimos 100 anos, é impossível prever o que a astronomia de ondas gravitacionais nos trará.

Figura 5: A densidade espectral de ondas gravitacionais no modelo inflacionário padrão e num modelo de inflação térmica. Crédito: Mendes & Liddle PRD 60 063508.


Figura 6: A densidade espectral de ondas gravitacionais numa variante do modelo de pré Big Bang. Crédito: Mendes & Liddle PRD 60 063508.


A quantidade representada nestas figuras Ωgw(f) é a chamada densidade espectral de energia e é basicamente uma medida da fracção da energia no Universo na forma de ondas gravitacionais para uma dada frequência f, medida em relação à energia total de um Universo plano, normalmente designada por Ω. Só para ter uma ideia do significado deste número, actualmente todos os dados indicam que a densidade do Universo toma um valor muito próxima de 1, o valor de Ω num Universo plano. A figura 5 mostra dois modelos distintos: o modelo inflacionário padrão e um modelo chamado inflação térmica. Mesmo sem entrar em grandes detalhes, é fácil ver que os dois modelos produzem espectros de ondas gravitacionais com características distintas. Infelizmente, olhando para as curvas marcadas com LISA e LIGO II que mostram um esboço grosseiro da sensibilidade destes dois detectores, vemos que a detecção do fundo de ondas gravitacionais dificilmente acontecerá nos próximos anos. Embora no caso do modelo inflacionário padrão o espectro não seja particularmente interessante, é de notar que para frequências abaixo de 10-17 Hz a curva sobe em relação ao patamar observado para altas frequências. É esta parte do espectro que pode eventualmente deixar a sua marca na polarização do fundo cósmico de micro-ondas. Embora a polarização da radiação cósmica de fundo produzida pelo fundo cósmico de ondas gravitacionais seja extremamente difícil de detectar (e de facto não foi até hoje detectada...) as barreiras técnicas a transpor são claramente mais acessíveis que no caso da detecção directa do fundo cosmológico de ondas gravitacionais.

A figura 6 mostra os resultados obtidos para uma variante de um modelo conhecido como pré Big Bang. Como o nome indica, neste modelo o Universo existe ainda antes do Big Bang. O espectro de ondas gravitacionais produzidas neste tipo de modelos parece muito mais promissor que no caso dos modelos inflacionários e a sua detecção seria em princípio possível com o detector LISA, e marginalmente possível com o LIGO II. Infelizmente modelos deste tipo não gozam hoje em dia de grande popularidade entre outras razões porque é extremamente difícil unir de uma forma contínua a evolução do Universo antes e depois do Big Bang, mas de qualquer maneira ilustram de uma forma clara a variedade de constrangimentos que é possível impor num modelo cosmológico a partir do espectro do fundo cosmológico de ondas gravitacionais por ele produzido.

Mas não é tudo. Embora pequena, a contribuição do fundo cosmológico de ondas gravitacionais para a energia total do Universo não é desprezável: num modelo que produza ondas cosmológicas em excesso, a nucleosíntese (a formação dos elementos leves que compõem o Universo e que ocorreu alguns minutos após o Big Bang) produziria Hélio em quantidades diferentes daquilo que hoje observamos. Vemos assim que algo que começou como um "fenómeno alarmante" é de facto uma fonte preciosa de informação sobre a evolução do Universo.


A persistência compensa!

O grande trunfo das ondas gravitacionais é também o seu ponto fraco: a sua predisposição para não interagir com a matéria que lhes permitiu atravessar o Universo transportando a sua mensagem inalterada desde a sua criação significa que a interacção com um detector será também extremamente improvável... Improvável mas não impossível! Como veremos na próxima semana, os cientistas envolvidos nos maiores detectores actualmente em construção têm durante os últimos anos vindo a considerar seriamente todas as possibilidades práticas de detecção do fundo cosmológico de ondas gravitacionais. Embora a detecção directa não esteja ainda no nosso horizonte, as dificuldades que se colocam no presente são essencialmente técnicas não existindo qualquer razão física que impossibilite a sua detecção. Embora seja um problema diferente podemos comparar esta situação com o que se passou com a medição das anisotropias do fundo cósmico de micro ondas pelo satélite COBE. Durante várias décadas a detecção de anisotropias na temperatura parecia estar fora do alcance de qualquer estimativa mais realista, até que o satélite COBE lançado em 1989 conseguiu realizar o impossível! Tendo em conta o que está em jogo, esta é uma área em que mais tarde ou mais cedo a persistência e a astúcia serão certamente recompensadas!