A observação de Marte foi essencial para que Kepler induzisse as suas leis do movimento planetário. Lembremo-nos que, para Kepler nessa altura, tal como antes para Tycho Brahe, Marte era mesmo um ponto vermelho no céu: as observações astronómicas eram feitas à vista desarmada. Não deixa de ser irónico reparar que o ano em que Kepler publicou os seus "Comentários sobre os Movimentos de Marte", 1609, foi provavelmente o mesmo em que as primeiras lunetas foram apontadas para os céus.
Foi o ano em que Galileu Galilei, então professor de Matemática na Universidade de Pádua começou a observar os céus com a sua luneta: primeiro a Lua, claro, e depois, também obviamente, Vénus e Marte. Note-se que foi pela observação comparada destes dois planetas que Galileu induziu que Vénus estava mais próximo e Marte mais distante do Sol que a Terra. Estando sempre no interior da órbita da Terra, Vénus mostra-nos as mesmas fases que a Lua; já Marte, mais distante do Sol que a Terra, não mostra nunca as fases nova nem falcadas (os crescentes e minguantes finos).
As primeiras descrições científicas de Marte devem-se ao grande astrónomo holandês Christiaan Huygens, em 28 de Novembro de 1659. Foi ele o primeiro a ver uma mancha triangular escura, que desenhou, e que podemos identificar hoje perfeitamente como Syrtis Major. Pela observação do movimento desta estrutura, Huygens calculou que o período de rotação de Marte deveria ser idêntico ao da Terra (hoje sabemos que o dia marciano - um "sol" - dura aproximadamente 24h 37' 22'' terrestres). Também foi Huygens o primeiro a desenhar uma "mancha clara" no polo Sul do planeta - a calote polar meridional - em 1672.
No mesmo ano, um jovem físico chamado Isaac Newton, mostrava à Royal Society de Londres um telescópio que, em vez de lentes, usava um espelho côncavo como elemento ampliador, que viria a revolucionar toda a astronomia daí em diante. Infelizmente, só em meados do séc. XVIII se conseguiria construir espelhos com qualidade óptica suficiente para obter as grandes definições necessárias na observação planetária (o espelho de Newton era construído em "metal de sino" - bronze - polido).
Ainda no mesmo ano, 1672, Cassini (mais conhecido hoje pelas observações de Júpiter e Saturno) relatou a ocultação de uma estrela antes de esta ser atingida pelo disco de Marte, o que o levou a concluir que o planeta tinha uma atmosfera muito densa. Só em 1783 William Herschel viria a mostrar que aquela observação era mais um efeito óptico em que a estrela era ofuscada pelo brilho disperso de Marte; no seu telescópio newtoniano, com um espelho de 47cm de diâmetro, Herschel observou que a ocultação de estrelas de muito pequena magnitude se dava no próprio disco planetário, concluindo, então, que Marte não tinha atmosfera.
Nos cem anos que se seguiram, à medida que os instrumentos melhoravam e que, ao mesmo tempo, se compreendia a importância da estabilidade atmosférica do local da observação, foi-se aumentando o pormenor da descrição da superfície de Marte, até chegarmos a um ano crucial na história das observações do planeta vermelho: 1877.
Não nos deve surpreender que haja estes "anos críticos" na história das observações de Marte. É que, como o ano marciano é aproximadamente duplo do ano terrestre, a cada cerca de dois anos ambos os planetas encontram-se mais próximos: "em oposição". Se, para além de estarem em oposição, esse momento coincidir com o periélio de Marte (ponto da órbita em que o planeta está mais próximo do Sol), fenómenos que ocorrem conjuntamente a cada cerca de quinze anos, o planeta aparece muito maior nos nossos céus, em condições óptimas para ser observado. Em Agosto de 2003 Marte encontrar-se-á a uns "meros" 56 milhões de quilómetros da Terra: a menor distância nos últimos 60000 anos.
Voltemos a 1877. Neste ano de oposição periélica todos os interessados em Marte, profissionais e amadores, assestaram os seus telescópios sobre o planeta.
Foi nesse ano que o americano Asaph Hall observou e identificou correctamente pela primeira vez ambos os satélites de Marte. Baptizou-os de Fobos (medo) e Deimos (pavor), não por alguma tendência depressiva mas porque esses eram os nomes dos cavalos do carro de combate do deus grego da guerra, Ares - o latino Marte.
Ao mesmo tempo, um astrónomo britânico, hoje pouco conhecido do grande público, Nathaniel Green, foi em busca das melhores condições de visibilidade para a Madeira. Montou o seu telescópio no Pico do Areeiro e desenhou as suas observações do planeta.
Infelizmente, não foi o trabalho minucioso de Green que influenciou toda a história da observação de Marte até meados do séc. XX, mas sim o do seu colega italiano Giovanni Schiaparelli (sim, o nome é conhecido: é o trisavô da estilista actual).
Os mapas de Schiaparelli eram tão minuciosos como os de Green, mas muito mais interpretativos.
E um nome recorrente nos trabalhos de Schiaparelli é "Canale". Ora, a palavra "canale" traduz-se simplesmente para português como "canal" mas em inglês pode ter duas traduções: "channell" e "canal". A diferença é que, no primeiro caso, o canal é natural e, no segundo, artificial. Mais uma vez infelizmente, traduziram-se sempre os "canalli" de Schiaparelli para "canals" o que deu ideias estranhas a muita gente nos cem anos que se seguiram...
A pessoa mais influenciada por Schiaparelli e que, ao mesmo tempo, iria influenciar o século seguinte de observações de Marte foi o americano Percival Lowell.
Amador, rico, apaixonado por Marte, mandou construir vários instrumentos e observatórios sempre em busca das melhores condições para observar o seu planeta favorito. Ainda existe hoje o Observatório Lowell em Flagstaff, Arizona, que deu muitos e importantes contributos para a Astronomia. No caso de Marte, Lowell ficou obcecado pelos canais de Schiaparelli e viu neles a intervenção de uma civilização avançada que procurava opor-se à desertificação do seu planeta pela construção de canais para conduzirem água dos pólos para as regiões mais secas a menores latitudes.
Lowell foi um publicista tão eficiente, produziu tanto trabalho, tantas publicações e conferências que, a partir dele e por muitos anos, a maioria dos observadores viam "claramente" os seus canais rectilíneos conduzindo água dos pólos para o equador. Para aumentar a confusão, já era sabido há alguns anos que havia regiões de Marte que mudavam de cor com as estações do ano - o que foi interpretado como sendo efeito da queda da folhagem da vegetação.
Diga-se em abono da verdade que o próprio Schiaparelli, nos últimos anos, ao comparar as suas observações com os mapas mais recentes (dos seguidores de Lowell) se sentiu desencorajado, pois não conseguia ver muitos dos relevos cartografados.
Embora muitos astrónomos tenham posto em causa as hipóteses da escola lowelliana, essa foi a escola dominante até ser possível... ir lá.
Vamos ver, na próxima semana, o início do caminho do Homem para Marte.
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