Algumas das moléculas mais importantes produzidas a partir do metano e azoto na atmosfera de Titã. A cadeia de reacções começa com a fotólise destes gases pela luz ultravioleta do Sol. A adenina e o benzeno nunca foram identificados. Imagem ESA adaptada pelo autor.
Apesar dos grandes progressos da astronomia e da exploração do Sistema Solar feitos nas últimas décadas, a superfície de Titã continua a ser uma das mais desconhecidas do Sistema Solar. O motivo para esta particularidade reside, mais uma vez, na sua atmosfera. Como vimos no capítulo anterior, esta é composta principalmente por azoto molecular, tal como o ar que respiramos. No entanto, ao contrário da Terra, não é possível fotografar directamente a superfície. Se o azoto (N) é um gás transparente, qual será então a causa? A resposta está na química. Existem partículas em suspensão na atmosfera, chamadas aerossóis, que formam uma bruma alaranjada que esconde a superfície. Para percebermos melhor a origem da bruma falemos mais um pouco de química, com uma pequena digressão pelo tema da origem da vida.

A atmosfera de Titã contém metano, uma molécula composta por um átomo de carbono (C) e quatro átomos de hidrogénio (H). Quando iluminada pela luz ultravioleta do Sol a molécula facilmente perde dois ou três dos seus átomos de hidrogénio. O hidrogénio é muito leve e, se não encontrar uma molécula a que se possa ligar, escapa para o espaço. As moléculas de CH ou CH2 restantes, por seu lado, facilmente reagem (entre si) formando C2H4 (etileno), C2H6 (etano) ou C2H2 (acetileno), e libertando mais hidrogénio. Estas reacções são irreversíveis, pois o hidrogénio uma vez perdido já não volta a ser recuperado para formar CH4. Assim começa uma cadeia de reacções químicas em que várias moléculas complexas são produzidas. Quimicamente todas são da família dos hidrocarbonetos, pois consistem num ou vários átomos de carbono ligados a átomos de hidrogénio. O azoto também participa em várias reacções. Quando os hidrocarbonetos contêm azoto designam-se por nitrilos. O produto final desta série de reacções é uma sopa de letras molecular, em que quase todas as letras são "C" e "H".

As células de todos os seres vivos são compostas por moléculas em que o carbono é o elemento chave. Por isso a química do carbono é chamada química orgânica. Até ao século XIX pensava-se que a química orgânica e a química inorgânica (que inclui a química dos minerais, por exemplo) eram dois ramos separados, e procurava-se uma ligação entre as duas. Poder-se-ia produzir moléculas orgânicas a partir de moléculas não orgânicas? A síntese da ureia pela primeira vez em laboratório em 1828 veio provar que sim. Hoje em dia sabemos que existem inúmeras moléculas orgânicas no meio interestelar, produzidas por processos perfeitamente inorgânicos. Ora se isto é possível, então as primeiras moléculas orgânicas que deram forma à vida na Terra podem ter surgido a partir dos gases, água e fontes de energia existentes quando o planeta se formou.

Mas que tem isto a ver com Titã ? É que a atmosfera de Titã tem uma composição muito favorável à criação de moléculas orgânicas. Então talvez a química de Titã nos diga alguma coisa sobre as moléculas que foram importantes para a origem da vida na Terra.

O bioquímico russo Alexander Oparin (1894-1980) foi o primeiro a propor que as moléculas orgânicas dos primeiros seres vivos na Terra poderiam ter-se formado a partir do metano da atmosfera primitiva. Corria então o ano de 1924. Mas quais seriam essas primeiras moléculas? Em 1953, numa célebre experiência, um estudante de doutoramento chamado Stanley Miller iria descobrir. Miller tentou recrear em laboratório o ambiente da Terra primitiva, submetendo a descargas eléctricas uma mistura de metano, hidrogénio, amónia e vapor de água. As descargas simulavam os relâmpagos, enquanto que um reservatório de água representava os oceanos. Após várias semanas de descargas eléctricas, Miller descobriu que 16% do carbono inicialmente presente estava agora contido em moléculas orgânicas. Entre estas, o aminoácido glicina (os aminoácidos são os elementos básicos das proteínas) fazia o grosso da mistura. O cianeto de hidrogénio (HCN) e o folmaldeído (HCHO), que são elementos essenciais da passagem à química da vida, estavam também presentes.

Mas desde a década de 1950 os conhecimentos evoluíram, e os cientistas perceberam que a atmosfera primitiva da Terra não era bem como Miller tinha simulado: em vez de metano e amónia ela deveria ter grandes quantidades de dióxido de carbono (CO2) e azoto. Há pelo menos quatro razões para isso. Primeiro, o metano e a amónia são destruídos pela luz solar e não existem fontes suficientes para os restabelecer. Segundo, as atmosferas dos nossos vizinhos Vénus e Marte são dominadas por dióxido de carbono (na Terra devemos o oxigénio à presença das plantas verdes, que o fabricam a partir do CO2, água e luz do Sol). Terceiro, na Terra primitiva as erupções vulcânicas traziam à superfície enormes quantidades de CO2. E quarto, sabe-se que o Sol era inicialmente bastante menos energético (mais "frio"), e portanto era necessário um efeito de estufa bastante grande para manter a temperatura da Terra acima de 0 graus Celsius, a fim de impedir os oceanos de congelar. Ora o CO2 é o gás de efeito de estufa mais provável. É que a condição indispensável à origem da vida parece ser a existência de água líquida, por isso se queremos que apareçam bactérias, algas, ou seres humanos não devemos deixar gelar os oceanos!

Portanto, na Terra primitiva o carbono e o azoto devem ter existido principalmente sob as formas de CO2 e N2, em vez de metano e amónia, sendo a atmosfera muito menos redutora do que Miller pensava. E quando se realiza a experiência de Miller passando progressivamente do metano ao dióxido de carbono, surgem cada vez menos aminoácidos no resultado final... 1000 vezes menos! Assim, uma hipótese que parecia prometedora teve de ser afastada à luz dos novos conhecimentos.

Mas em Titã existe metano, e a experiência de Miller funciona. Imagine um balão de vidro contendo 90% de azoto e 10% de metano. Iluminando a mistura com luz ultravioleta o que espera obter? Se respondeu moléculas orgânicas, está certo. Mas quais? A resposta é uma mistura castanho-avermelhada que se cola às paredes do balão, composta principalmente por hidrocarbonetos de cadeia longa, isto é, moléculas em que muitos átomos de carbono estão ligados em cadeia. Esta mistura cor de lama foi baptizada tolina, que vem da palavra grega para... lama. Um resultado interessante da experiência é um nitrilo chamado cianeto de hidrogénio (HCN). Quando misturada com água esta molécula pode formar adenina, um dos componentes do ADN.

Analisando a luz que nos chega reflectida por Titã, é possível determinar as propriedades ópticas da bruma. Comparando estas propriedades com as da tolina, vê-se que são semelhantes. Portanto a resposta à nossa pergunta inicial é que a bruma de Titã é composta por moléculas orgânicas. Estas formam-se na alta atmosfera a cerca de 500 km de altitude e caem por acção da gravidade. No seu percurso juntam-se a outras moléculas e aumentam de tamanho, formando agregados. Cada partícula da bruma é um destes agregados, com dimensões de 5 a 50 micrómetro (1 micrómetro é um milésimo de milímetro).

Desde a sua formação, estima-se que deve ter-se acumulado à superfície de Titã uma camada de moléculas orgânicas de vários metros de espessura, dos quais 10m de HCN e 1m de moléculas complexas. Esta mistura é semelhante à que pode ter existido na Terra pré-biótica, isto é, antes da origem da vida. Infelizmente para os interessados em exobiologia, falta o elemento essencial: água no estado líquido. A água líquida tem propriedades que fazem dela o elemento chave para o aparecimento da vida.

Existe água em Titã, como em todas as luas geladas e cometas do Sistema Solar. Contudo a temperatura de -180 graus Celsius é demasiado baixa para que ela possa existir no estado líquido. Mesmo assim é possível que os impactos de asteróides na superfície, quer durante a formação de Titã, quer ao longo da sua "idade adulta", tenham derretido o gelo e durante curtos períodos de tempo tenha existido água líquida. As estimativas indicam que em média qualquer local em Titã conteve água líquida durante 100 a 1000 anos da sua história. Embora isto seja suficiente para que se dêem reacções químicas de interesse biológico, é quase impossível que mesmo as mais simples formas de vida se possam ter desenvolvido.