Esquema da ocultação da sonda Voyager por Titã. A intensidade da onda de rádio recebida na Terra é atenuada aquando da passagem pela atmosfera, antes de desaparecer totalmente.
No seu percurso pelo Sistema Solar a sonda Voyager 1 passou uma vez por trás de Titã, num processo chamado ocultação. Durante a ocultação, o sinal rádio emitido pela antena principal da nave e recebido na Terra sofreu uma ligeira atenuação antes de desaparecer totalmente. Essa atenuação deveu-se à passagem pela atmosfera. A análise do sinal permitiu calcular o peso molecular médio da atmosfera em 27 u.m.a. (unidades de massa atómica), o que significa que as moléculas do gás contêm (em média) 27 protões e neutrões. Ora há dois gases cujo peso molecular é desta ordem: o monóxido de carbono (CO) e o azoto (N2), ambos com peso 28 u.m.a.. Ambos são abundantes no Sistema Solar, mas vamos ver que em Titã o CO é praticamente inexistente. Porquê ?

A explicação não é simples mas, sendo um excelente exemplo de dedução e de aplicação do método científico, vale a pena apresentá-la aqui. Na nebulosa primitiva que deu origem ao Sistema Solar o carbono e o azoto encontravam-se principalmente sob a forma de CO e N2. O hidrogénio era o gás mais abundante, mas tinha inicialmente uma densidade muito baixa. O hidrogénio é chamado um gás redutor, pois as outras espécies químicas têm tendência a ligar-se a ele, reduzindo assim as hipóteses de reagirem com outras moléculas. Durante a formação de Saturno o aumento da densidade do hidrogénio e da temperatura naquela região da nebulosa permitiu que ocorressem reacções químicas que converteram o CO em metano (CH4) e o azoto em amónia (NH3). Isto é, quimicamente, a redução do azoto e do carbono.

Estrutura cristalina do gelo vulgar. Os átomos de H e de O são representados por esferas azuis e vermelhas, respectivamente. As células hexagonais podem hospedar moléculas como o metano e a amónia no seu interior.
Por outro lado, sabemos que Titã se formou pela agregação de muitos blocos, chamados planetesimais, num processo designado por acreção. Os planetesimais eram constituídos principalmente por gelo. Ora o gelo é água no estado sólido e, nos cristais de gelo, conforme a pressão e temperatura, as moléculas de água podem formar várias estruturas. A mais comum, chamada gelo Ih, é uma estrutura de lados hexagonais, em favo de mel. É este o gelo vulgar que encontramos no congelador ou na neve.

A estrutura em favos dos cristais de gelo permite aprisionar as moléculas de certos gases no seu interior. Assim, a presença de gelos na nebulosa solar primitiva é a chave para a existência de uma atmosfera em Titã, pois o metano e a amónia que existiam na nebulosa foram aprisionados no gelo que formou os planetesimais. De facto, este processo de confinamento de certos gases nos cristais de gelo é um dos mais importantes para explicar a composição e a estrutura interna de muitos objectos do Sistema Solar. Os gelos que contêm moléculas de outros gases designam-se por clatratos, que podem ser de amónia, de metano, etc., conforme o gás que predomina no seu interior. Também pode acontecer a molécula hospedeira ocupar o lugar de uma molécula de água na estrutura cristalina do gelo, caso em que se fala de clatratos hidratados.

A sonda Voyager. Lançadas em 1977, as duas sondas gémeas Voyager 1 e 2 deram-nos uma visão sem precedentes dos planetas gigantes do Sistema Solar e dos seus sistemas de luas e anéis. Cred: JPL/NASA
Durante a fase de acreção de Titã, a agregação de um número cada vez maior de planetesimais em torno de um núcleo central levou ao aumento da massa, e por isso a uma maior força gravitacional. Isto produziu uma maior pressão e temperatura no interior, pois as camadas mais internas ficaram sujeitas ao maior peso das camadas externas. Nestas condições os cristais de gelo cedem, libertando o metano e a amónia aprisionados no seu interior. Estes gases são voláteis, facilmente escapando através da superfície. Por fim, o metano e a amónia permaneceram ligados ao globo por acção da força da gravidade, formando a atmosfera. O escape dos voláteis do interior de um planeta ou satélite é normalmente designado pelo termo em inglês, "outgassing". Em português não existe um termo comum, sendo talvez "escape gasoso" o mais apropriado.

Mas ainda não acabámos! Falta saber como apareceu o azoto na atmosfera. É que a luz ultravioleta do Sol destrói a molécula de amónia, num processo chamado fotólise. Os átomos de azoto resultantes tendem a ligar-se entre si, formando moléculas de azoto, que são muito mais estáveis que a amónia. Assim, o resultado do processo de formação de Titã foi uma atmosfera de azoto e metano. As observações indicam uma composição de cerca de 90% de azoto, e 5 a 10% de metano, existindo outros gases em quantidades residuais.

Mas há um problema, pois a luz do Sol destrói não só a amónia, mas também o metano. Vamos ver mais à frente porque ele ainda existe em Titã.

Esquema da fase inicial de formação de Titã. Pode ver-se a nebulosa que deu origem ao Sistema Solar (em cima à esquerda), a sub-nebulosa de Saturno (à direita) e um esquema da formação de Titã por acreção de planetesimais. Estes, essencialmente constituídos por gelo e poeira, são atraídos pela gravidade de um núcleo rochoso.