Desvendando o passado violento da Via Láctea

2013-03-07

Ilustração do buraco negro de uma galáxia satélite a ser capturado pelo buraco negro de grande massa no centro da Via Láctea. Crédito: Julie Turner, da Universidade Vanderbilt
Nos nossos dias, o núcleo da Via Láctea
Via Láctea
A Via Láctea é a galáxia de que faz parte o nosso Sistema Solar. Trata-se de uma galáxia espiral gigante, com um diâmetro de cerca de 160 mil anos-luz e uma massa da ordem de 100 mil milhões de vezes a massa do Sol.
é, em termos cósmicos, um lugar bastante inofensivo. O buraco negro
buraco negro
Um buraco negro é um objecto cuja gravidade é tão forte que a sua velocidade de escape é superior à velocidade da luz. Em Astronomia, distinguem-se dois tipos de buraco negro: os buracos negros estelares, que resultam da morte de uma estrela de massa elevada, e os buracos negros galácticos, que existem no centro das galáxias activas.
existente no centro é um gigante adormecido. As estrelas
estrela
Uma estrela é um objecto celeste gasoso que gera energia no seu núcleo através de reacções de fusão nuclear. Para que tal possa suceder, é necessário que o objecto possua uma massa superior a 8% da massa do Sol. Existem vários tipos de estrelas, de acordo com as suas temperaturas efectivas, cores, idades e composição química.
orbitam pacificamente. Ainda que as condições sejam favoráveis, parece não haver muita formação de novas estrelas. Mas crescem as evidências de que, há vários milhões de anos, o centro galáctico foi o local onde ocorreram todos os tipos de fogos de artifício celestes. As professoras assistentes Kelly Holley-Bockelmann, da Universidade Vanderbilt, e Tamara Bogdanovic, do Instituto de Tecnologia da Geórgia, trouxeram-nos uma explicação onde encaixam todas estas pistas.

Na edição de 6 de Março da Monthly Notices da Royal Astronomical Society, as astrónomas descrevem como um evento único - a violenta colisão e fusão
fusão
1- passagem do estado sólido ao líquido, por efeito do calor; 2- junção, união.
entre o buraco negro da Via Láctea e um buraco negro de tamanho intermédio de uma das pequenas "galáxias satélite" circundantes - poderia ter produzido os sinais que apontam no sentido de um passado mais violento para o núcleo galáctico.

"Tamara e eu tínhamos acabado de participar numa conferência de astronomia em Aspen, Colorado, onde novas observações foram anunciadas", disse Holley-Bockelmann. "Decorria o mês de Janeiro de 2010 e uma tempestade de neve fechou o aeroporto. Decidimos alugar um carro para irmos até Denver. Guiando através da tempestade, reunimos elementos da conferência e chegámos à conclusão de que um único evento catastrófico - a colisão entre dois buracos negros há cerca de 10 milhões de anos - poderia explicar todas as novas evidências."

As mais dramáticas destas extraordinárias pistas são as gigantescas bolhas de Fermi - radiação
radiação electromagnética
A radiação electromagnética, ou luz, pode ser considerada como composta por partículas (os fotões) ou ondas. As suas propriedades dependem do comprimento de onda: ondas ou fotões com comprimentos de onda mais longos traduzem radiação menos energética. A radiação electromagnética, ou luz, é usualmente descrita como um conjunto de bandas de radiação, como por exemplo o infravermelho, o rádio ou os raios-X.
de alta energia causada por partículas que se deslocam quase à velocidade da luz
velocidade da luz
A velocidade da luz é a rapidez com que se propagam as ondas luminosas (ou radiação electromagnética). No vácuo, é igual a 299 790 km/s, sendo independente do referencial considerado.
- que se estendem por cerca de 30 mil anos-luz
ano-luz (al)
O ano-luz (al) é uma unidade de distância igual a 9,467305 x 1012 km, que corresponde à distância percorrida pela luz, no vácuo, durante um ano.
acima e abaixo do centro da Via Láctea. Se brilhassem em luz visível
radiação visível
A radiação visível é a região do espectro electromagnético que os nossos olhos detectam, compreendida entre os comprimentos de onda de 350 e 700 nm (frequências entre 4,3 e 7,5x1014Hz). Os nossos olhos distinguem luz visível de frequências diferentes, desde a luz violeta (radiação com comprimentos de onda ~ 400 nm), até à luz vermelha (com comprimentos de onda ~ 700 nm), passando pelo azul, anil, verde, amarelo e laranja.
, preencheriam cerca de metade do céu nocturno, mas irradiam luz de raios-X
raios-X
A radiação X é a radiação electromagnética cujo comprimento de onda está compreendido entre o ultravioleta e os raios gama, ou seja, pertence ao intervalo de aproximadamente 0,1 Å a 100 Å. Descobertos em 1895, os raios-X tambêm são, por vezes, chamados de raios de Röntgen em homenagem ao seu descobridor. A radiação X é altamente penetrante, o que a torna muito útil, por exemplo, para obter radiografias.
e de raios gama
raios gama
Os raios gama são a componente mais energética e mais penetrante de toda a radiação electromagnética. Os fotões gama possuem energias elevadíssimas, tipicamente superiores a 10 keV, às quais correspondem comprimentos de onda inferiores a umas décimas do Ångstrom. Este tipo de radiação é, por exemplo, emitido espontaneamente por núcleos atómicos de algumas substâncias radioactivas.
, por isso, é necessária a observação nesses comprimentos de onda
comprimento de onda
Designa-se por comprimento de onda a distância entre dois pontos sucessivos de amplitude máxima (ou mínima) de uma onda.
para serem vistas. A descoberta foi relatada por astrónomos do Centro Harvard-Smithsonian de Astrofísica.

Outra característica intrigante do GC (abreviatura dos astrónomos para o centro galáctico - galactic centre) é o facto de ele conter os três enxames de maior massa
massa
A massa é uma medida da quantidade de matéria de um dado corpo.
de estrelas jovens de toda a Galáxia. Os enxames Central, Arches e Quintuplet contêm cada um centenas de estrelas jovens e quentes que são muito maiores que o Sol
Sol
O Sol é a estrela nossa vizinha, que se encontra no centro do Sistema Solar. Trata-se de uma estrela anã adulta (dita da sequência principal) de classe espectral G. A temperatura na sua superfície é aproximadamente 5800 graus centígrados e o seu raio atinge os 700 mil quilómetros.
. Estas estrelas normalmente ardem em apenas alguns milhões de anos devido ao seu brilho
brilho
O brilho de um astro refere-se à quantidade de luz que dele provém, ou seja, a quantidade de energia por ele emitida por unidade de área por unidade de tempo. Dado que o brilho observado, ou medido, depende da distância ao objecto, distingue-se o brilho aparente (quando medido a uma determinada distância), do brilho intrínseco (conceptualmente medido na supefície do próprio astro).
extremo, por isso teve de haver uma explosão relativamente recente de formação estelar no GC.

O buraco negro de grande massa que domina o centro da Via Láctea pesa cerca de 4 milhões de massas solares
massa solar
Massa solar é a quantidade de massa existente no Sol e, simultaneamente, a unidade na qual os astrónomos exprimem as massas das estrelas, nebulosas e galáxias. Uma massa solar é igual a 1,989x1030 kg.
e tem cerca de 40 segundos-luz de diâmetro: apenas 9 vezes o tamanho do Sol. Tal objecto produz intensas marés gravitacionais. Sendo assim, os astrónomos ficaram surpreendidos ao descobrir uma série de aglomerados de novas estrelas brilhantes a uma distância inferior a 3 anos-luz do buraco negro. Não seria tão surpreendente se as estrelas estivessem a ser arrastadas para o buraco negro, mas elas mostram todos os sinais de se terem formado no local. Para isto ter acontecido, as nuvens de poeira e gás a partir das quais elas se formaram devem ter sido excepcionalmente densas: 10 mil vezes mais densas que as outras nuvens moleculares
nuvem molecular
As nuvens moleculares são nebulosas constituídas predominantemente por hidrogénio molecular.
no GC.

Embora haja um excedente de jovens estrelas quentes no núcleo galáctico, existe também uma surpreendente falta de estrelas mais velhas; e os modelos teóricos prevêem que a densidade
densidade
Em Astrofísica, densidade é o mesmo que massa volúmica: é a massa por unidade de volume.
de estrelas velhas deve aumentar à medida que nos aproximamos do buraco negro.

Quando chegou a casa depois da conferência, Holley-Bockelmann recrutou Meagan Lang, estudante da Vanderbilt, para trabalhar também no problema. Com o auxílio de Pau Amaro-Seoane, do Instituto Max Planck de Física Gravitacional, na Alemanha, de Alberto Sesana, do Institut de Ciències de l'Espai, em Espanha, e do Professor Assistente Manodeep Sinha, da Vanderbilt, desenvolveram um modelo teórico que se encaixa nas observações e faz algumas previsões que poderão ser testadas.

Tudo terá começado há cerca de 13 mil milhões de anos, quando a rota de uma das mais pequenas galáxias
galáxia
Um vasto conjunto de estrelas, nebulosas, gás e poeira interestelar gravitacionalmente ligados. As galáxias classificam-se em três categorias principais: espirais, elípticas e irregulares.
satélite orbitando a Via Láctea foi desviada de forma a deslocar-se em direcção ao núcleo galáctico. De acordo com um estudo recente, isto pode ter acontecido dezenas de vezes durante a vida da Via Láctea. À medida que a galáxia satélite – um conjunto de estrelas e de gás com um buraco negro de tamanho intermédio e com massa equivalente a cerca de 10 mil sóis – se moveu em espiral para o interior, a maior parte da sua massa foi sendo extraída gradualmente, deixando no fim o buraco negro e um punhado de estrelas gravitacionalmente ligadas.

Há cerca de 10 milhões de anos, o núcleo despojado da galáxia satélite finalmente chegou ao centro da Via Láctea. Quando dois buracos negros se fundem, primeiro descrevem uma dança elaborada. Assim, o buraco negro menor terá girado em torno do buraco negro da Galáxia durante vários milhões de anos até ser finalmente consumido.

Enquanto o buraco negro menor foi girando, cada vez mais perto, agitou a poeira e o gás nas proximidades e empurrou material suficiente para o buraco negro da Galáxia, no processo que deu origem às bolhas de Fermi. As ondas gravitacionais violentas geradas pelo processo podem facilmente ter comprimido as nuvens moleculares no núcleo, até atingirem as elevadas densidades necessárias para produzir as estrelas jovens que, agora, estão localizadas à porta do buraco negro central.

Além disso, a agitação vigorosa terá varrido as estrelas que existiam na área circundante ao buraco negro central de grande massa. De facto, o modelo dos astrónomos prevê que a dança de fusão dos buracos negros deverá ter lançado para longe, através da Galáxia e a enormes velocidades, uma grande quantidade das estrelas velhas, o que explica a ausência destas imediatamente em torno do buraco negro.

"A força gravitacional do buraco negro da galáxia satélite poderá ter arrancado cerca de mil estrelas do centro galáctico", apontou Bogdanovic. "Essas estrelas devem andar ainda a viajar pelo espaço, a cerca de 10 mil anos-luz de distância das suas órbitas
órbita
A órbita de um corpo em movimento é a trajectória que o corpo percorre no espaço.
originais."

Deve ser possível detectar estas estrelas através do Sloan Digital Sky Survey
Sloan Digital Sky Survey (SDSS)
O levantamento do céu SDSS é um projecto que tem por objectivo mapear detalhadamente um quarto de todo o céu, determinando posições e magnitudes absolutas de 100 milhões de objectos celestes, e determinando ainda a distância a mais de 1 milhão de galáxias e quasares. Os telescópios que participam neste projecto estão situados no Observatório de Apache Point (EUA). O SDSS é um projecto conjunto de instituições norte-americanas, alemãs e japonesas.
, porque estarão a viajar a velocidades muito mais elevadas do que as estrelas que não foram submetidas a este tipo de interacção. Como tal, a descoberta de um grande número de estrelas “fugindo” a alta velocidade do centro da Galáxia viria apoiar fortemente todo o cenário proposto.

Fonte da notícia: http://www.ras.org.uk/news-and-press/224-news-2013/2227-csi-milky-way