Qual a idade da Via Láctea?

2004-08-20

Reprodução de uma pequena região dos espectros obtidos com o espectrómetro UVES. A228 e A2111 pertencem ao enxame globular NGC 6397 e a estrela HD 218502 é uma estrela de campo vizinha. O sinal-ruído (S/N) está indicado para cada espectro. A linha ponteada a vermelho indica o espectro sintético que melhor se ajusta a cada espectro real. No espectro de A2111, a linha a tracejado azul ilustra a precisão do ajuste: corresponde à variação da abundância de berílio de aproximadamente 50% (0,2 dex). Crédito: ESO.
Compreender a formação e evolução da Via Láctea
Via Láctea
A Via Láctea é a galáxia de que faz parte o nosso Sistema Solar. Trata-se de uma galáxia espiral gigante, com um diâmetro de cerca de 160 mil anos-luz e uma massa da ordem de 100 mil milhões de vezes a massa do Sol.
é crucial para o nosso entendimento do Universo. Para o estudo da história da nossa Galáxia, é essencial observar estrelas
estrela
Uma estrela é um objecto celeste gasoso que gera energia no seu núcleo através de reacções de fusão nuclear. Para que tal possa suceder, é necessário que o objecto possua uma massa superior a 8% da massa do Sol. Existem vários tipos de estrelas, de acordo com as suas temperaturas efectivas, cores, idades e composição química.
velhas e remotas, o que é extremamente difícil, mesmo com os telescópios mais potentes, pois trata-se de objectos de brilho
brilho
O brilho de um astro refere-se à quantidade de luz que dele provém, ou seja, a quantidade de energia por ele emitida por unidade de área por unidade de tempo. Dado que o brilho observado, ou medido, depende da distância ao objecto, distingue-se o brilho aparente (quando medido a uma determinada distância), do brilho intrínseco (conceptualmente medido na supefície do próprio astro).
muito fraco.

A astrofísica moderna é capaz de medir a idade de certas estrelas. Toma-se como o nascimento da estrela a altura em que esta se forma através da condensação, numa nuvem interstelar de gás e poeira. Algumas estrelas são muito jovens em termos astronómicos, com apenas alguns milhões de anos - por exemplo, as estrelas na nebulosa
nebulosa
Uma nebulosa é uma nuvem de gás e poeira interestelares.
de Orionte. O Sol
Sol
O Sol é a estrela nossa vizinha, que se encontra no centro do Sistema Solar. Trata-se de uma estrela anã adulta (dita da sequência principal) de classe espectral G. A temperatura na sua superfície é aproximadamente 5800 graus centígrados e o seu raio atinge os 700 mil quilómetros.
e o seu sistema planetário formaram-se há cerca de 4560 milhões de anos.

Algumas das estrelas mais velhas na nossa Galáxia encontram-se em enxames globulares. As estrelas que pertencem a um enxame globular nasceram todas ao mesmo tempo, a partir da mesma nuvem. Como estrelas de massa
massa
A massa é uma medida da quantidade de matéria de um dado corpo.
diferente evoluem em ritmos diferentes, é possível medir a idade dos enxames globulares com alguma precisão. Os enxames mais velhos da nossa Galáxia têm mais de 13000 milhões de anos!

Mesmo assim, as estrelas destes enxames não foram as primeiras estrelas a formarem-se na Via Láctea. Sabemos isso porque contêm pequenas quantidades de certos elementos químicos
elemento químico
Elemento composto por um único tipo de átomos. Os elementos químicos constituem a Tabela Periódica.
que tiveram de ser sintetizados numa geração de estrelas anterior. Essa geração anterior é constituída por estrelas de massa muito elevada, que evoluíram muito rapidamente e explodiram como supernovas
supernova
Uma supernova é a explosão de uma estrela no final da sua vida. As explosões de supernova são de tal forma violentas e luminosas que o seu brilho pode ultrapassar o brilho de uma galáxia inteira. Existem dois tipos principais de supernova: as supernovas Tipo Ia, que resultam da explosão duma estrela anã branca que, no seio de um sistema binário, rouba matéria da estrela companheira até a sua massa atingir o limite de Chandrasekhar e então colapsa; e as supernovas Tipo II, que resultam da explosão de uma estrela isolada de massa elevada (com massa superior a cerca de 4 vezes a massa do Sol) que esgotou o seu combustível nuclear e expeliu as suas camadas externas, restando apenas um objecto compacto (uma estrela de neutrões ou um buraco negro).
, lançando para o espaço os elementos químicos que formaram no seu interior. Apesar de procuras intensivas, não se encontrou, até agora, estrelas de pequena massa pertencentes a essa primeira geração (só estrelas de pequena massa sobreviveriam até hoje).

Um método para determinar a idade da nossa Galáxia é medir o intervalo de tempo entre a formação das primeiras estrelas na Via Láctea (das quais a maioria rapidamente explodiu como supernovas) e o momento em que as estrelas nos enxames globulares mais velhos se formaram. O elemento mágico para esta medição é o berílio!

O berílio é um dos elementos químicos mais leves - o núcleo do seu isótopo
isótopo
Chamam-se isótopos aos átomos cujos núcleos têm o mesmo número de protões (por isso, são o mesmo elemento químico), mas têm um número diferente de neutrões. O número atómico dos isótopos é igual, mas o número de massa é diferente.
mais comum e mais estável, o berílio-9, consiste em quatro protões
protão
Partícula que, juntamente com o neutrão, constitui os núcleos atómicos. Todos os átomos têm pelo menos um protão e é o número de protões que determina o elemento químico do átomo. Os protões têm carga eléctrica positiva. Os protões são formados por três quarks (dois u e um d), são bariões (e hadrões), e o seu spin é um número semi-inteiro.
e cinco neutrões
neutrão
Partícula que, juntamente com o protão, constitui os núcleos atómicos. Exceptuando o hidrogénio, todos os átomos têm neutrões, e é o número de neutrões que determina o isótopo de determinado elemento químico. Os neutrões têm carga eléctrica neutra. Os neutrões são formados por três quarks (dois "d" e um "u"), são bariões (e hadrões) e o seu spin é um número semi-inteiro. Os neutrões livres declinam por decaímento beta, com um tempo de semi-vida de 10,8 minutos, originando um protão, um electrão e um neutrino. No núcleo atómico, o neutrão é tão estável quanto o protão.
. Só o hidrogénio, o hélio e o lítio são mais leves do que o berílio. Mas enquanto que esses três elementos químicos foram produzidos durante o Big Bang e a maioria dos elementos químicos mais pesados são produzidos no interior das estrelas, o berílio pode ser produzido por cosmic spallation. A cosmic spallation consiste na fragmentação de núcleos de átomos
átomo
O átomo é a menor partícula de um dado elemento que tem as propriedades químicas que caracterizam esse mesmo elemento. Os átomos são formados por electrões à volta de um núcleo constituído por protões e neutrões.
pesados que se movem a grandes velocidades, quando colidem com núcleos leves; na maioria das vezes, são núcleos pesados que tiveram origem em explosões de supernovas (chamados raios cósmicos galácticos) que colidem com o hidrogénio e o núcleo do hélio no meio interstelar
meio interestelar
O meio interestelar é constituído por toda a matéria existente no espaço entre as estrelas. Cerca de 99% da matéria interestelar é composta por gás, sendo os restantes 1% dominados pela poeira. A massa total do gás e da poeira do meio interestelar é cerca de 15% da massa total da matéria observável da nossa galáxia, a Via Láctea. A matéria do meio interestelar existe em diferentes regimes de densidade e temperatura, como por exemplo as nuvens moleculares (frias e densas) ou o gás ionizado (quente e ténue).
.

A maior parte das estrelas da primeira geração explodiu como supernovas, dando origem a raios cósmicos galácticos que atravessaram a Via Láctea jovem, produzindo berílio uniformemente na Galáxia. A quantidade de berílio aumentou com o tempo, o que permite utilizá-lo como um relógio cósmico.

Se medirmos o berílio da atmosfera
atmosfera
1- Camada gasosa que envolva um planeta ou uma estrela. No caso das estrelas, entende-se por atmosfera as suas camadas mais exteriores. 2- A atmosfera (atm) é uma unidade de pressão equivalente a 101 325 Pa.
das estrelas dos enxames globulares mais velhos que conhecemos, podemos ter uma ideia do tempo que passou entre as explosões de supernova da primeira geração de estrelas e a formação dos enxames globulares.

Os fundamentos teóricos deste método de datação foram desenvolvidos durante as últimas três décadas, só faltando mesmo medir a quantidade de berílio num enxame globular. O grande problema reside no facto que o berílio é destruído a temperaturas acima de alguns milhões de graus. Quando a estrela evolve para a fase de estrela gigante
estrela gigante
Uma estrela gigante é uma estrela que terminou o processo de fusão de hidrogénio no seu núcleo e, por isso, arrefeceu e expandiu-se. As estrelas gigantes são o estado evoluído das estrelas anãs. Terminada a fusão de hidrogénio em hélio no núcleo, pode ocorrer um dos seguintes processos, ou os dois: a fusão de hidrogénio em hélio numa camada à volta do núcleo, ou a fusão de hélio em carbono e oxigénio no núcleo. As estrelas gigantes são muito luminosas: num diagrama Hertzsprung-Russell, o ramo das estrelas gigantes é mais luminoso do que a sequência principal. Exemplo de estrelas gigantes próximas de nós: Aldebarã, Arturus e Capela.
, os movimentos de convecção na sua atmosfera levam a que o berílio seja destruído em quantidades significativas. Para utilizar o berílio como relógio, torna-se necessário medir a quantidade deste elemento químico em estrelas de menos massa, menos evoluídas no enxame globular, e por isso mesmo, menos brilhantes.

Existem três problemas a superar. Primeiro, o facto das estrelas que nos interessam terem brilho fraco. Segundo, só se encontram duas riscas espectrais
risca espectral
Uma risca espectral pode ser uma risca brilhante - risca de emissão - ou uma risca escura - risca de absorção - num espectro de luz. A emissão de radiação (no caso da risca de emissão), ou a absorção de radiação (no caso da risca de absorção), num determinado comprimento de onda, é causada por uma transição atómica ou molecular. O estudo das riscas espectrais permite caracterizar a composição química e as condições físicas do meio que as produz.
de berílio no espectro das estrelas e como as estrelas mais velhas contêm pouco berílio, as riscas são muito fracas. E por último, as duas riscas de berílio situam-se perto dos 313 nm
nanómetro (nm)
O nanómetro (nm) é uma unidade de comprimento igual a um milionésimo do milímetro: 1nm = 10-6mm = 10-9m.
, ou seja, na região do ultravioleta
ultravioleta
O ultravioleta á a banda do espectro electromagnético que cobre a gama de comprimentos de onda entre os 91,2 e os 350 nanómetros. Esta radiação é largamente bloqueada pela atmosfera terrestre.
, que é uma região fortemente afectada pela absorção
absorção de radiação
A absorção de radiação é um decréscimo da intensidade da radiação devido à energia dispendida na excitação ou ionização de átomos e moléculas do meio que atravessa.
da atmosfera terrestre
atmosfera terrestre
A atmosfera terrestre é composta por um conjunto de camadas gasosas que envolvem a Terra. Estas camadas são designadas por Troposfera (da superfície da Terra até cerca de 10 km de altitude), Estratosfera (10 - 50 km), Mesosfera (50 - 100 km), Termosfera (100 - 400 km) e Exosfera (acima dos 400 km).
– abaixo dos 300 nm, não se observa a partir da Terra.

Uma equipa de astrónomos do ESO
European Southern Observatory (ESO)
O Observatório Europeu do Sul é uma organização europeia de Astronomia para o estudo do céu austral fundada em 1962. Conta actualmente com a participação de 10 países europeus e ainda do Chile. Portugal tornou-se membro do ESO em 1 de Janeiro de 2001, no seguimento de um acordo de cooperação que durou cerca de 10 anos.
em colaboração com astrónomos italianos utilizou o o espectrómetro
espectrómetro
O espectrómetro é um instrumento cuja função é medir os comprimentos de onda de um determinado espectro de luz, permitindo identificar as espécies químicas responsáveis pelas riscas existentes nesse espectro.
UVES, acoplado ao telescópio Kuyen (um dos quatro telescópios de 8,2 m que constituem o VLT
Very Large Telescope (VLT)
O Very Large Telescope é um observatório operado pelo Observatório Europeu do Sul (ESO) e localizado no Cerro Paranal, no deserto de Atacama, no Chile. O VLT é composto por 4 telescópios de 8,2 m de diâmetro que podem trabalhar simultaneamente, constituindo um interferómetro óptico, ou independentemente.
, no Observatório do Paranal), para obter espectros de duas estrelas, A0228 e A2111. Estas estrelas pertencem ao enxame globular NGC 6397, que se encontra a 7200 anos-luz
ano-luz (al)
O ano-luz (al) é uma unidade de distância igual a 9,467305 x 1012 km, que corresponde à distância percorrida pela luz, no vácuo, durante um ano.
, na direcção da constelação
constelação
Designa-se por constelação cada uma das 88 regiões em que se divide a abóbada celeste, por convenção de 1922.
austral da Altar, e é um dos enxames globulares mais próximos.

Os espectros obtidos mostram as riscas espectrais de berílio ionizado
ionização
Processo pelo qual um átomo (ou molécula) electricamente neutro ganha ou perde um ou mais electrões, transformando-se num ião.
(Be II). Para determinar a abundância de berílio responsável por estas riscas, vários espectros sintéticos (espectros teóricos) foram calculados para diferentes abundâncias químicas
abundância química
A abundância química de um determinado elemento químico é o número relativo de átomos ou isótopos desse elemento num objecto ou estrutura.
de berílio. A comparação com os espectros reais mostrou que a abundância de berílio destas estrelas é cerca de um átomo de berílio por 2 224 000 000 000 átomos de hidrogénio (log(Be/H)=-12,35±0,2).

Também foi observada uma estrela de campo (estrela que não pertence a nenhum aglomerado), HD 218052, na mesma direcção. A sua abundância de berílio é muito semelhante à das estrelas de NGC 6397, indicando que provavelmente esta estrela nasceu na mesma altura que o enxame globular.

Cálculos teóricos determinaram então que a abundância de berílio medida nestas estrelas indica que o berílio se acumulou durante 200 a 300 milhões de anos antes destas estrelas se formarem. A idade da Via Láctea tem de ser muito maior do que a do enxame globular, ou seja, a nossa galáxia
galáxia
Um vasto conjunto de estrelas, nebulosas, gás e poeira interestelar gravitacionalmente ligados. As galáxias classificam-se em três categorias principais: espirais, elípticas e irregulares.
tem de ter 13600±800 milhões de anos. É a primeira vez que se determina, de forma independente, este valor fundamental.

Tendo em conta as incertezas, este número também está de acordo com a actual estimativa da idade do Universo – 13700 milhões de anos. Assim sendo, a primeira geração de estrelas da Via Láctea formou-se logo que a Idade das Trevas terminou (actualmente, pensa-se que terá sido cerca de 200 milhões de anos depois do Big Bang). Ou seja, o sistema no qual vivemos pode ser um dos membros fundadores da população de galáxias do Universo!

Fonte da notícia: http://www.eso.org/outreach/press-rel/pr-2004/pr-20-04.html