As galáxias mais distantes: observações a partir da Terra

2004-03-11

Em cima: imagens do centro do enxame de galáxias Abell 1835, obtidas pelo ISAAC; o círculo branco indica a localização da galáxia Abell 1835 IR1916. No meio: imagens da galáxia remota a diferentes comprimentos de onda; a primeira foi obtida na banda R (óptico) pelo Hubble e a galáxia não aparece; seguem-se imagens nas bandas J, H e K, obtidas pelo ISAAC, onde a galáxia já é detectada. Em baixo: espectros da galáxia Abell 1835 IR1916 na região próxima da risca de emissão a 1,33745µm. Se se tratar de facto da risca Lyα (0,1216µm), então a galáxia tem um desvio para o vermelho de 10. A risca foi observada em dois espectros independentes (à esquerda e à direita) correspondentes a duas montagens diferentes do espectrógrafo. Crédito: ESO.
Em apenas um mês, o recorde da galáxia
galáxia
Um vasto conjunto de estrelas, nebulosas, gás e poeira interestelar gravitacionalmente ligados. As galáxias classificam-se em três categorias principais: espirais, elípticas e irregulares.
mais distante que se conhece foi batido sucessivamente. A 1 de Março, o ESO
European Southern Observatory (ESO)
O Observatório Europeu do Sul é uma organização europeia de Astronomia para o estudo do céu austral fundada em 1962. Conta actualmente com a participação de 10 países europeus e ainda do Chile. Portugal tornou-se membro do ESO em 1 de Janeiro de 2001, no seguimento de um acordo de cooperação que durou cerca de 10 anos.
noticiou que uma equipa de astrónomos franceses e suíços utilizou um dos telescópios de 8,2 m do VLT
Very Large Telescope (VLT)
O Very Large Telescope é um observatório operado pelo Observatório Europeu do Sul (ESO) e localizado no Cerro Paranal, no deserto de Atacama, no Chile. O VLT é composto por 4 telescópios de 8,2 m de diâmetro que podem trabalhar simultaneamente, constituindo um interferómetro óptico, ou independentemente.
com a câmara de infravermelhos
infravermelho
Região do espectro electromagnético compreendida entre os comprimentos de onda de 0,7 e 350 mícrones. Esta banda permite observar astros, fenómenos, ou processos físicos com temperaturas entre 10 e 5200 graus Kelvin.
NICMOS e detectou uma galáxia na direcção do enxame de galáxias Abell 1835 com um desvio para o vermelho
desvio para o vermelho (z)
Designa-se por desvio para o vermelho (em inglês, redshift) o desvio do espectro de um objecto para comprimentos de onda mais longos. O desvio para o vermelho pode dever-se ao movimento do objecto a afastar-se do observador (desvio de Doppler), ou à expansão do Universo (desvio para o vermelho cósmico, ou gravitacional). O desvio para o vermelho cósmico permite estimar a distância a que o objecto se encontra: quanto maior o desvio, mais distante o objecto. O desvio de Doppler permite calcular a velocidade a que o objecto se desloca.
de 10, ou seja, a cerca de 13,2 mil milhões de anos-luz
ano-luz (al)
O ano-luz (al) é uma unidade de distância igual a 9,467305 x 1012 km, que corresponde à distância percorrida pela luz, no vácuo, durante um ano.
de nós. Esta galáxia destrona uma outra galáxia que se encontra na direcção do enxame de galáxias
enxame de galáxias
Um enxame, ou aglomerado, de galáxias é um conjunto de galáxias gravitacionalmente ligadas. A Via Láctea pertence ao aglomerado chamado Grupo Local de galáxias. O enxame de galáxias mais próximo de nós é o Enxame da Virgem.
Abell 2218 e que tem um desvio para o vermelho próximo de 7; observada com o Telescópio Espacial Hubble
Hubble Space Telescope (HST)
O Telescópio Espacial Hubble é um telescópio espacial que foi colocado em órbita da Terra em 1990 pela NASA, em colaboração com a ESA. A sua posição acima da atmosfera terrestre permite-lhe observar os objectos astronómicos com uma qualidade ímpar.
e com o Telescópio Keck
W. M. Keck Observatory
O Observatório W. M. Keck é operado pelo Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) e pela NASA, e encontra-se localizado em Mauna Kea, no Havai. O observatório é constituído por dois telescópios gémeos de 10 metros, o Keck I e o Keck II.
, esta galáxia tinha sido anunciada, há menos de um mês, como a galáxia mais distante que se conhece, a 13 mil milhões de anos-luz (ver notícia do dia 29/02/2004).

Em ambos os casos, a detecção destas galáxias com telescópios na Terra só foi possível graças ao efeito de lente gravitacional
efeito de lente gravitacional
O efeito de lente gravitacional consiste na deflexão da luz provocada pelo campo gravitacional muito forte de um objecto que se encontra entre o observador e a fonte de luz. Por exemplo, uma galáxia, ou um enxame de galáxias, que se encontre entre nós e um objecto astronómico muito distante, como um quasar, pode actuar como uma lente gravitacional. Tipicamente, o efeito de lente gravitacional faz com que se observe, numa única fotografia, mais do que uma imagem do mesmo objecto.
produzido pelos enxames de galáxias que se encontram na mesma direcção que as galáxias. Mas o reinado da galáxia descoberta com o VLT, Abell 1835 IR1916, durou pouco, pois agora o Telescópio Espacial Hubble obteve as imagens mais profundas de sempre, onde se podem detectar galáxias com desvios para o vermelho até 12! Mas deixemos a descoberta do Hubble para outra notícia.

A descoberta das galáxias mais distantes é essencial para compreendermos os primórdios do Universo. Pouco tempo depois do Big Bang, há cerca de 13 700 milhões de anos, o Universo mergulhou na escuridão – a radiação
radiação electromagnética
A radiação electromagnética, ou luz, pode ser considerada como composta por partículas (os fotões) ou ondas. As suas propriedades dependem do comprimento de onda: ondas ou fotões com comprimentos de onda mais longos traduzem radiação menos energética. A radiação electromagnética, ou luz, é usualmente descrita como um conjunto de bandas de radiação, como por exemplo o infravermelho, o rádio ou os raios-X.
da bola de fogo primordial tinha sido desviada pela expansão cósmica para comprimentos de onda
comprimento de onda
Designa-se por comprimento de onda a distância entre dois pontos sucessivos de amplitude máxima (ou mínima) de uma onda.
mais longos, e as estrelas
estrela
Uma estrela é um objecto celeste gasoso que gera energia no seu núcleo através de reacções de fusão nuclear. Para que tal possa suceder, é necessário que o objecto possua uma massa superior a 8% da massa do Sol. Existem vários tipos de estrelas, de acordo com as suas temperaturas efectivas, cores, idades e composição química.
ainda não se tinham formado para iluminarem o vasto espaço. O Universo era então frio e opaco - por isso chamamos a essa época a Idade das Trevas. Ao fim de algumas centenas de milhões de anos, a primeira geração de estrelas apareceu, seguindo-se as primeiras galáxias e quasares
quasar
Os quasares são objectos extragalácticos extremamente brilhantes e compactos. Hoje acredita-se que são o centro de galáxias muito energéticas ainda num estado inicial da sua evolução (são, pois, núcleos galácticos activos - NGAs) e a sua energia provém de um buraco negro de massa muito elevada. Os seus desvios para o vermelho indicam que se encontram a distâncias cosmológicas. O seu nome, quasar, vem do inglês quasi-stellar object, ou seja, objecto quase estelar, devido à semelhança da sua imagem em placas fotográficas com a imagem de uma estrela.
, que produziram uma intensa radiação ultravioleta
ultravioleta
O ultravioleta á a banda do espectro electromagnético que cobre a gama de comprimentos de onda entre os 91,2 e os 350 nanómetros. Esta radiação é largamente bloqueada pela atmosfera terrestre.
que foi gradualmente transformando o Universo num lugar transparente. Observar as galáxias mais distantes significa poder estudar as primeiras galáxias que se formaram quando a Idade das Trevas terminou.

A detecção de objectos a distâncias até cerca de 12 mil milhões de anos-luz (desvio para o vermelho de 3) tornou-se comum na última década, com a última geração de telescópios na Terra, que possuem espelhos de 8-10 metros de diâmetro. Ou seja, cerca de 85% da história do Universo tornou-se acessível aos astrónomos.

Objectos mais distantes, e por isso, mais remotos no tempo, são raros – só se conhecem cerca de uma dezena de galáxias com desvios para o vermelho entre 5 e 7, ou seja, que representam o Universo com a tenra idade entre 1200 e 750 milhões de anos depois do Big Bang. O fraco brilho
brilho
O brilho de um astro refere-se à quantidade de luz que dele provém, ou seja, a quantidade de energia por ele emitida por unidade de área por unidade de tempo. Dado que o brilho observado, ou medido, depende da distância ao objecto, distingue-se o brilho aparente (quando medido a uma determinada distância), do brilho intrínseco (conceptualmente medido na supefície do próprio astro).
das fontes mais distantes, aliado ao facto da sua luz ser desviada do óptico para o infravermelho próximo
infravermelho próximo
Região do espectro electromagnético compreendida entre os comprimentos de onda de 0,7 e 5 mícrones. Esta banda permite observar astros ou fenómenos com temperaturas entre 740 e 5200 graus Kelvin.
, tem limitado o estudo de objectos mais longínquos.

Agora, o VLT, equipado com o instrumento de infravermelho próximo ISAAC, conseguiu alcançar uma galáxia com um desvio para o vermelho de 10, aproveitando o efeito de lente gravitacional provocado pelo enxame de galáxias que se encontra na mesma direcção. A galáxia é ampliada em cerca de 25 a 100 vezes devido ao efeito de lente gravitacional. Em primeiro lugar, foram obtidas imagens profundas do enxame de galáxias Abell 1835 a diferentes comprimentos de onda no infravermelho próximo, que permitiram aos astrónomos caracterizar as propriedades de alguns milhares de galáxias e seleccionar algumas que eram potencialmente muito distantes. Utilizando imagens obtidas previamente com o Telescópio CFHT
Canada-France-Hawaii Telescope (CFHT)
O Telescópio Canadá-França-Havai é um telescópio de 3,6 m de diâmetro situado no Observatório de Mauna Kea, no Havai (EUA), operacional desde 1977. A instrumentação deste telescópio inclui, entre outros, a MegaPrime, uma câmara de campo largo e de alta resolução composta por um conjunto de 36 CCDs acoplados num só instrumento.
e imagens do Hubble, verificaram que estas galáxias não apareciam em comprimentos de onda do óptico. Ficaram assim com seis candidatas a galáxias de elevado desvio para o vermelho, cuja luz pode ter sido emitida quando o Universo tinha menos de 700 milhões de anos!

Para confirmar e obter uma determinação mais precisa da distância de uma destas galáxias, os astrónomos voltaram a observar com o instrumento ISAAC no telescópio VLT, mas agora no modo de espectroscopia. Após meses de análise dos dados, os astrónomos detectaram um fraca, mas nítida, risca espectral
risca espectral
Uma risca espectral pode ser uma risca brilhante - risca de emissão - ou uma risca escura - risca de absorção - num espectro de luz. A emissão de radiação (no caso da risca de emissão), ou a absorção de radiação (no caso da risca de absorção), num determinado comprimento de onda, é causada por uma transição atómica ou molecular. O estudo das riscas espectrais permite caracterizar a composição química e as condições físicas do meio que as produz.
no domínio do infravermelho próximo e reuniram fortes argumentos de que se trata da risca de emissão
risca de emissão
Uma risca de emissão é uma risca brilhante num espectro de luz. Corresponde à emissão de radiação num determinado comprimento de onda devido à transição de um electrão de um nível energético mais elevado para um nível energético mais baixo de um átomo ou molécula. As riscas de emissão, tal como as de absorção, contêm informação sobre a composição química e as condições físicas do material que as produzem.
de Lyman-alfa (Lyα), típica destes objectos distantes. A risca, que ocorre no laboratório a 0,1216 mícrones
mícron (µm)
O mícron (µm), ou micrómetro, é uma unidade de comprimento que corresponde à milésima parte do milímetro: 1µm = 10-3mm = 10-6 m.
, ou seja, no ultravioleta, foi desviada para o infravermelho próximo, até 1,34 mícrones, fazendo com que Abell 1835 IR1916 seja a primeira galáxia descoberta com um desvio para o vermelho de 10! É um salto gigantesco do recorde prévio, que se ficava por um desvio para o vermelho de cerca de 7.

Fonte da notícia: http://www.eso.org/outreach/press-rel/pr-2004/pr-04-04.html