As maiores explosões cósmicas podem gerar os objectos mais velozes do Universo

2003-09-23

Estas imagens foram criadas por uma simulação em computador dos jactos de matéria expelidos por um buraco negro criado pelo colapso de uma estrela de massa elevada. Estes jactos podem acelerar partículas ao ponto de se tornarem UHECRs. A imagem de cima mostra o início de uma fulguração de raios gama e vemos o jacto 9 segundos após ter sido criado por um buraco negro no centro da estrela em colapso. A azul vemos as regiões de menor concentração de massa, a vermelho as regiões mais densas e a amarelo as regiões ainda mais densas. As estrias a azul e vermelho na cabeça do jacto são criadas pelos choques internos. Na imagem de baixo vemos a distribuição de partículas relativistas (que se deslocam quase à velocidade da luz) no jacto quando este acabou de atravessar a estrela em colapso. As energias mais elevadas correspondem ao amarelo e laranja, e darão origem à fulguração de raios gama, só observável na direcção do jacto (± 5 graus). Crédito: Weiqun Zhang & Stan Woosley.
Os raios cósmicos ultra-energéticos, conhecidos por UHECR (do inglês UltraHigh-Energy Cosmic Ray), são as partículas mais energéticas do Universo. Um estudo recente, liderado por M. Gonzalez (Laboratório Nacional de Los Alamos, EUA) e publicado na revista científica Nature, sugere que as fulgurações de raios gama
fulguração de raios gama
Uma fulguração de raios gama é uma potentíssima explosão, com consequente libertação de fotões gama, que ocorre em direcções aleatórias no céu. Descobertas acidentalmente nos anos 1960, sabe-se que algumas delas estão associadas a um tipo particular de supernovas, as explosões que marcam o fim da vida de uma estrela de massa elevada.
, as explosões mais potentes do Universo, podem gerar os UHECRs. Só recentemente se começou a compreender as fulgurações
fulguração
Uma fulguração é uma libertação de energia de forma explosiva da qual resulta um aumento rápido do brilho do astro no qual ocorre. São exemplo deste tipo de fenómenos as fulgurações solares, associadas às manchas solares, bem como as fulgurações de raios-X, que ocorrem em estrelas de neutrões, e de raios gama, que se sabe estarem relacionadas com as explosões de supernova.
de raios gama
raios gama
Os raios gama são a componente mais energética e mais penetrante de toda a radiação electromagnética. Os fotões gama possuem energias elevadíssimas, tipicamente superiores a 10 keV, às quais correspondem comprimentos de onda inferiores a umas décimas do Ångstrom. Este tipo de radiação é, por exemplo, emitido espontaneamente por núcleos atómicos de algumas substâncias radioactivas.
e pensa-se que muitas têm origem em explosões, invulgarmente potentes, de estrelas
estrela
Uma estrela é um objecto celeste gasoso que gera energia no seu núcleo através de reacções de fusão nuclear. Para que tal possa suceder, é necessário que o objecto possua uma massa superior a 8% da massa do Sol. Existem vários tipos de estrelas, de acordo com as suas temperaturas efectivas, cores, idades e composição química.
. Embora frequentes, as fulgurações de raios gama são imprevisíveis e muito rápidas, durando apenas alguns segundos, o que dificulta o seu estudo.

Os raios cósmicos são partículas atómicas (por exemplo electrões
electrão
Partícula elementar pertencente à família dos leptões - partículas sujeitas à interacção nuclear fraca, electromagnética e gravitacional. Os electrões possuem carga eléctrica negativa e encontram-se nos átomos de todos os elementos químicos, orbitando à volta do núcleo atómico, que possui carga eléctrica positiva.
, protões
protão
Partícula que, juntamente com o neutrão, constitui os núcleos atómicos. Todos os átomos têm pelo menos um protão e é o número de protões que determina o elemento químico do átomo. Os protões têm carga eléctrica positiva. Os protões são formados por três quarks (dois u e um d), são bariões (e hadrões), e o seu spin é um número semi-inteiro.
ou neutrinos
neutrino (ν)
O neutrino é uma partícula elementar da classe dos leptões. Com carga eléctrica nula e massa quase nula, o neutrino interage muito pouco, estando sujeito apenas à força nuclear fraca e à força gravitacional. O neutrino é um leptão e tem spin semi-inteiro (fermião). Conhecem-se três tipos diferentes de neutrinos: o neutrino do electrão (νe), o neutrino do muão (νμ), e o neutrino do tau (ντ).
) que se deslocam quase à velocidade da luz
velocidade da luz
A velocidade da luz é a rapidez com que se propagam as ondas luminosas (ou radiação electromagnética). No vácuo, é igual a 299 790 km/s, sendo independente do referencial considerado.
. Os raios cósmicos de energia mais baixa, gerados pelas fulgurações solares e por explosões normais de estrelas, bombardeiam a Terra constantemente. Os UHECRs são entre cem a milhões de vezes mais energéticos do que as partículas produzidas nos aceleradores de partículas construídos pelo Homem.

O estudo realizado pela equipa de M. Gonzalez baseia-se na análise da radiação
radiação electromagnética
A radiação electromagnética, ou luz, pode ser considerada como composta por partículas (os fotões) ou ondas. As suas propriedades dependem do comprimento de onda: ondas ou fotões com comprimentos de onda mais longos traduzem radiação menos energética. A radiação electromagnética, ou luz, é usualmente descrita como um conjunto de bandas de radiação, como por exemplo o infravermelho, o rádio ou os raios-X.
emitida por uma fulguração de raios gama. Pesquisando os arquivos do Observatório de Raios Gama Compton
Compton Gamma Ray Observatory (CGRO)
O Observatório de Raios Gama Compton foi o segundo dos grandes observatórios espaciais da NASA. Foi colocado em órbita em Abril de 1991 pelo vaivém Atlantis e, com um total de 17 toneladas, foi naquele tempo a maior carga de vocação astrofísica alguma vez colocada no espaço. A sua missão terminou no dia 4 de Junho de 2002, dia em que reentrou na atmosfera terrestre.
, uma missão da NASA
National Aeronautics and Space Administration (NASA)
Entidade norte-americana, fundada em 1958, que gere e executa os programas espaciais dos Estados Unidos da América.
que terminou em 2000, o grupo de investigadores descobriu uma fulguração de raios gama, denominada GRB941017, diferente das outras 2700 fulgurações registadas por este observatório. GRB941017 ocorreu na direcção da constelação
constelação
Designa-se por constelação cada uma das 88 regiões em que se divide a abóbada celeste, por convenção de 1922.
da Seta, provavelmente a 10 mil milhões de anos-luz
ano-luz (al)
O ano-luz (al) é uma unidade de distância igual a 9,467305 x 1012 km, que corresponde à distância percorrida pela luz, no vácuo, durante um ano.
.

A radiação gama abrange um intervalo grande de energia. Os investigadores descobriram que a fulguração GRB941017 era dominada pelos fotões
fotão
O fotão, muitas vezes referido como a partícula de luz, é o quantum do campo electromagnético e é a partícula elementar da radiação electromagnética.
de energia mais elevada, ou seja, que a maior parte da energia da radiação gama desta fulguração era transportada pelos fotões mais energéticos; e que no decorrer da fulguração, o fluxo de fotões de energia mais baixa diminuía mais depressa do que o fluxo de fotões mais energéticos. Acontece que este excesso de fotões de alta energia não é consistente com o modelo de radiação de sincrotrão gerada pela onda de choque
onda de choque
Uma onda de choque é uma variação brusca da pressão, temperatura e densidade de um fluído, que se desenvolve quando a velocidade de deslocação do fluído excede a velocidade de propagação do som.
, que descreve a maioria das fulgurações.

A equipa acredita que, embora possam existir outras explicações para a observação de raios gama de baixa e alta energia em GRB941017, o resultado é consistente com a aceleração
aceleração
A aceleração é a taxa de variação da velocidade de um corpo com o tempo.
de UHECRs em fulgurações de raios gama. Os raios gama de baixa energia são previstos quando electrões a alta velocidade são deflectidos por campos magnéticos
campo magnético
O campo magnético é a região em torno de um corpo na qual é detectada uma força magnética. Os campos magnéticos actuam apenas em partículas electricamente carregadas. Campos magnéticos fracos são por exemplo gerados por efeito de dínamo no interior dos planetas e luas, enquanto que campos magnéticos mil milhões de vezes mais fortes podem ser gerados em estrelas e galáxias. Os campos magnéticos são capazes de controlar o movimento de gás ionizado e até moldar a forma dos corpos por eles actuados.
intensos, enquanto que os raios gama de alta energia são esperados se a fulguração produzir UHECRs e alguns destes colidirem com outros fotões, criando uma cascata de partículas, algumas das quais produzem os raios gama de alta energia quando decaem.

O facto dos raios gama de baixa energia desaparecerem relativamente depressa, enquanto que os de alta energia demoram mais tempo, faz sentido se dois tipos de partículas – os electrões e os protões dos UHECRs – forem responsáveis pelos raios gama de diferentes energias. Como os electrões emitem energia mais facilmente do que os protões, a emissão dos raios gama de baixa energia pelos electrões dura menos tempo do que a emissão de raios gama de alta energia pelos protões.

Os cientistas pensam que os UHECRs têm de ser gerados relativamente perto da Terra, porque se forem produzidos a grandes distâncias colidem com fotões cósmicos deixados pelo Big Bang e perdem parte da sua energia antes de chegarem à Terra. Contudo, não se conhece nenhuma fonte local de raios cósmicos suficientemente potente para gerar UHECRs. Na hipótese das fulgurações de raios gama produzirem UHECRs, há que considerar que embora até agora ainda não tenham sido detectadas fulgurações de raios gama num raio de 100 milhões de anos-luz da Terra, elas certamente ocorreram localmente ao longo da vida da Galáxia
Via Láctea
A Via Láctea é a galáxia de que faz parte o nosso Sistema Solar. Trata-se de uma galáxia espiral gigante, com um diâmetro de cerca de 160 mil anos-luz e uma massa da ordem de 100 mil milhões de vezes a massa do Sol.
. Se assim foi, o mesmo mecanismo que se observa em GRB941017 teria ocorrido nas proximidades da Terra, suficientemente perto para fornecer os UHECRs que detectamos hoje.

Os UHECRs são detectados quando alcançam a nossa atmosfera
atmosfera
1- Camada gasosa que envolva um planeta ou uma estrela. No caso das estrelas, entende-se por atmosfera as suas camadas mais exteriores. 2- A atmosfera (atm) é uma unidade de pressão equivalente a 101 325 Pa.
: a colisão dos UHECRs com partículas da atmosfera terrestre
atmosfera terrestre
A atmosfera terrestre é composta por um conjunto de camadas gasosas que envolvem a Terra. Estas camadas são designadas por Troposfera (da superfície da Terra até cerca de 10 km de altitude), Estratosfera (10 - 50 km), Mesosfera (50 - 100 km), Termosfera (100 - 400 km) e Exosfera (acima dos 400 km).
produz radiação ultravioleta
ultravioleta
O ultravioleta á a banda do espectro electromagnético que cobre a gama de comprimentos de onda entre os 91,2 e os 350 nanómetros. Esta radiação é largamente bloqueada pela atmosfera terrestre.
e uma cascata de milhares de milhões de partículas subatómicas, que são detectados por instrumentos especiais. Com estas detecções, os cientistas conseguem calcular a quantidade de energia que uma partícula precisa de ter para dar origem à cascata de partículas observada. E chegam ao número surpreendente de 1020 eV
electrão-volt (eV)
O electrão-volt (eV) é uma unidade de energia que corresponde à energia adquirida por um electrão quando este é acelerado por uma diferença de potencial de um volt num campo eléctrico. 1 eV = 1,6 x 1012 erg = 1,60217733 x 10-19 J.
, como limite inferior!

Poucos objectos celestes possuem condições extremas necessárias para a produção de partículas com as velocidades dos UHECRs. Pensa-se que pelo menos certas fulgurações de raios gama são produzidas por explosões de supernova
supernova
Uma supernova é a explosão de uma estrela no final da sua vida. As explosões de supernova são de tal forma violentas e luminosas que o seu brilho pode ultrapassar o brilho de uma galáxia inteira. Existem dois tipos principais de supernova: as supernovas Tipo Ia, que resultam da explosão duma estrela anã branca que, no seio de um sistema binário, rouba matéria da estrela companheira até a sua massa atingir o limite de Chandrasekhar e então colapsa; e as supernovas Tipo II, que resultam da explosão de uma estrela isolada de massa elevada (com massa superior a cerca de 4 vezes a massa do Sol) que esgotou o seu combustível nuclear e expeliu as suas camadas externas, restando apenas um objecto compacto (uma estrela de neutrões ou um buraco negro).
que dão origem a buracos negros
buraco negro
Um buraco negro é um objecto cuja gravidade é tão forte que a sua velocidade de escape é superior à velocidade da luz. Em Astronomia, distinguem-se dois tipos de buraco negro: os buracos negros estelares, que resultam da morte de uma estrela de massa elevada, e os buracos negros galácticos, que existem no centro das galáxias activas.
. O colapso da estrela de massa
massa
A massa é uma medida da quantidade de matéria de um dado corpo.
elevada forma um disco de material à volta do recém-formado buraco negro. O buraco negro consome quase toda a matéria do disco, mas parte é ejectada em jactos que saem pelos pólos do buraco negro. Os jactos atravessam a estrela em colapso a uma velocidade próxima da velocidade da luz, alcançando o meio interestelar
meio interestelar
O meio interestelar é constituído por toda a matéria existente no espaço entre as estrelas. Cerca de 99% da matéria interestelar é composta por gás, sendo os restantes 1% dominados pela poeira. A massa total do gás e da poeira do meio interestelar é cerca de 15% da massa total da matéria observável da nossa galáxia, a Via Láctea. A matéria do meio interestelar existe em diferentes regimes de densidade e temperatura, como por exemplo as nuvens moleculares (frias e densas) ou o gás ionizado (quente e ténue).
, onde criam ondas de choque e abrandam. Formam-se choques internos nos jactos à medida que a extremidade dianteira vai abrandando e a matéria que vem atrás a alta velocidade choca com ela. Estes choques aceleram as partículas que dão origem aos raios gama e também podem acelerar partículas às velocidades típicas dos UHECRs. As fulgurações de raios gama têm energia para acelerar UHECRs, mas até agora só se observaram as que ocorreram a milhares de milhões de anos-luz da Terra. Mas isso não quer dizer que não possam ocorrer mais próximo, dentro da distância dos UHECRs.

Fonte da notícia: http://www.gsfc.nasa.gov/topstory/2003/0814cgro_ray.html