Colisões e encontros próximos em enxames globulares

2003-09-01

O centro do enxame globular NGC 6397. Crédito: NASA & the Hubble Heritage Team (AURA/STScI).
NGC 6397 é um dos enxames globulares mais próximos de nós, encontrando-se a 8200 anos-luz
ano-luz (al)
O ano-luz (al) é uma unidade de distância igual a 9,467305 x 1012 km, que corresponde à distância percorrida pela luz, no vácuo, durante um ano.
, na constelação
constelação
Designa-se por constelação cada uma das 88 regiões em que se divide a abóbada celeste, por convenção de 1922.
do Altar. No centro do enxame, as estrelas
estrela
Uma estrela é um objecto celeste gasoso que gera energia no seu núcleo através de reacções de fusão nuclear. Para que tal possa suceder, é necessário que o objecto possua uma massa superior a 8% da massa do Sol. Existem vários tipos de estrelas, de acordo com as suas temperaturas efectivas, cores, idades e composição química.
estão muito próximas umas das outras, pois a densidade
densidade
Em Astrofísica, densidade é o mesmo que massa volúmica: é a massa por unidade de volume.
de estrelas aí é cerca de um milhão de vezes superior à densidade de estrelas na vizinhança do Sol
Sol
O Sol é a estrela nossa vizinha, que se encontra no centro do Sistema Solar. Trata-se de uma estrela anã adulta (dita da sequência principal) de classe espectral G. A temperatura na sua superfície é aproximadamente 5800 graus centígrados e o seu raio atinge os 700 mil quilómetros.
. Note-se que a distância média entre estrelas no centro do enxame globular é da ordem das semanas-luz, enquanto que a estrela mais perto do Sol se encontra a 4,2 anos-luz.

Como as estrelas do enxame estão em constante movimento, a grande proximidade entre elas no centro do enxame eleva em muito a probabilidade de ocorrerem encontros próximos, podendo mesmo colidir por vezes. A probabilidade de colisão é de apenas aproximadamente uma em cada milhão de anos, o que quer dizer que ocorreram alguns milhares de colisões nos 14 mil milhões de anos de vida do enxame.

NGC 6397 foi observado pelo Telescópio Espacial Hubble
Hubble Space Telescope (HST)
O Telescópio Espacial Hubble é um telescópio espacial que foi colocado em órbita da Terra em 1990 pela NASA, em colaboração com a ESA. A sua posição acima da atmosfera terrestre permite-lhe observar os objectos astronómicos com uma qualidade ímpar.
(NASA
National Aeronautics and Space Administration (NASA)
Entidade norte-americana, fundada em 1958, que gere e executa os programas espaciais dos Estados Unidos da América.
/ESA
European Space Agency (ESA)
A Agência Espacial Europeia foi fundada em 1975 e actualmente conta com 15 países membros, incluindo Portugal.
) num projecto de investigação que tem como objectivo estudar as consequências das colisões e dos encontros próximos de estrelas. Quando uma verdadeira colisão ocorre, duas estrelas podem fundir-se e formar uma única estrela, chamada blue straggler. Estas são estrelas azuis, quentes e brilhantes que intrigaram os astrónomos durante muito tempo antes de se saber qual a sua origem, pois distinguem-se das outras estrelas do enxame por parecerem ser mais novas (e num enxame globular supõe-se que todas as estrelas se formaram ao mesmo tempo). Algumas blue stragglers podem ser vistas nesta imagem do Hubble, perto do centro de NGC 6397.

Se duas estrelas tiverem um encontro próximo, sem colidirem, uma pode capturar a outra de modo a ficarem gravitacionalmente ligadas num sistema binário. Um tipo de sistema binário que se pode formar deste modo é o designado por variável cataclísmica. Neste caso, o par é constituído por uma estrela normal, no estágio de queima de hidrogénio
combustão de hidrogénio
Designa-se por combustão, ou queima, de hidrogénio o processo de fusão nuclear no qual núcleos de hidrogénio colidem para formar núcleos de hélio. O termo "combustão" é, neste contexto, um abuso de linguagem introduzido pelos astrónomos profissionais. Todas as estrelas que nascem com massa superior a 0,08 vezes a massa do Sol queimam hidrogénio.
, e por uma estrela que já queimou todo o seu combustível, uma anã branca
anã branca
Uma anã branca, sendo o núcleo exposto de uma gigante vermelha, é uma estrela degenerada muito densa na qual se encontra esgotada qualquer fonte de energia termonuclear. As anãs brancas, que constituem uma fase final da evolução das estrelas de pequena massa, representam cerca de 10 % das estrelas da nossa galáxia, e são por isso muito comuns. O nosso Sol passará um dia pela fase de anã branca, altura em que terá um diâmetro de apenas 10 000 km.
. A anã branca vai roubando material da superfície da estrela normal, acumulando-o num disco de acreção
disco de acreção
Disco composto por gás e poeira interestelares que pode circundar buracos negros, estrelas de neutrões, variáveis cataclísmicas, ou estrelas em formação.
em seu redor, para depois cair na sua superfície. O resultado deste processo de acreção
acreção
Designa-se por acreção a acumulação de matéria (gás e poeira) para um astro central, como por exemplo um buraco negro, uma estrela, uma galáxia, ou um planeta.
é a variabilidade no brilho
brilho
O brilho de um astro refere-se à quantidade de luz que dele provém, ou seja, a quantidade de energia por ele emitida por unidade de área por unidade de tempo. Dado que o brilho observado, ou medido, depende da distância ao objecto, distingue-se o brilho aparente (quando medido a uma determinada distância), do brilho intrínseco (conceptualmente medido na supefície do próprio astro).
deste sistema (e daí o seu nome de variável). A energia criada pelo material que forma o disco de acreção é responsável pela intensa luz azul e ultravioleta
ultravioleta
O ultravioleta á a banda do espectro electromagnético que cobre a gama de comprimentos de onda entre os 91,2 e os 350 nanómetros. Esta radiação é largamente bloqueada pela atmosfera terrestre.
emitida por estas estrelas.

Para procurar variáveis cataclísmicas, a equipa de investigação obteve uma série de 55 imagens de NGC 6397 num período de 20 horas. A maioria das imagens foram obtidas com filtros ultravioleta e azul, e algumas imagens foram obtidas com filtros verde e infravermelho
infravermelho
Região do espectro electromagnético compreendida entre os comprimentos de onda de 0,7 e 350 mícrones. Esta banda permite observar astros, fenómenos, ou processos físicos com temperaturas entre 10 e 5200 graus Kelvin.
. Comparando o brilho de todas as estrelas em todas as imagens, foi possível identificar vários casos de variáveis cataclísmicas no enxame. A comparação do brilho das variáveis cataclísmicas nos diferentes filtros confirmou que estes objectos emitem uma grande quantidade de luz ultravioleta. Na imagem do Hubble podem-se ver algumas destas estrelas, que aparecem pouco brilhantes, de cor azul ou violeta.

Um dos resultados mais intrigantes deste estudo foi completamente inesperado. Foram identificadas três estrelas, pouco brilhantes, no centro do enxame, que podem ser anãs brancas de massa
massa
A massa é uma medida da quantidade de matéria de um dado corpo.
muito pequena. Ter-se-ão formado nos núcleos de estrelas gigantes
estrela gigante
Uma estrela gigante é uma estrela que terminou o processo de fusão de hidrogénio no seu núcleo e, por isso, arrefeceu e expandiu-se. As estrelas gigantes são o estado evoluído das estrelas anãs. Terminada a fusão de hidrogénio em hélio no núcleo, pode ocorrer um dos seguintes processos, ou os dois: a fusão de hidrogénio em hélio numa camada à volta do núcleo, ou a fusão de hélio em carbono e oxigénio no núcleo. As estrelas gigantes são muito luminosas: num diagrama Hertzsprung-Russell, o ramo das estrelas gigantes é mais luminoso do que a sequência principal. Exemplo de estrelas gigantes próximas de nós: Aldebarã, Arturus e Capela.
cuja evolução, por algum motivo, foi interrompida antes que uma anã branca normal tivesse tempo de se formar.

Uma interrupção assim pode ocorrer como resultado de uma colisão estelar ou de uma interacção com um companheiro dum binário. Ao interagir com outra estrela, uma estrela gigante pode perder as camadas exteriores prematuramente, ficando exposto o seu núcleo quente. O resultado será uma anã branca de massa menor do que se não tivesse havido interrupção. Estas estrelas pouco vulgares aparecem no centro do enxame globular, confirmando que a probabilidade de colisão e interacção aí é mais elevada.

Também foram identificadas e estudadas um elevado número de anãs brancas normais. Estas estrelas aparecem em todo o enxame, o que seria de esperar, pois formaram-se através de um processo normal que não envolve interacções estelares e por isso, ao contrário das outras, não se formam preferencialmente no centro do enxame. Quase 100 destas anãs brancas foram identificadas nestas imagens e as mais luminosas podem ver-se aqui como estrelas azuis pouco brilhantes.

Fonte da notícia: http://hubblesite.org/newscenter/archive/2003/21/image/a