A miragem cósmica mais próxima – descoberto um complexo sistema de lente gravitacional

2003-08-18

Em cima: imagem do sistema de lente gravitacional RXS J1131-1231. À esquerda, a imagem obtida com o telescópio de 3,6 m do ESO. À direita, a mesma imagem depois da deconvolução, que permite uma melhor visão das quatro componentes do tipo estrela (que são as quatro imagens do mesmo quasar), o anel de Einstein (a imagem elongada da galáxia que alberga o quasar) e a galáxia que faz de lente (a imagem central brilhante e difusa). Em baixo: espectros das componentes da imagem de RXS J1131-1231. O painel de cima apresenta o espectro de duas das imagens do quasar que está sujeito ao efeito de lente gravitacional, demonstrando, com a semelhança entre os espectros, que se trata, de facto, do mesmo objecto. O painel de baixo apresenta o espectro da galáxia elíptica que faz de lente gravitacional. Crédito: ESO.
O princípio físico por detrás do fenómeno de uma lente gravitacional
efeito de lente gravitacional
O efeito de lente gravitacional consiste na deflexão da luz provocada pelo campo gravitacional muito forte de um objecto que se encontra entre o observador e a fonte de luz. Por exemplo, uma galáxia, ou um enxame de galáxias, que se encontre entre nós e um objecto astronómico muito distante, como um quasar, pode actuar como uma lente gravitacional. Tipicamente, o efeito de lente gravitacional faz com que se observe, numa única fotografia, mais do que uma imagem do mesmo objecto.
, também chamada de miragem cósmica, é conhecido desde 1916, como consequência da Teoria da Relatividade Geral
Teoria da Relatividade Geral
A Teoria da Relatividade Geral foi formulada por Albert Einstein em 1916 como expansão da Teoria da Relatividade Restrita (formulada em 1905) de forma a incluir o efeito da gravitação no espaço-tempo. Esta teoria propõe que o espaço-tempo é uma estrutura quadri-dimensional cuja curvatura é determinada pela presença de matéria. Neste sentido, a gravitação manifesta-se como curvatura do espaço-tempo, e não como uma força entre duas massas.
de Einstein. O campo gravitacional de um objecto de massa
massa
A massa é uma medida da quantidade de matéria de um dado corpo.
elevada encurva a geometria local do Universo, de forma que a luz ao passar perto do objecto também curva (tal como uma recta à superfície da Terra é necessariamente curva por causa da curvatura da superfície terrestre).

Este efeito foi observado pela primeira vez em 1919 durante um eclipse
eclipse
Um eclipse é uma ocultação total ou parcial de um corpo celeste, quando outro corpo passa entre este e o observador.
total do Sol
Sol
O Sol é a estrela nossa vizinha, que se encontra no centro do Sistema Solar. Trata-se de uma estrela anã adulta (dita da sequência principal) de classe espectral G. A temperatura na sua superfície é aproximadamente 5800 graus centígrados e o seu raio atinge os 700 mil quilómetros.
. As posições de estrelas
estrela
Uma estrela é um objecto celeste gasoso que gera energia no seu núcleo através de reacções de fusão nuclear. Para que tal possa suceder, é necessário que o objecto possua uma massa superior a 8% da massa do Sol. Existem vários tipos de estrelas, de acordo com as suas temperaturas efectivas, cores, idades e composição química.
que se encontravam no céu escuro perto do Sol eclipsado foram medidas com precisão, indicando um aparente deslocamento destas na direcção oposta ao Sol, cujo valor era previsto pela teoria de Einstein. O efeito deve-se à atracção gravitacional que o Sol exerce na luz das estrelas quando esta passa perto do Sol, no seu trajecto até nós.

Em 1930, o astrónomo suíço F. Zwicky apercebeu-se que o mesmo efeito pode acontecer no espaço longínquo, onde galáxias
galáxia
Um vasto conjunto de estrelas, nebulosas, gás e poeira interestelar gravitacionalmente ligados. As galáxias classificam-se em três categorias principais: espirais, elípticas e irregulares.
e enxames de galáxias
enxame de galáxias
Um enxame, ou aglomerado, de galáxias é um conjunto de galáxias gravitacionalmente ligadas. A Via Láctea pertence ao aglomerado chamado Grupo Local de galáxias. O enxame de galáxias mais próximo de nós é o Enxame da Virgem.
podem ser suficientemente compactas e possuirem suficiente massa para encurvar a luz de objectos ainda mais distantes. Contudo, só cinco décadas mais tarde, em 1979, é que estas ideias foram confirmadas observacionalmente, quando a primeira miragem cósmica foi descoberta (duas imagens do mesmo quasar
quasar
Os quasares são objectos extragalácticos extremamente brilhantes e compactos. Hoje acredita-se que são o centro de galáxias muito energéticas ainda num estado inicial da sua evolução (são, pois, núcleos galácticos activos - NGAs) e a sua energia provém de um buraco negro de massa muito elevada. Os seus desvios para o vermelho indicam que se encontram a distâncias cosmológicas. O seu nome, quasar, vem do inglês quasi-stellar object, ou seja, objecto quase estelar, devido à semelhança da sua imagem em placas fotográficas com a imagem de uma estrela.
distante).

As miragens cósmicas são geralmente observadas como imagens múltiplas de um único quasar. Este sofre o efeito de lente gravitacional devido a uma galáxia localizada entre o quasar e nós. O número e a forma das imagens do quasar dependem das posições relativas do quasar, da galáxia que faz de lente e de nós. Se o alinhamento for perfeito, também se vê uma imagem em forma de anel à volta do objecto que faz de lente – é o anel de Einstein. Embora seja muito raro, já se têm observado anéis de Einstein em alguns casos.

Outro aspecto particular do efeito de lente gravitacional é que o brilho
brilho
O brilho de um astro refere-se à quantidade de luz que dele provém, ou seja, a quantidade de energia por ele emitida por unidade de área por unidade de tempo. Dado que o brilho observado, ou medido, depende da distância ao objecto, distingue-se o brilho aparente (quando medido a uma determinada distância), do brilho intrínseco (conceptualmente medido na supefície do próprio astro).
das múltiplas imagens do mesmo objecto é muito maior do que seria sem a lente gravitacional, tal como numa vulgar lente óptica. Galáxias distantes e enxames de galáxias podem actuar como “telescópios naturais”, permitindo observarmos objectos longínquos que de outra forma seriam demasiado ténues para observarmos com os telescópios actuais.

Uma nova lente gravitacional, designada por RXS J1131-1231, foi descoberta em Maio de 2002 por D. Sluse (ESO
European Southern Observatory (ESO)
O Observatório Europeu do Sul é uma organização europeia de Astronomia para o estudo do céu austral fundada em 1962. Conta actualmente com a participação de 10 países europeus e ainda do Chile. Portugal tornou-se membro do ESO em 1 de Janeiro de 2001, no seguimento de um acordo de cooperação que durou cerca de 10 anos.
), quando inspeccionava imagens de quasares obtidas com o telescópio de 3,6 m do ESO no Observatório de La Silla, no Chile. A partir de uma simples inspecção visual destas imagens, Sluse concluiu que o sistema tinha quatro objectos do tipo estrela (que são as imagens do quasar com o efeito da lente gravitacional) e uma componente difusa (a galáxia que faz de lente).

A separação entre as componentes é muito pequena, da ordem do segundo de arco
segundo de arco (")
O segundo de arco (") é uma unidade de medida de ângulos, ou arcos de circunferência, correspondente a 1/60 de minuto de arco, ou seja, 1/3600 de grau.
ou menos, e a turbulência da atmosfera terrestre
atmosfera terrestre
A atmosfera terrestre é composta por um conjunto de camadas gasosas que envolvem a Terra. Estas camadas são designadas por Troposfera (da superfície da Terra até cerca de 10 km de altitude), Estratosfera (10 - 50 km), Mesosfera (50 - 100 km), Termosfera (100 - 400 km) e Exosfera (acima dos 400 km).
provoca um espalhamento da luz que retira a nitidez da imagem. Assim, foi necessário aplicar uma técnica de deconvolução, implementada em software sofisticado de tratamento de imagem, para se obter uma imagem final mais nítida e de maior resolução, em que medições de grande precisão de posição e brilho foram realizadas. O complexo sistema foi assim muito melhor visualizado e, em particular, foi confirmado o anel de Einstein.

A equipa de astrónomos utilizarou então o telescópio de 3,5 m do ESO, o NTT (New Technology Telescope), no Observatório de La Silla, para obter espectros das componentes individuais da imagem deste sistema de lentes. Os espectros são essenciais, pois permitem uma identificação sem ambiguidades dos objectos observados – tanto da fonte como do objecto que faz de lente.

A análise dos espectros mostrou que a fonte é um quasar com um desvio para o vermelho
desvio para o vermelho (z)
Designa-se por desvio para o vermelho (em inglês, redshift) o desvio do espectro de um objecto para comprimentos de onda mais longos. O desvio para o vermelho pode dever-se ao movimento do objecto a afastar-se do observador (desvio de Doppler), ou à expansão do Universo (desvio para o vermelho cósmico, ou gravitacional). O desvio para o vermelho cósmico permite estimar a distância a que o objecto se encontra: quanto maior o desvio, mais distante o objecto. O desvio de Doppler permite calcular a velocidade a que o objecto se desloca.
de 0,66, a que corresponde uma distância de cerca de 6300 milhões de anos-luz
ano-luz (al)
O ano-luz (al) é uma unidade de distância igual a 9,467305 x 1012 km, que corresponde à distância percorrida pela luz, no vácuo, durante um ano.
. A lente gravitacional deve-se a uma galáxia elíptica de massa elevada que tem um desvio para o vermelho de 0,3, ou seja, que se encontra a 3500 milhões de anos-luz. Este é o quasar que sofre o efeito de lente gravitacional mais próximo de nós até hoje descoberto.

Relacionando a geometria do sistema e a posição da galáxia que faz de lente, é possível mostrar que a luz da galáxia onde reside o quasar também devia sofrer o efeito de lente e tornar-se visível como uma imagem em forma de anel. De facto, é o que se observa, um anel de Einstein à volta da imagem da galáxia mais próxima, a que faz de lente.

A configuração particular das imagens individuais do quasar permitiu aos astrónomos produzirem um modelo detalhado do sistema, a partir do qual estimaram o brilho relativo das várias imagens que esperavam ser observado.

Inesperadamente, descobriram que o brilho previsto para as três imagens mais brilhantes do quasar não estava de acordo com o observado, pois uma das imagens era uma magnitude (ou seja, um factor de 2,5) mais brilhante do que o estimado. Parece, então, que um outro efeito poderá estar presente neste sistema.

A hipótese avançada por D. Sluse e os seus colaboradores é que uma das imagens sofre o efeito de uma microlente. Este efeito tem a mesma natureza que as miragens cósmicas, mas, neste caso, a deflexão da luz é causada por uma única estrela (ou algumas estrelas) pertencentes à galáxia que faz de macrolente. O resultado é que há mais imagens do quasar, não resolvidas, numa das imagens observadas. Por isso, essa imagem em particular é mais brilhante do que se esperava.

Para verificar esta hipótese, mais observações estão já planeadas, agora com o VLT
Very Large Telescope (VLT)
O Very Large Telescope é um observatório operado pelo Observatório Europeu do Sul (ESO) e localizado no Cerro Paranal, no deserto de Atacama, no Chile. O VLT é composto por 4 telescópios de 8,2 m de diâmetro que podem trabalhar simultaneamente, constituindo um interferómetro óptico, ou independentemente.
(Very Large Telescope) do ESO, no Observatório do Paranal (Chile), com o VLA
Very Large Array (VLA)
O VLA é um radiointerferómetro composto por 27 antenas de 25 m de diâmetro, dispostas em três braços (em forma de Y) com 9 antenas cada, localizado no Novo México (EUA). O VLA é operado pelo NRAO (National Radio Astronomy Observatory).
(Very Large Array), um observatório de radiotelescópios no Novo México (EUA), e com o Telescópio Espacial Hubble
Hubble Space Telescope (HST)
O Telescópio Espacial Hubble é um telescópio espacial que foi colocado em órbita da Terra em 1990 pela NASA, em colaboração com a ESA. A sua posição acima da atmosfera terrestre permite-lhe observar os objectos astronómicos com uma qualidade ímpar.
(NASA
National Aeronautics and Space Administration (NASA)
Entidade norte-americana, fundada em 1958, que gere e executa os programas espaciais dos Estados Unidos da América.
/ESA
European Space Agency (ESA)
A Agência Espacial Europeia foi fundada em 1975 e actualmente conta com 15 países membros, incluindo Portugal.
).

Fonte da notícia: http://www.eso.org/outreach/press-rel/pr-2003/pr-19-03.html