Toro de poeira observado à volta dum buraco negro

2003-07-08

Em cima: visão artística do núcleo de uma galáxia activa com jactos. O motor central é um buraco negro de massa muito elevada, rodeado por um disco de acreção, envolto num toro de gás e poeira. Os jactos são emitidos perpendicularmente ao plano do disco. A teoria da unificação dos NGAs defende que os diferentes tipos de NGAs resultam de se observar o mesmo tipo de objecto segundo direcções diferentes. Crédito: Aurore Simonnet (Sonoma State University). Em baixo: imagem de NGC 1068 no óptico, com 820x680 píxeis. O píxel central dos 5x5 píxeis centrais mostra o tamanho da estrutura observada com o MIDI. Crédito: NOAO/AURA/NSF/ESO.
As galáxias activas
galáxia activa
Uma galáxia diz-se activa quando emite quantidades excepcionalmente elevadas de energia. São exemplo de galáxias activas as galáxias Seyfert, as radiogaláxias, os quasares e as galáxias com surtos de formação de estrelas (starburst galaxies).
são dos objectos mais espectaculares no céu. Os seus núcleos, os NGAs (acrónimo de Núcleo Galáctico Activo), são tão luminosos que podem ofuscar a galáxia
galáxia
Um vasto conjunto de estrelas, nebulosas, gás e poeira interestelar gravitacionalmente ligados. As galáxias classificam-se em três categorias principais: espirais, elípticas e irregulares.
inteira. As galáxias activas apresentam-se sob várias formas: algumas possuem núcleos brilhantes que emitem radiação
radiação electromagnética
A radiação electromagnética, ou luz, pode ser considerada como composta por partículas (os fotões) ou ondas. As suas propriedades dependem do comprimento de onda: ondas ou fotões com comprimentos de onda mais longos traduzem radiação menos energética. A radiação electromagnética, ou luz, é usualmente descrita como um conjunto de bandas de radiação, como por exemplo o infravermelho, o rádio ou os raios-X.
de alta energia (ultravioleta
ultravioleta
O ultravioleta á a banda do espectro electromagnético que cobre a gama de comprimentos de onda entre os 91,2 e os 350 nanómetros. Esta radiação é largamente bloqueada pela atmosfera terrestre.
e raios-X
raios-X
A radiação X é a radiação electromagnética cujo comprimento de onda está compreendido entre o ultravioleta e os raios gama, ou seja, pertence ao intervalo de aproximadamente 0,1 Å a 100 Å. Descobertos em 1895, os raios-X tambêm são, por vezes, chamados de raios de Röntgen em homenagem ao seu descobridor. A radiação X é altamente penetrante, o que a torna muito útil, por exemplo, para obter radiografias.
), outras têm núcleos de alta energia imersos numa galáxia aparentemente normal e ainda outras apresentam jactos de matéria, longos e esguios, provenientes do seu centro.

Existem fortes indícios de que a fonte de energia da actividade dos NGAs é um buraco negro
buraco negro
Um buraco negro é um objecto cuja gravidade é tão forte que a sua velocidade de escape é superior à velocidade da luz. Em Astronomia, distinguem-se dois tipos de buraco negro: os buracos negros estelares, que resultam da morte de uma estrela de massa elevada, e os buracos negros galácticos, que existem no centro das galáxias activas.
de massa
massa
A massa é uma medida da quantidade de matéria de um dado corpo.
muito elevada, que pode atingir milhares de milhões de vezes a massa do nosso Sol
Sol
O Sol é a estrela nossa vizinha, que se encontra no centro do Sistema Solar. Trata-se de uma estrela anã adulta (dita da sequência principal) de classe espectral G. A temperatura na sua superfície é aproximadamente 5800 graus centígrados e o seu raio atinge os 700 mil quilómetros.
. O buraco negro é alimentado por gás e poeira dum disco de acreção
disco de acreção
Disco composto por gás e poeira interestelares que pode circundar buracos negros, estrelas de neutrões, variáveis cataclísmicas, ou estrelas em formação.
que o envolve. O material que cai nos buracos negros é comprimido e aquecido a temperaturas elevadíssimas, emitindo luz e fazendo com que a galáxia activa brilhe.

Acredita-se que a região central dos núcleos activos encontra-se rodeada por um toro de gás e poeira, denso e opaco. Contudo, até agora, não existe prova directa da existência do toro à volta do buraco negro nos NGAs. As suas reduzidas dimensões, de apenas umas poucas dezenas de anos-luz
ano-luz (al)
O ano-luz (al) é uma unidade de distância igual a 9,467305 x 1012 km, que corresponde à distância percorrida pela luz, no vácuo, durante um ano.
de diâmetro, fazem com que seja necessário uma resolução de 0,05 segundos de arco
segundo de arco (")
O segundo de arco (") é uma unidade de medida de ângulos, ou arcos de circunferência, correspondente a 1/60 de minuto de arco, ou seja, 1/3600 de grau.
para observar directamente o toro na galáxia activa mais próxima.

Inicialmente, pensava-se que os vários tipos de galáxias activas eram fundamentalmente diferentes. Mas actualmente os astrónomos preferem o chamado modelo de unificação dos NGAs, segundo o qual quase todos os NGAs, senão mesmo todos, são simplesmente versões diferentes do mesmo tipo de objecto: a forma que um objecto aparenta depende da orientação do toro relativamente à nossa linha de visão. Assim, alguns NGAs parecem muito luminosos porque espreitamos pelo buraco do toro e vemos até à região central de emissão, enquanto que outros NGAs são muito menos brilhantes, pois o toro encontra-se orientado de forma a esconder da nossa vista a região central.

NGC 1068 é das galáxias activas mais brilhantes e próximas de nós. Localizada na constelação
constelação
Designa-se por constelação cada uma das 88 regiões em que se divide a abóbada celeste, por convenção de 1922.
da Baleia, a uma distância de cerca de 60 milhões de anos-luz, também é conhecida por Messier 77. É uma das maiores galáxias do catálogo de Messier e uma das primeiras galáxias a ser reconhecida como espiral. Imagens de NGC 1068 no óptico mostram uma galáxia normal com barra. Contudo, o núcleo central é muito luminoso, não só no óptico, mas também no ultravioleta e raios-X. Calcula-se que seja necessário um buraco negro com massa equivalente a cerca de 100 milhões de estrelas
estrela
Uma estrela é um objecto celeste gasoso que gera energia no seu núcleo através de reacções de fusão nuclear. Para que tal possa suceder, é necessário que o objecto possua uma massa superior a 8% da massa do Sol. Existem vários tipos de estrelas, de acordo com as suas temperaturas efectivas, cores, idades e composição química.
como o nosso Sol para dar conta da actividade nuclear em NGC 1068.

Em Junho passado, uma equipa de astrónomos liderada por A. Richichi (ESO
European Southern Observatory (ESO)
O Observatório Europeu do Sul é uma organização europeia de Astronomia para o estudo do céu austral fundada em 1962. Conta actualmente com a participação de 10 países europeus e ainda do Chile. Portugal tornou-se membro do ESO em 1 de Janeiro de 2001, no seguimento de um acordo de cooperação que durou cerca de 10 anos.
) observou NGC 1068 com o instrumento MIDI no VLTI (ESO), o interferómetro do VLT
Very Large Telescope (VLT)
O Very Large Telescope é um observatório operado pelo Observatório Europeu do Sul (ESO) e localizado no Cerro Paranal, no deserto de Atacama, no Chile. O VLT é composto por 4 telescópios de 8,2 m de diâmetro que podem trabalhar simultaneamente, constituindo um interferómetro óptico, ou independentemente.
no Observatório do Paranal (Chile). A interferometria
interferometria
A interferometria é uma técnica de observação baseada em padrões de interferência causados pela combinação de ondas electromagnéticas: quando duas ondas estão em fase, o sinal é mais forte e diz-se que a interferência é construtiva; quando as duas ondas estão exactamente fora de fase, a interferência é destrutiva e não há sinal.
é uma técnica que combina dois ou mais telescópios de forma a atingir uma resolução angular igual a um telescópio tão grande como a separação entre os telescópios individuais. Para estas observações, foram usados dois telescópios de 8,2 m do VLT, separados por uma linha de base de 102 m, embora, devido a efeitos de projecção, a verdadeira linha de base tenha sido de 79 m.

O MIDI é sensível à radiação cujo comprimento de onda
comprimento de onda
Designa-se por comprimento de onda a distância entre dois pontos sucessivos de amplitude máxima (ou mínima) de uma onda.
se situa em torno dos 10 mícrones
mícron (µm)
O mícron (µm), ou micrómetro, é uma unidade de comprimento que corresponde à milésima parte do milímetro: 1µm = 10-3mm = 10-6 m.
, na região espectral do infravermelho intermédio
infravermelho intermédio
Região do espectro electromagnético compreendida entre os comprimentos de onda de 5 e 40 mícrones. Esta banda permite observar astros ou fenómenos com temperaturas entre 92 e 740 graus Kelvin.
, também chamado de infravermelho
infravermelho
Região do espectro electromagnético compreendida entre os comprimentos de onda de 0,7 e 350 mícrones. Esta banda permite observar astros, fenómenos, ou processos físicos com temperaturas entre 10 e 5200 graus Kelvin.
térmico. É o instrumento ideal para estudar material cósmico perto do núcleo central da galáxia activa, pois a radiação ultravioleta e óptica do material quente que se encontra à volta do buraco negro aquece o toro de poeira a uma temperatura de centenas de graus. A energia absorvida é então reemitida no infravermelho térmico, entre os 5 e os 100 mícrones.

Ao observarem NGC 1068, os astrónomos detectaram franjas de interferência. Estas são produzidas quando os feixes de luz dos dois telescópios são somados exactamente em fase. Para uma fonte pontual, as franjas têm o máximo contraste teórico possível (100%): a fonte não é resolvida. Fontes de tamanho angular maior produzem franjas de menor contraste. No caso de NGC 1068, o contraste medido foi de apenas 10% do contraste máximo.

Uma interpretação exacta deste resultado só será possível após medições efectuadas com diferentes linhas de base, já planeadas para este Outono. Mas estas primeiras observações já são bastante convincentes: as franjas foram obtidas com valores consistentes nas várias medições realizadas durante duas noites consecutivas, com boas condições atmosféricas de observação (valores de seeing entre 0,3 e 0,6 segundos de arco). Este resultado permite dizer que foi detectada no toro de poeira de NGC 1068 uma estrutura numa escala espacial de aproximadamente 0,03 segundos de arco (correspondente a cerca de 10 anos-luz).

Esta medição representa a primeira observação, utilizando a interferometria de longa base, de um objecto extragaláctico
extragaláctico
Em Astrofísica, qualquer domínio de investigação que envolva o estudo de objectos celestes que se encontram para além da nossa própria galáxia é designado por extragaláctico.
no infravermelho térmico. Este novo sucesso do VLTI abre as portas ao estudo das estruturas de gás e poeira que envolvem e alimentam os monstros do Universo.

Fonte da notícia: http://www.eso.org/outreach/press-rel/pr-2003/pr-17-03.html