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Oitenta anos da morte de Flammarion, poeta e astrônomo

2006-02-09
O senhor não é um cientista, é um poeta! Com esta frase, em 1862, o notável astrônomo francês Urban Le Verrier, descobridor do planeta Netuno, demitiu o jovem Camille Flammarion, responsável pelo grave erro de haver escrito o livro La Pluralité des Mondes Habités.

A acusação não era infundada. Realmente, aquele jovem era, além de um autêntico poeta, um homem de ciência. Cinqüenta anos mais tarde, durante o seu jubileu, em 1912, o astrônomo alemão Max Wolf resolveu denominar o planetóide de nº 605, que havia descoberto, de Juvisia, em homenagem ao Observatório Juvisy criado em 1883 por Camille. Ao comunicar a decisão de Wolf, assim concluiria o presidente da Academia Francesa, Henri Poincaré o seu discurso:

Querido Flammarion, não tenho infelizmente nenhum planeta a lhe oferecer, mas estou feliz em homenagear o cientista, que é ao mesmo tempo um poeta, e ao poeta que é ao mesmo tempo um cientista.

Camille Flammarion nasceu no sábado 26 de fevereiro de 1842, a uma hora da manhã, na cidade Montigny-le-Roi (Haute-Marne). O seu pai Etiene Jules Flammarion (1810-1891) e a sua mãe Françoise Lomon (1819-1905) tiveram quatro filhos: dois meninos e duas meninas. O outro menino, Ernest, nascido em 1846, seria, mais tarde, o fundador da célebre casa editora que tem o nome da família. Os seus pais eram modestos fazendeiros que acreditavam que seu primogênito Camille deveria ter uma sólida formação intelectual. A mãe, talvez um pouco aristocrata, evitava que o filho brincasse com qualquer garoto. Com a idade de quatro anos, já sabia ler corretamente. Aos seis era um dos mais vivos alunos, que conhecia quase de cor todo o Novo Testamento. Entre as suas lembranças de infância está a observação de dois eclipses do Sol, que lhe deixaram uma forte impressão. O primeiro foi o eclipse anular do Sol de 9 de outubro de 1847 e o outro o eclipse total do Sol de 28 de julho de 1851 (parcial em Montigny-le-Roi). Orientou-o nessas observações a sua mãe.

Apesar de admirar e não compreender naquela idade como podariam os sábios preverem esses fenômenos, como diria mais tarde, foi, entretanto, com a idade de 11 anos, quando estudava na catedral de Langres, onde deveria seguir a vida eclesiástica, como era o desejo de sua mãe, que a paixão pela observação do céu se inicia. Um belo cometa surgiu neste ano. Deste cometa elaboraria inúmeros desenhos, com os quais acompanhou o seu desenvolvimento morfológico.

Em 1856, os seus pais sofrem a mais completa ruína financeira, o que os força a se instalarem em Paris. O modesto emprego do pai na empresa Tournachon Nadar et Cie, obriga Flammarion, com a idade de 14 anos, a procurar um emprego que o permitisse continuar seus estudos. Encontra o de aprendiz de gravador e cinzelador, numa firma onde se alimenta e reside. O salário não é a sua preocupação: o importante é sobreviver. Procura estudar na Escole des Frères de Saint-Roch, onde, com a idade de 16 anos, funda com seus colegas a Académie de Jeunesse. Eleito presidente pronuncia a sua primeira conferência, intitulada As Maravilhas da Natureza.

Nesta época nunca dorme antes da meia-noite. Depois do curso, à noite, estuda inglês, álgebra e geometria. Às vezes, utiliza o luar para ler ou escrever, pois o dinheiro é curto para comprar velas. Felizmente, em 1853, adoece. O médico que o assiste, o Dr. Edouard Fournié, encontra em seu quarto um grosso manuscrito intitulado Cosmogonie Universelle (publicado em 1885 sob o título Le Monde Avant L 'Apparition de I'Homme). Esse projeto de livro e a modesta biblioteca de 230 volumes que o envolve impressiona o Dr. Fournié que, alguns dias mais tarde, lhe informa haver comunicado ao astrônomo e Senador do Império Le Verrier, então diretor do Observatório de Paris, o seu interesse pela astronomia. Na quinta-feira, dia 24 de junho de 1853, restabelecido da sua doença, Flammarion é recebido, às 10 horas da manhã, por Le Verrier, que o conduz a presença de Victor Puiseux, que o submete a uma compreensiva entrevista sobre astronomia e trigonometria.

No fim desse concurso sui-generis, Le Verrier anuncia a sua admissão para a segunda-feira, 28 de junho, como aluno-astrônomo, recebendo um salário de 50 francos por mês. Ao sair do Observatório, o jovem Camille sentiu-se vitorioso. Agora iria descobrir as maravilhas do Universo. Qual não foi sua decepção ao constatar que os seus colegas não amam a Astronomia: não se interessam pela contemplação celeste, não questionam sobre a natureza dos outros mundos, não viajam pelos espaços infinitos do céu... Excelentes empregados de escritório, calculadores atenciosos, que não viam nada além das colunas de algarismos. O Observatório é um perfeito serviço militar, onde impera a execução pontual de todas as necessidades administrativas, diria mais tarde.

Tal clima de trabalho não o afastaria de suas pesquisas pessoais sobre a natureza e origem dos corpos celestes. Nesse período redige dois manuscritos. O primeiro, Uma Viagem às Regiões Lunares, não seria jamais publicado. O segundo - Pluralidade dos Mundos Habitados -, seria a sua primeira obra publicada. Agora, ainda seria um golpe da sorte que iria auxiliar Flammarion. Todas as tardes ao sair do Observatório, o jovem astrônomo francês passava pela editora Mallet-Bachelier, onde deixava as provas revistas dos Annales de l 'Observatoire. Uma tarde, por distração, deixa junto aos originais dos Annais, uma cópia de um dos capítulos do seu manuscrito. O chefe da gráfica Bailleul que já havia conhecido Arago quando impressor dos Anais da Academia de Ciências, demonstra, após a leitura do manuscrito, interesse em publicá-lo, sem a parte filosófica, em virtude da sua editora ser essencialmente científica.

Para Le Verrier a pluralidade dos mundos habitados era uma idéia medíocre e uma pura fantasia, quase indigna de atenção. Após a publicação de Pluralidade, em 1862, Flammarion foi despedido. Durante esse período Camille seguia os cursos de cálculo diferencial e mecânica celeste que o astrônomo Delaunay professava na Sorbonne. Ao notá-lo entre os alunos, Delaunay procurou saber de sua situação, convidando-o para trabalhar no Bureau de Longitudes, onde os pesquisadores eram inimigos inconciliáveis de Le Verrier.

A publicação da Pluralidade provocou um verdadeiro impacto. Victor Hugo lhe escreveria do exílio, na ilha de Guernesey, em 17 de dezembro de 1862, carta na qual diria: O assunto sobre o qual escreve é a perpétua obsessão do meu pensamento, e o exílio não faz outra coisa senão aumentar em mim essa meditação, colocando-me entre dois infinitos, o Oceano e o Céu... Eu me sinto em íntima afinidade com espíritos como o seu. Os seus estudos são meus estudos.

Flammarion é convidado a colaborar no jornalismo. A sua primeira colaboração é publicada na Revue Française, em 19 de fevereiro de 1863. Em 1864, a primeira edição de Pluralidade está esgotada. Uma segunda é publicada, agora, com as suas conclusões filosóficas, por Didier, fundador da Librairie Académique. A segunda edição é outro sucesso. Sainte-Beuve, Allan Kardec, Ferdinand Hoefer, Henri Martin, entre outros, assinalam nas revistas da época o seu aparecimento. A reputação de Camille começa a aumentar. Eis o título de um artigo do Cosmos, de 15 de dezembro de 1864: "Le Livre de Flammarion à Ia Cour de I'Empereur".

O Imperador Napoleão III se interessa pelo livro expressando ao acadêmico Alfred Maury do Institute de France, o desejo de conhecer o seu autor. Flammarion, então, desprovido de toda ambição pessoal e republicano puro, responde sem entusiasmo: "Num dos próximos dias iremos à Corte". Tal dia nunca chegou. Camille se torna colaborador de inúmeros jornais: L 'Evénement, Le Voltaire, Magasin Pittoresque, Le Temps, Le Petit Marsellais, L 'I/ustration, La Nature, etc. Foi talvez Flammarion o precursor dos audiovisuais ao ilustrar, com projeções de panoramas astronômicos, as suas conferências no Capucines, em 1866. Nessa época, Flammarion inicia, em 10 de fevereiro de 1866, no jornal uma série intitulada Le Dossier Le Verrier, que só foi suspensa em fevereiro de 1870, quando Le Verrier foi substituído em suas funções de diretor do Observatório de Paris pelo seu maior inimigo, o astrônomo Delaunay. Três anos depois, Le Verrier foi reconduzido, onde permaneceu até a sua morte em 1877.

Em 1876, Flammarion retoma as observações micrométricas de estrelas duplas a convite de Le Verrier. Essas medidas estão relacionadas no primeiro catálogo de estrelas duplas visuais publicado em 1878. Tal pesquisa é indubitavelmente a maior contribuição científica de Camille, sem esquecer a fundação do Observatório de Juvisy, a Société Astronomique de France, cujo boletim foi mais tarde transformado em revista astronômica, onde inúmeros e valiosos trabalhos originais de autoria de cientistas franceses foram publicados, entre eles, Lyot, Muller, Baize, Danjon, etc. Tal revista provocaria o surgimento do Bulletin Astronomique do Observatório de Paris.

A fundação do Observatório de Juvisy é talvez uma das mais pitorescas histórias da vida cheia de surpresas do astrônomo de Maritigny-le-Roi. Em 1882, Flammarion recebe várias cartas todas em versos. A primeira delas são quatro páginas inteiras nesse tom: Ó minha querida pátria, uma idade de ouro vai nascer,/ O astro Flammarion no céu acaba de aparecer,/ Nosso século possui um nome glorioso/ Admirado sobre a Terra e conhecido no universo. Com ausência de tempo, Flammarion não respondeu nenhuma delas. É impossível criar tempo, diria. Todavia, uma das cartas viria em prosa. Além de uma reprovação contra o silêncio, declarava o seu autor, um septuagenário de Bordeux, que estava no fim da sua vida e desejava oferecer uma imensa propriedade situada em Juvisy. "Eu lhe suplico, responda-me somente sim telegraficamente. O senhor deverá visitar logo esta propriedade, se ela não lhe agradar, poderá vendê-la". Em dezembro de 1882, Flammarion toma posse de tal sítio, onde, no fim de dois anos de obras, o transforma num observatório. Uma das primeiras personalidades a visitá-lo no novo observatório foi D. Pedro II, que inaugura a equatorial de 25 cm ao observar o planeta Vênus em 29 de julho de 1887. Nessa ocasião, o nosso Imperador planta uma árvore nos parques de Juvisy.

A partir de 1867, Flammarion começa reunir, em volumes que constituiriam a série Études et Lectures sur /'Astronomie, os seus artigos e estudos científicos publicados e inéditos. Tal série publicada até 1880 foi a idéia que deu origem à primeira revista astronômica em língua francesa, L 'Astronomie, publicada no período de 1882 a 1894. Foi o sucesso crescente dessa revista e a publicação em 1879, da primeira edição da sua célebre Astronomie Populaire, traduzida em todas as línguas, que conduziria Flammarion, em 28 de janeiro de 1887, a reunir em sua residência alguns colaboradores de L 'Astronomie, vários astrônomos e amigos da ciência, para criar a Société Astronomique de France. Dentre os primeiros fundadores dessa sociedade encontram-se os nomes dos irmãos Henry, Trouvelot, Trepled, Secretan, Hirn, etc.

Além de D. Pedro II, um dos primeiros membros fundadores (o número 85 na ordem de inscrição), iriam participar dessa sociedade astronômica outros brasileiros, dentre os quais as figuras ilustres de Emmanuel Liais, Luis Cruls, Alberto Santos Dumont, Duches de Abranches de Moura, Henrique Morize, Domingos Fernandes da Costa, etc.

Na sua vida científica, Camille Flammarion foi assistido por duas notáveis mulheres, que além de esposas foram dedicadas secretárias, que viveram e participaram do mesmo ideal de pesquisar e divulgar a Astronomia através da Société Astronomique de France. A primeira delas foi Sylvie Petieux-Hugo, nascida em 28 de fevereiro de 1836, esposa de um notável médico, a quem deixaria em 1867 para se dedicar inteiramente a Flammarion, com quem se casa em 18 de agosto de 1874, ao se tornar viúva. A lua-de-mel do jovem casal foi uma viagem a balão, quando então Flammarion inicia seus estudos de Meteorologia. A admiração de Sylvie por Flammarion, assim como a de Gabrielle Renaudot, sua segunda esposa, com quem se casou em 9 de setembro de 1920, após o falecimento de Sylvie em 28 de fevereiro de 1919, iniciou-se com a leitura das obras filosóficas e científicas do astrônomo. Gabrielle Renaudot se apaixonou por Flammarion quando ainda secretária do nosso astrônomo na Société, em 1915. Graças a ela, a revista L 'Astronomie resistiu a todas as dificuldades de dois períodos de guerras, sem interrupção. O mais notável, entretanto, foi a compreensão de Sylvie, em relação a Gabrielle, por quem houve, segundo se conta, crises de ciúmes que foram ultrapassadas racionalmente, como confirma a indicação por Sylvie do nome de sua sucessora para o Prix des Dames em 1917, dois anos antes de sua morte. Às vezes, o autêntico amor de duas mulheres ultrapassa a todo o ciúme recíproco, quando o ideal do homem amado as absorve totalmente. Esta é talvez a mais bela lição da vida amorosa de Flammarion.

Até hoje ainda vive a Société Astronomique de France, na qual se associam milhares de astrônomos profissionais e amadores voltados todos para os mesmos ideais de contemplar o céu, procurando observá-lo, compreendê-lo, e divulgar a Astronomia. As pesquisas astronômicas unem na Sociedade os astrônomos amadores que ao elaborarem suas observações muito auxiliam os astrônomos profissionais incapazes de tudo observar nesse imenso universo.

Ao conversar, em 3 de junho de 1925, com sua esposa Gabrielle sobre os planos da viagem que deveriam fazer ao Haute-Marne, ela lhe disse que gostaria de fotografá-lo na sua humilde casa natal, onde ela o imaginava brincando há 83 anos. Flammarion lhe diria: "Seu sonho é irrealizável, pois eu jamais brinquei... mesmo na minha mais recuada infância”. Na realidade, toda sua vida, se divertir era trabalhar e trabalhar era se divertir. Na tarde desse dia, na biblioteca, após rever um artigo para L 'Astronomie, Flammarion morreu nos braços de Gabrielle, a quem na manhã ensolarada deste dia ao visitar os jardins do Observatório, onde a vida irradiava nas flores e nos cantos dos pássaros, disse: "Que mistério é a vida... que mistério é a morte..."