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Ditos

"Nunca vemos o que já foi feito; vemos apenas o que está por fazer."
- Marie Curie


Huygens em Titã

2005-01-21
Dizia Carl Sagan que a sua geração tinha a sorte de viver numa época única, aquela em que se procedia ao primeiro reconhecimento dos múltiplos mundos do Sistema Solar. Esta frase, proferida há já largos anos, continua a ser válida, como os acontecimentos de 14 de Janeiro demonstraram.

Se é certo que a Lua, Vénus e Marte, os nossos mais próximos vizinhos, estão completamente cartografados, não é menos certo que existem ainda dezenas de superfícies de planetas e luas a descobrir. Mercúrio é ainda, em larga medida, um mistério: está na lista. Sondas automáticas percorreram distâncias incomensuráveis para nos oferecer vislumbres dos sistemas dos planetas gasosos, com os seus cortejos de satélites. Os seus nomes ficarão para a história da exploração espacial: Pioneer, Voyager...

Por estes dias, uma outra sonda, a Cassini, “instalou-se” em órbita do mais belo dos planetas, o gigante Saturno, e deslumbra-nos regularmente com fantásticas imagens de tempestades, anéis e satélites. Se falo tanto em imagens, não é por desconhecer que esta e as outras sondas levam a bordo instrumentos com várias capacidades, que nos fornecem dados de outra natureza, pelo menos tão importantes como as imagens – mas são estas que nos capturam a imaginação... E se as imagens de órbita nos mostram já os panoramas desses outros mundos, ainda é raro que uma sonda alcance uma dessas superfícies. A lista é curta: Lua, Vénus, Marte. Também um asteróide, Eros, em breve um cometa, Tempel 2; sem esquecer Júpiter, claro, para onde foi enviada uma pequena sonda, e mais tarde toda a grande Galileo (outro nome de sonda que ficará na história) – mas dificilmente poderemos pensar que o objectivo era a hipotética superfície do rei dos planetas.

Agora, um pequeno engenho baptizado como Huygens, construído aqui no terceiro planeta, depois de atravessar durante sete anos os frios do espaço interplanetário, às costas da nave-mãe Cassini, atravessou as névoas e as nuvens da lua Titã e pousou na sua superfície. O momento é, muito justificadamente, de orgulho, para todos aqueles que pensaram, construíram e navegaram, para os que geriram, para todos aqueles que de alguma forma estiveram envolvidos neste extraordinário sucesso. Até para nós, que, nada tendo a ver com esta missão, vibrámos, e de que forma, com as notícias: primeiro de que tudo tinha corrido bem, depois com as primeiras três imagens.


Crédito: ESA/NASA/University of Arizona
As imagens: a primeira das três, obtida a 16 km de altitude, com uma resolução de 40 metros por pixel, mostra... canais. Outra vez, dirão alguns. Sim, porque há imagens de Marte muito semelhantes. Também salta à vista o contraste entre a zona direita da imagem, escura, sem detalhe – convém lembrar que as imagens que vimos estão ainda por trabalhar, e que normalmente o processamento revela pormenores invisíveis nas primeiras observações – e a parte à esquerda, onde uma superfície clara, brilhante, é percorrida por formas que, numa primeira aproximação, fazem lembrar redes de drenagem, com o fluxo a dirigir-se para a esquerda e para cima. Alguns detalhes começam a tornar-se evidentes: o material no piso dos “canais” apresenta grande contraste com a superfície encaixante, não parece tratar-se de uma questão de iluminação; existe uma estrutura aproximadamente circular de onde parecem irradiar os “canais”, talvez uma zona mais elevada...


Crédito: ESA/NASA/University of Arizona
A segunda imagem é pouco clara, mostra uma região onde zonas claras se intercalam com regiões escuras... talvez bacias preenchidas por um líquido? Sim, claro que estamos a ser optimistas. Um detalhe interessante nesta imagem, que alguém apontou no IGeoE, é a presença do que parece condensação, e que afecta a qualidade da imagem.


Crédito: ESA/NASA/University of Arizona
Mas depois veio a mais espectacular das imagens, a da superfície. Mais uma vez, muita gente gritou: Marte! Uma planície coberta por blocos rochosos, à primeira vista com uma distribuição de tamanhos muito homogénea... Ao fundo parecem distinguir-se umas elevações tabulares. A natureza dos blocos? Provavelmente gelo. Lembremos que, nas condições que prevalecem à superfície de Titã, a nossa vulgar água é... gelo. Sólido. Rocha. Portanto, aqueles que dizem que não pode ser, parecem é rochas, podem estar sossegados: temos todos razão. Mas sobre isto em breve saberemos mais, já que a análise da composição dos materiais no ponto de impacto estava prevista. E a Huygens cumpriu toda a missão com distinção, com brilhantismo. Por agora, enquanto esperamos por mais imagens e mais dados deste longínquo e misterioso mundo que se nos revela, só podemos dizer, mais uma vez, que foi um fabuloso momento na história da exploração espacial. E, já agora, que foi uma sonda europeia, operada pela ESA, que o permitiu.

José Saraiva é geólogo planetário no Centro de Geo-Sistemas do Instituto Superior Técnico.