O papel das missões espaciais no dia-a-dia dos cidadãos
Por vezes é difícil distinguir o que nos é verdadeiramente útil a curto prazo do que apenas poderá ter efeitos e utilidade a longo prazo, em toda esta informação que recolhemos sobre o espaço e sobre a Terra. À medida que vamos estendendo o alcance dos nossos conhecimentos, vamos tomando cada vez mais consciência de quão pequenos realmente somos, e de quão complexas são as ligações entre os fenómenos observáveis no Universo. Torna-se então extremamente complexo fazer essa distinção de uma forma clara e definida, ao contrário do que acontece em muitas das decisões que temos de tomar no nosso dia-a-dia.
Nesta parte e na próxima procura-se dar uma ideia (bastante limitada, dada a largura e profundidade dos conhecimentos actuais) dos diferentes ramos de investigação sobre o espaço, e as suas consequências segundo duas linhas fundamentais: aqueles que procuram avaliar fenómenos mais visíveis no dia-a-dia das pessoas (no presente capítulo), e os que se constituem hoje como um reservatório de conhecimentos que poderá ser útil ao cidadão comum a mais longo prazo (no capítulo seguinte).
A Terra no centro do Universo
Mas a posição privilegiada dos satélites em órbita terrestre pode ser extremamente útil em ocasiões bem mais graves, quando estão vidas humanas em risco. Permite localizar potenciais catástrofes naturais e prevenir os locais afectados. Permite saber com precisão o deslocamento de terras após uma catástrofe natural ou a distribuição de tensões no subsolo resultantes de falhas sísmicas através da utilização dos chamados SAR (radar de abertura sintética) para prever a ocorrência de sismos subsequentes. Permite, através da utilização de satélites de telecomunicações, o contacto entre duas pessoas em situações de calamidade nas quais os meios de comunicação terrestre tenham sido inutilizados. Permite, em particular, que qualquer evento anormal em qualquer ponto do Globo seja conhecido e difundido numa questão de minutos através das televisões de grande audiência (que aliás só são de grande audiência mediante a existência de satélites emissores de sinais televisivos), desencadeando acções de mobilização conjuntas (tal como aconteceu em Moçambique com as cheias de há dois anos e com as cheias deste Verão na Europa).
A observação da Terra é também algo que nos permite obter informação a mais longo prazo: desde o reconhecimento de padrões meteorológicos de efeitos diversos (como o El Niño, que provoca secas prolongadas na Austrália e chuvas intensas no lado oposto do Oceano, na América do Sul), à constituição de um modelo geral de circulação da atmosfera terrestre e dos oceanos, passando pelas alterações climáticas a nível local e global, a alteração da orla costeira a nível global, e a detecção da presença de gases poluentes na atmosfera e no solo, a partir do espaço provêm informações que podem não só informar as pessoas como estimular a sua contribuição para a tomada de decisões a nível governamental e inter-governamental.
Isto é tido em conta sempre que ocorre um lançamento de um qualquer foguetão a partir da superfície da Terra: existem enormes catálogos de chamado lixo espacial que datam dos primórdios da exploração espacial e que são cruzados com a trajectória prevista do foguetão, de forma a garantir a não intercepção. Juntando a tudo o mais que a regra é a não recuperação de satélites quando estes são colocados em órbitas altas, não admira que metade da Secção de Análise de Missões da Agência Espacial Europeia (ESA) se dedique à monitorização de objectos no espaço próximo da Terra...
Obviamente que existe uma justificação para tal número de satélites: a cobertura global do planeta com o objectivo de proporcionar, por exemplo, apoio à aterragem automática de aeronaves e à navegação aérea, terrestre, e marítima, apoio a serviços de emergência que exijam um posicionamento muito preciso à superfície da Terra, apoio a serviços de informação de tráfego automóvel, determinação precisa de movimentos geológicos (e cruzamento de dados com aqueles provenientes de satélites SAR), localização de stocks de pesca, posicionamento de aparelhagem de prospecção mineira... a lista de benefícios para o Homem é interminável!
Enquanto que algumas destas aplicações terão um impacto positivo inquestionável na vida dos cidadãos, uma crescente intromissão da publicidade nas suas esferas privadas não será propriamente bem recebida (através dos chamados Location Based Services de aplicação comercial, que permitem a serviços comerciais localizarem o consumidor em relação às suas lojas), mas será o preço a pagar pelos benefícios obtidos (em contrapartida, obter-se-á pela primeira vez, com o sistema europeu GALILEO, referências precisas e confiáveis de tempo e espaço, em qualquer ponto do planeta, com origem em satélites não controlados pelo departamento americano de defesa).
Tornando-se possível localizar virtualmente qualquer objecto à superfície e nas redondezas da Terra, resta saber que trabalho tem sido feito para localizar objectos no espaço profundo e que a possam de alguma forma afectar. E a resposta não é, nesse campo. animadora...
A Terra ligeiramente descentrada
Tem-se verificado, em diversas ocasiões, uma certa precipitação pela parte de cientistas e media em avançar com a possibilidade de este ou aquele objecto poderem vir a colidir com a Terra no futuro. A probabilidade de colisão com tais corpos é mínima, mas de facto existe. E dado que estes corpos possuem características dentro de um reino relativamente restrito, é importante investigá-las o mais possível e procurar obter toda a informação sobre os meios ao nosso dispor para contrariar a possibilidade de um ‘encontro pouco amigável’.
Na ausência de um sistema global e centralizado para a detecção destes objectos, refira-se que o trabalho de astrónomos amadores tem sido fundamental. No que diz respeito a missões espaciais, no entanto, apenas uma missão, a NEAR (da NASA) foi até hoje lançada para um corpo celeste menor e órbita-lo, embora outras estejam planeadas, como a Rosetta (da ESA). Um dos pontos essenciais deste tipo de missões é a resposta a impactos com projécteis a alta velocidade, no caso de se ter de recorrer a tal meio para desviar um asteróide ou cometa da colisão com a Terra (responsabilidade da missão Deep Impact, a ser lançada em 2004 pela NASA contra o cometa Tempel-1).
Já quanto à susceptibilidade da Terra no que respeite aos humores do astro-rei, e visto que não há qualquer possibilidade de nos escondermos, é necessária uma monitorização permanente. Em fases durante as quais o Sol está mais activo (o que acontece segundo um ciclo de 11 anos), tornam-se mais frequentes as chamadas tempestades solares, que quando intensas o suficiente podem causar quebras no fornecimento de energia em extensas áreas da superfície da Terra, afectar telecomunicações de onda curta, e mesmo por em perigo a vida de astronautas em órbita, para além de causarem as chamadas auroras boreais. Com o fim de detectar essas ocasiões e ajudar à prevenção das suas consequências negativas, tem-se destacado um satélite de observação do sol a operar permanentemente: a missão SOHO da ESA/NASA, que possui ainda uma série de instrumentos que permitem estudar o nosso Sol com maior pormenor. Os objectivos destas investigações serão alvo do capítulo da próxima semana.
Ao longo deste texto, procurou-se dar uma ideia de conjunto dos benefícios para o cidadão comum da existência de satélites em órbita terrestre, de longe a maior fatia dos orçamentos das agências espaciais. No entanto, a imensa curiosidade dos cientistas e a necessidade de aplicar os conhecimentos obtidos na Terra a outros locais, e outras áreas que não exclusivamente as de aplicação prática no dia-a-dia, levam a que uma parte desse orçamento seja dedicado à investigação em campos como a física fundamental, astrofísica e as denominadas ciências planetárias. É sobre esse tema que o texto da próxima semana incidirá.
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